– Ritinha, vamos para
a mesa. O comer está pronto. Vai lavar as mãos primeiro!... – diz a mãe, na
cozinha, enquanto dá os últimos retoques na refeição.
Passam poucos minutos
e a Ritinha mantém-se impávida a tagarelar, no chão do seu quarto.
– Ritinha, não me
ouviste chamar? Ritinha?!...
– És uma acelerada,
mamã! – Diz a miúda, de forma bem audível.
– Sou uma quê?
– Uma a-c-e-l-e-r-a-d-a!
Tu ouviste bem, pois fui clara! – soletrou a criança, dizendo cada nome de
letra, tal e qual, pela ordem correta.
O pai levanta-se da
mesa e puxa a miúda por um braço e diz-lhe com severidade: – Não ouviste a tua
mãe? E um bocadinho de respeito não te fica bem? Há alturas que me fazes perder
a paciência!
A miúda mantém a
calma, apesar de forçada fisicamente a levantar-se, e responde de seguida,
quando a mãe também se aproxima: – Por isso mesmo é que o Menino Jesus está
aqui a falar comigo.
– O Menino Jesus? Ai
valha-me Nossa Senhora!... Esta rapariga dá comigo em doida! – desabafo da mãe,
enquanto limpa as mãos ao avental.
– Sim o Menino Jesus,
mas não é o bebé… o que a gente vê no presépio, deitado nas palhinhas… com a
vaquinha, o burrinho… e o pastor com o borreguinho… Ele está quase a fazer
cinco anos como eu – e levanta a mão, com os dedos esticados, para se ver bem
que são cinco, continuando – E olha que ele tem conversas muito interessantes,
faz-me companhia e até me faz rir quando vocês… – faz uma breve pausa e
continua – vocês… discutem um com o outro. E não percebo… se vocês gostam um do
outro, por que discutem?
– Querem ver… só
faltava mais esta!... – diz o pai, já a ficar descontrolado – Ela não vem para
a mesa e eu, no meio disto tudo, é que sou o mau da fita… querem lá ver! Oh
Lúcia, tira-lhe as pilhas que eu já não aguento mais! Trá-la tu, que nós vamos
começar a servir-nos. Anda – o João mete o braço no meu e leva-me até à mesa,
pois também me tinha levantado e ainda diz – desculpa lá o atraso e tudo isto…
Conheço a Ritinha
desde que nasceu, é filha única e sempre demonstrou ser uma criança muito viva
e precoce. Acho mesmo que tem “qualquer coisa de especial”. Já me tinha dito
que no jardim de infância o aconselharam a levá-la a um psicólogo, para apoio
especializado, pois era muito hiperativa e punha os nervos em franja às
educadoras. Deu para ver que este almoço de domingo começou um pouco
atribulado. Quando nada o fazia prever, a dada altura a conversa azedou mesmo
entre o casal. Estamos a poucos dias do Natal e, nesta altura do ano, há um
redobrar de stresse. Ambos aparentam preocupação com a questão das prendas e
esgrimam argumentos, em que ele não quer passar a consoada com a numerosa
família dela e ela não a quer passar com os pais e irmã dele – família do meu
lado. Ficarem os três sozinhos também não parece agradar ao casal. Apesar de eu
ser um familiar próximo, não deixo de ser um convidado e nada fazia prever que
falassem tão abertamente. Espero, depois do que vi, que consiga dar ao João um
pouco de esperança e fazê-lo arribar com a perspetiva de uma oportunidade de
atividade independente rentável e cujo investimento será, na minha ótica,
rapidamente recuperado.
A Ritinha manteve-se
calada (coisa rara) até acabar de comer a sopa embalada, comprada no
hipermercado, o que fez com muita lentidão, seja para absorver bem a conversa,
mesmo que desagradável, porque não era a sopa preferida ou por qualquer outra
razão. Então, parecendo-lhe ser a altura indicada, desfere o seguinte,
dirigindo-se ao pai – O Menino Jesus ensinou-me que o amor deve fluir, como
fazendo parte da natureza, como flui… aquela coisa que anda no ar e brilham
muito… vocês sabem… ai… parecem bolinhas de sabão… quando na primavera as
árvores dão flor. Sei que não há desejo sem conflito, pois eu gosto muito de
chocolates e vocês dão-me umas palmadas nas mãos e ralham, por eu estar a ficar
gorda, mas vocês não deixam fluir o amor e estragam tudo...
Estava impressionado
com a lucidez e desenvolvimento da miúda, própria de um adulto e mantive-me em
silêncio, mas o João não foi capaz e interrompeu-a: – Olha, até a formiga tem
catarro! Já disse à tua mãe para te tirar as pilhas! – mandando-lhe um olhar frio e, quem
sabe, como que a querer culpar a mulher pela miúda ser como é.
– O Natal é amor –
continua a Ritinha, indiferente ao comentário jocoso do pai – embora todos
gostem de receber presentes, o Natal está para além das prendas e mais agora
que estás sem trabalho. E para mim até é uma chatice! Faço anos no dia 23 e é
como se eu e Jesus fizéssemos anos com um dia de diferença. Mas ele já me disse
que pode não ser bem assim, porque para os orto… ortod… ai… ortodoxos, o dia de
nascimento dele é no dia 7 de janeiro, mas que isso não tem importância
nenhuma. Para mim, eu faço numa noite e o Menino Jesus faz anos na noite a
seguir, mas é chatice porque vocês sentem que me devem dar prendas num dia e logo
no outro a seguir, por ser Natal. Mas a melhor prenda era mesmo o amor…
– Ei… ei…
espera lá! Estás a querer dizer que não gostamos de ti? – mostra-se admirada a
mãe.
– Não, não fiques
chateada. Não é bem isso. Tu até és uma das melhores mães que já tive. Mas
vocês sabem bem que não me queriam…
– Não te queríamos?
Que história é essa? – atalha o pai, perplexo, e vira-se para a mulher e
diz-lhe – Ouve lá, o que é que andaste a meter na cabeça da miúda?
A Lúcia respondeu-lhe
com uma pergunta, mas com ar zangado – Achas??? – Virou-se para a miúda e
questiona – Mas eu… EU… sou a tua mãe! Quais mães é que estás para aí a falar?
– Já tive muitas.
Acho que umas vinte, mas tinha que contar…
O João vira-se para
mim, como que envergonhado, e diz em jeito de desculpa – Já viste isto? Eu dou
em maluco! Esta miúda tem cá uma imaginação fértil… mas assusta-me… não sei por
quê!
– Vocês sabem
bem! – insiste a criança, mentalmente evoluída e bem adulta, e continua – Eu
não quero saber de televisão, jogos de computador, filmes, mesmo de bonecos que
mexem… é tudo de um mundo imaginário e eu gosto de brincar à minha maneira,
trabalhar a minha imaginação e não pensar como os outros ou com a cabeça dos
outros. Vocês andam muito ocupados com a vossa vida. Ignoram-me ou ralham
comigo por tudo e por nada. Desde sempre achaste que eu vim cedo de mais e
empurraste para a mamã, para ela querer-me ou não. A mamã quis mas anda sempre
atarefada. Eu às vezes quero falar, mas o Jesus diz-me para eu não ligar, para
não julgar, não criticar… que Deus também não o faz. E diz-me para perdoar e
ser amiga de vocês e da Ester do infantário, que às vezes bate-me por eu gritar
quando brinco e por não obedecer. Mas quem se porta mal é ela, que devia ser
castigada, embora os castigos não sirvam para nada e nem os castigos estão no
plano de Deus. Dizemos que ela se chama “estérica”, por estar sempre aos gritos
e maldisposta. Eu só não gosto é que me controlem a mente.
– A quê?! Oh João
estás a ouvir bem? Também achas que fui eu que lhe ensinei estas coisas? – diz
a mãe, que só não aparenta maior admiração por saber a filha que tem, desde que
esta começou a falar.
– Não digo de
onde vim, mas vim de muito longe e agora há muitos meninos, como eu, que não
querem continuar o vosso passado e receber a vossa educação. Queremos que seja
tudo bem diferente, porque o mundo tem que ser diferente, não pode continuar
assim e tudo começa nas escolas… – diz a Ritinha, até ser interrompida.
– Ouve lá… oh pirralha!
Que mal tem a nossa educação? – diz o pai, a tentar exercer a sua influência.
– Acho que vocês são
todos uns medrosos, para não dizer outra palavra mais feia… que foram
preparados para obedecer. Ai… desculpa dizer isto… vê só, tu foste despedido e
dizes que nem sabes por quê. Não foram honestos contigo e fica tudo bem… A mamã
trabalha agora mais, ganha menos dinheiro e vem chateada para casa – deixa-se,
por uns instantes, estar fixada no estarrecido pai e depois vira-se para a mãe
– Sim, porque eu olho para a tua aura e fico preocupada. As cores estão mesmo
esborratadas! Andas fraca, por causa de tudo isto… por causa do emprego, da
comida, de não descansares, do stresse e de hábitos negativos. Assim és mais
afetada pelas forças exteriores. Queres um conselho?
– Qual é? – diz a embasbacada mãe, como quem
está à espera do conselho da vidente.
– Vai até ao lago
onde andam os patos, no Parque da Paz, e senta-te um bocado debaixo do
salgueiro. Vais ver que as dores de cabeça desaparecem num instante. E olha que
o papá não está melhor. Sente-se mal por causa de não ter trabalho, depois
complica tudo e não faz nada para se sentir bem. Nem lhe digo as cores que
vejo. Se não chover de tarde, vão os dois passear de mão dada até ao Parque e…
– vira-se para o pai e diz – senta-te debaixo de um pinheiro para purificar as
energias negativas. Se chover, fiquem em casa a ouvir canto greg… greg… ai…
gregoriano. Também faz bem e acalma.
Nós os três olhávamos
uns para os outros, completamente rendidos, e eu por nada queria interromper
aquela espantosa miúda, a fazer-me lembrar os incompreendidos mas espantosos
génios que tocam complicadíssimas peças de piano ou de violino, apenas com 4
anos.
Como demos espaços à
Ritinha, ela continuou fluentemente o seu discurso – Uma vez falava com o
Menino Jesus e ele disse-me para imaginar um pirilampo numa noite escura de
verão. Depois disse-me para imaginar o espetáculo dado por milhares de
pirilampos todos juntos, deu-me um bocadinho de tempo para pensar… e
perguntou-me: “achas que alguém quer saber do escuro?”. Na noite de Natal, não
me vou importar com brinquedos. Adorava que nessa noite fôssemos três
pirilampos. Oh primo careca, também podes vir – disse, dirigindo-se a mim e
continuou – Ai… ai… se houvesse muitos mais pirilampos este Natal seria tão
lindo!
© Jorge Nuno (2013)