11/05/2021

DOIS PEREGRINOS

 DOIS PEREGRINOS

Sem atraso nos meus passos,
há diapasão afinado
a vibrar como queria.
Há alinhar de compassos
num andejar controlado
que acelera em euforia.
Peregrino em caminhada…
animado na viagem,
enlevado em miradouro,
saboreio a lufada,
aprecio a paisagem
e amor tão duradouro.
São sentires que divido,
multiplicando o afeto
com redobrado vigor.
De coração comovido,
vejo no nosso trajeto
um bálsamo redentor.
© Jorge Nuno (2021)
(Três sextilhas, em redondilha maior,
para celebração de 47 anos de matrimónio,
em dia de aniversário da noiva)


21/04/2021

Crónicas de Língua Afiada: PURIFICAR VALORES DA NOSSA SOCIEDADE?... Parte IV de IV

 

PURIFICAR VALORES DA NOSSA SOCIEDADE?...

Parte IV

(englobada numa crónica com quatro partes)

Pode-se dissertar sobre os efeitos da escravatura, da primeira globalização mundial, da Guerra Colonial, da descolonização, ou de muito mais… desde que seja feito o devido enquadramento em cada época. Agora, até se pode anteceder oito séculos e abordar: a criação deste país, a partir do condado portucalense, com aquele que viria a ser o primeiro rei de Portugal, depois de dar uma “tareia” ao amante da sua mãe, na batalha de São Mamede e de, eventualmente, a ter aprisionado no castelo de Lanhoso; os reis da dinastia afonsina que, apoiados com bastantes guerreiros, foram descendo e conquistando território à trolhada, «passando os mouros a fio de espada» numa guerra santa sem tréguas, à sombra da cruz cristã, até acabar o domínio árabe…

Não é recomendável, mas pelos jeitos que isto leva, os “justiceiros” podem querer remover a estátua de D. Afonso Henriques, que se encontra junto ao castelo de Guimarães, por ser um mau exemplo para todos, a pretexto de usar de violência física e psicológica contra a própria mãe, e já agora… exibirem o seu cartão de cidadão no Registo Civil, ou online, e pedirem para remover também a sua própria cidadania portuguesa, ficando apátridas, pois foi um equívoco da história existirem portugueses, quando a norte devíamos ser galegos e no centro e sul serracenos.

Se esses “justiceiros” quiserem ir comemorar a vitória, no campeonato de futebol, para a rotunda do Marquês, em Lisboa, alguém que os esclareça que é um erro, pois ao marquês de Pombal – que foi o equivalente a “primeiro-ministro” do rei D. José I – nem deveria ter sido erigida a estátua em sua honra, já que, apesar de ser o impulsionador da reconstrução hercúlea da cidade de Lisboa, após o terramoto de 1755, ele foi um déspota, ao sobrepor-se a todos, adquirindo uma autoridade absoluta e opressora, a ponto de: criar a Real Mesa Censória; estimular as denúncias para melhor controlar a sociedade; ser implacável na expulsão dos jesuítas de Portugal e das colónias portuguesas; fomentar processos cruéis, como o caso dos Távoras, com processos sumários a envolver nobres, e inclusive mulheres e crianças, com espancamentos, enforcamentos e decapitações públicas; até mandar incendiar, em Monte Gordo, casas de madeira dos pescadores, que se recusavam deixar a zona marítima e ir morar para Santo António de Arenilha, transformada na notável Vila Real de Santo António após o terramoto, com uma urbanização que era “a menina dos seus olhos” e vista como «polo económico florescente do Algarve». Mas se se retirar a estátua, com o Marquês a dominar leões, onde é que estes “purificadores dos valores da sociedade” irão comemorar as vitórias? Mas espera lá!... Será que estarão esclarecidos quanto ao alvará abolicionista criado pelo marquês de Pombal, que passou a impedir o tráfico de escravos com destino a Portugal metropolitano? E será que alguém se importa, ou evidencia, o facto de este vergonhoso negócio ter continuado a servir o Brasil independente e Cuba, com exploração de mão de obra africana, aplicada nas plantações, minas e noutros trabalhos braçais?         

Há que reconhecer, neste pequeno país, fundado no séc. XII, a partir de um pequeno condado a norte, três e quatro séculos depois, houve ousadia, empreendedorismo e estoicidade, na descoberta marítima e expansão portuguesa, com reforço da presença, em várias partes do globo em grande medida sustentada na “diplomacia musculada”, suportada pelo poder bélico da artilharia marítima –, mas criadora de novas oportunidades, a atingir um alcance inimaginável na altura.

Mas mais do que a questão do tráfico de escravos, as novas rotas de comércio, alargamento de territórios (que voltaram a encolher), os estragos causados pela Guerra Colonial, as culpas apontadas aos colonizadores e descolonizadores, numa onda de intolerância e de preconceitos com a história… ficou algo de valor incalculável: a língua portuguesa espalhada pelo mundo e fundida com muitas línguas nativas. Um balanço atual[1], dá conta de 254,3 milhões de falantes de português, mas por se tratar de uma língua de intercâmbios, «o número de atingidos por essas permutas alcança milhares de milhões de pessoas. É aqui que reside a fertilidade e valor da língua portuguesa».   

A história segue o seu rumo. Trata-se de uma viagem sem retorno, cuja história não se branqueia. Uma melhor conduta em sociedade, para que essa sociedade seja a que ansiamos, começa a partir do interior de cada um de nós, com a vontade de aprender, de conhecer, de evoluir... até na forma de pensar. Então sim, com esta transformação individual de “purificação” poderemos ansiar por uma sociedade atual mais justa, equitativa, cimentada com valores, pelos quais se devem reger os cidadãos.

Para isso, é preciso ter uma visão calibrada, a envolver saber histórico, que choca, naturalmente, com ideologia política e preconceitos morais. O facto de conhecermos o passado, ajuda-nos a infletir, a reajustar as ideias, a evidenciar sensibilidades e a ter procedimentos mais humanistas, contribuindo para um mundo melhor.

© Jorge Nuno (2021)



[1] In TSF rádio notícias, com artigo de Rodrigo Tavares “Realisticamente, quantos são os falantes de português no mundo?”

07/04/2021

Crónicas de Língua Afiada: PURIFICAR VALORES DA NOSSA SOCIEDADE?... Parte III, de IV

PURIFICAR VALORES DA NOSSA SOCIEDADE?

Parte III

(englobada numa crónica com quatro partes)

No livro “Mário Soares – Uma Vida[1]”, onde condensa vários testemunhos na primeira pessoa, o autor refere que Mário Soares, como ministro dos Negócios Estrangeiros, estava encarregado por Spínola, para “negociar”, no primeiro encontro em Dakar, com Aristides Pereira – que representava o PAIGC[2], na qualidade de secretário-geral –, mas pretendia que representasse apenas um gesto de boa vontade e não passasse de “chá e simpatia”, mesmo sabendo do reconhecimento da independência da Guiné, pela ONU e por mais 79 países, no ano anterior.

Não confiando em Mário Soares, pediu a um militar da sua confiança – Almeida Bruno – para o acompanhar. Este mesmo, teria dito a Spínola: «Eu desconfio deste Soares! (…) é um exilado que não percebe de África e deve estar feito com os comunistas». Segundo Mário Soares, até o próprio Álvaro Cunhal terá dito que era “prematuro” falar em independência da Guiné e que se deveria avançar com prudência, na questão da descolonização. Duas semanas depois, em Londres, deu-se início à «negociação direta entre o Estado português e o PAIGC», mas com Spínola a não querer o acordo que levasse à independência e descolonização, apenas aceitava “falar” em autodeterminação queria ganhar tempo, e apostava num referendo sobre o futuro político da Guiné e Cabo Verde –, enquanto que o PAIGC queria que Portugal reconhecesse de imediato a independência da Guiné. Em agosto de 1974, aquando da visita do secretário-geral da ONU – Kurt Waldheim – a Portugal, o então chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas – Francisco Costa Gomes – ordenou a retirada das tropas portuguesas na Guiné “o mais rápido possível”, dando um prazo até final desse ano.

Prosseguiram as negociações em Argel. Os argumentos, por parte do PAIGC, eram válidos e fortes: se Portugal não reconhecesse o PAIGC como único interlocutor na Guiné-Bissau – dado que a sua legitimidade provinha da luta armada, tal como a legitimidade dos negociadores portugueses vinha do movimento militar, que originou revolução a 25 de abril – não assinariam a paz e continuariam em guerra, realçando que já tinham um domínio sobre dois terços do território guineense.

Assinado o acordo, com tratamento à parte do caso de Cabo Verde, deu-se uma inevitável precipitação de acontecimentos.

Seguiu-se Moçambique, com Soares a ser “vigiado” por Otelo Saraiva de Carvalho, numa conferência realizada em Lusaka, com Keneth Kaunda, presidente da Zâmbia, no papel de mediador. Como delegado da Frelimo, Joaquim Chissano, mas com a presença de Samora Machel. A história repetia-se: A Frelimo só admitia «assinar o cessar-fogo contra o seu reconhecimento como único interlocutor e aceitação do princípio de independência».

Terá sido o próprio Otelo a dizer, mais tarde, que «o Mário Soares só queria o cessar-fogo» tal como desejava Spínola –, mas com Otelo a dizer a Soares: «Senhor doutor, não ligue ao que diz o velho, que ele já não manda nada». Na verdade, terá sido a Comissão Coordenadora do MFA[3] a tomar as iniciativas pró-independentistas, com Melo Antunes a acompanhar e fomentar a descolonização, já no papel de ministro de Estado, com competências para a descolonização.

Bem mais tarde, Diogo Freitas do Amaral[4] disse ser «(…) uma injustiça histórica acusar Mário Soares pela forma como decorreu a descolonização: que poder negocial tem o ministro dos Negócios Estrangeiros de um país, cujas forças armadas se degradam a ponto de depor e entregar as armas ao “inimigo”, sem autorização dos comandos militares?»

Logo após o surgimento do programa do MFA (com foco nos 3 D’s: descolonização; democratização; desenvolvimento), Mário Soares disse que queria:

– a descolonização possível (para afirmar mais tarde: «Foi um milagre a descolonização que se fez»);

– a democratização, com a instauração de uma democracia pluralista (viria a ser o garante dessa pluralidade);

– o desenvolvimento, com entrada na CEE[5] (tendo sido o grande impulsionador dessa adesão de Portugal às então chamadas Comunidades Europeias, cuja assinatura do tratado de adesão se deu em 1985, quando era primeiro-ministro, oito anos após um processo negocial difícil, e integração oficial em 1 de janeiro de 1986).

A história segue o seu rumo. Pode-se adorar, detestar… até mesmo ficar indiferente. Mas querer entrar por uma via, como se tratasse de uma necessidade de purificação dos valores da sociedade, tendo por base supostas boas intenções, com evidente suporte na ignorância e desconhecimento da realidade… soa a histeria e não dá os resultados esperados.

(continua na parte IV, de IV)

© Jorge Nuno (2021)



[1] de Joaquim Vieira, editado por Esfera do Livros Editora

[2] Partido Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde

[3] Movimento das Forças Armadas

[4] Na altura, professor de Direito e fundador do partido CDS – Centro Democrático e Social, com ideologia democrata-cristã

[5] Comunidade Económica Europeia.

25/03/2021

Crónicas de Língua Afiada: PURIFICAR VALORES DA NOSSA SOCIEDADE?... Parte II, de IV

 

PURIFICAR VALORES DA NOSSA SOCIEDADE?

Parte II

(englobada numa crónica com quatro partes)

Em Portugal, há ondas de intolerância e de preconceitos com a história, que chocam, por exemplo, com a [ainda] visão glorificadora e saudosista de um império que se esfumou e que tinha sido preservado durante cinco séculos. Esta parte II da crónica, aborda um tema que tem sido tabu – a descolonização.

Sente-se que são muitos os portugueses, ao longo de mais de 47 anos, a apontar o dedo acusador, particularmente dirigido a Mário Soares – tido como o grande responsável pela entrega das “possessões ultramarinas”. Alguns desses, tinham uma vida desafogada em África e não perdoam ter sido forçados a regressar a Portugal, de um momento para o outro, ao perderem o direito aos seus bens e chegarem com pouco mais do que a roupa que tinham no corpo.

Seria bom conhecer-se a realidade do Portugal de 1974/75 e enquadramento com o programa do MFA[1], que restituiu a liberdade ao portugueses, envolvendo, necessariamente, a questão da Guerra Colonial e a conjuntura na época, com fortes pressões internacionais e a força das armas, que já tinham conduzido: em 1961, à integração dos enclaves de Goa, Damão e Diu pela União Indiana; em 1973, à autoproclamada independência da Guiné [Portuguesa]; e, ao longo de seis décadas, à independência dos territórios africanos sob alçada do Reino Unido, França, Itália, Bélgica e Espanha.

Para se ficar com uma ideia da extensão desses territórios africanos colonizados ou com protetorado… era todo o continente africano! Não recuando muito no tempo, fiquemo-nos pelo período de 1910 a 1974 – ano em que nos queremos situar e poderemos observar a vastidão de países, só neste continente, que se tornaram independentes:

– do Reino Unido: África do Sul, Egito, Sudão, Gana, Somália Britânica, Nigéria, Serra Leoa, Uganda, Tanganica e Zanzibar [formaram a Suazilândia], Malauí, Zâmbia, Gâmbia, Rodésia [Zimbábue], Botsuana, Lesotho, Maurícia;

– da Itália: Etiópia, Líbia, Somália Italiana;

– da França: Marrocos, Tunísia, Guiné [Guiné–Conacri], Camarões, Togo, Senegal, Madagáscar, Benim, Níger, Burkina Faso [ex-Alto Volta], Costa do marfim, Chade, Congo, Gabão, Mali, Mauritânia, Argélia;

– da Bélgica: República Democrática do Congo [ex-Zaire], Burundi, Ruanda;

– da Espanha: Guiné Equatorial.

Registe-se a experiência traumatizante de militares e marinheiros que fizeram comissões de serviço no Estado Português da Índia, logo após as primeiras iniciativas de luta armada em Angola. A União Indiana, no final de 1961, fez investidas por terra, mar e ar, sobre os enclaves de Goa, Damão e Diu. Perante a evidência desses ataques, o então presidente do Conselho de Ministros – António de Oliveira Salazar – que sempre se tinha oposto à entrega desses territórios, fez chegar esta mensagem: «Não prevejo possibilidades de tréguas nem prisioneiros portugueses, como não haverá rendição, pois sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos». O general Vassalo e Silva, governador daquele território, reconhecendo a anormal diferença de meios bélicos e humanos entre portugueses e indianos, não obedeceu a Salazar. Ficou conhecido como “Vacila e Salva”. Na verdade, morreram cerca de 30 militares portugueses, mas salvou a vida a cerca de 3.000 que faziam parte da guarnição, ao assinar a rendição incondicional. Seis meses depois do cativeiro, deu-se o regresso dos militares a Portugal, sem glória, humilhados e muitos deles castigados. O próprio general viria a ser julgado em tribunal militar e expulso do exército.

Em Portugal, lia-se o slogan repetidamente pintado nas paredes: “Nem mais um soldado para as colónias!”. Logo após a revolução de 25 de abril de 1974, militares portugueses, presentes na Guerra Colonial, identificados com o MFA, chegaram a confraternizar no terreno com os guerrilheiros, antecipando-se à diplomacia e às decisões políticas. A Lei n.º 7/74, de 27 de julho, saída do Conselho de Estado, refere no art.º 1.º “o princípio de que a solução das guerras no ultramar é política e não militar, consagrado no n.º 8 alínea a) do capítulo B do Programa do Movimento das Forças Armadas, implica, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito dos povos à autodeterminação. O reconhecimento do direito à autodeterminação, com todas as suas consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos e a derrogação da parte correspondente do art.º 1.º da Constituição Política [Portuguesa] de 1933».

Mário Soares, político oposicionista ao regime totalitário, regressado do exílio em França, era o ministro dos Negócios Estrangeiros no primeiro governo provisório pós-25 de abril, e fortemente acusado de “traição à Pátria”, quando se desenrolaram as tentativas de negociação para autodeterminação ou independência daqueles territórios (uma ideia que ainda paira no ar, passados 47 anos!). É sabido que o simples facto de passar a designar os “Territórios Ultramarinos” por “Colónias”, teve um imediato impacto negativo junto de larga franja dos militares de elevada patente e na opinião pública. 

António de Spínola, tinha sido vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas durante dois meses, entre janeiro e março de 1974, e afastado após ter publicado Portugal e o Futuro, onde evidenciava que a solução das colónias passava pela não continuação da guerra. No mês seguinte, convidado para presidir à Junta de Salvação Nacional, foi escolhido, entre pares, para as funções de primeiro presidente da República pós-25 de abril, cargo que exerceu durante quatro meses. Nesse espaço de tempo, Spínola enviou Mário Soares a Dakar para “negociar” com Aristides Pereira, que representava o PAIGC[2], na qualidade de secretário-geral.

No livro “Mário Soares – Uma Vida[3]”, onde condensa vários testemunhos na primeira pessoa, o autor refere que Spínola queria que esse primeiro encontro representasse um gesto de boa vontade e não passasse de “chá e simpatia”, mesmo sabendo do reconhecimento da independência da Guiné, pela ONU e por mais 79 países.

 

(Continua na Parte III, de IV)

© Jorge Nuno (2021)

 



[1] Movimento das Forças Armadas

[2] Partido Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde

[3] de Joaquim Vieira, editado por Esfera do Livros Editora

11/03/2021

Crónicas de Língua Afiada: PURIFICAR VALORES DA NOSSA SOCIEDADE? - Parte I, de IV

PURIFICAR VALORES DA NOSSA SOCIEDADE?

 Parte I

(englobada numa crónica com quatro partes)

 

Continua a assistir-se – por vezes de forma extremada –, a uma polarização entre a visão glorificadora de um império que se esfumou e que tinha sido preservado durante cinco séculos, sentindo-se desalento, frustração, até mesmo raiva, com necessidade de apontar o dedo acusador e, por outro lado, uma tentativa de criminalização do nosso passado, como nada tendo de glorioso, achando-se que estará na hora de purificar os valores da sociedade atual, mesmo que implique igual apontar de dedo acusador e, mais do que isso, uma necessidade urgente de fazer um revisionismo histórico, com contestação cultural da história, passando por querer esconder ou destruir os símbolos dessa mesma história.

Uns e outros, certamente esquecem que a história vive de memórias e não prescreve; que nem sempre temos consciência da complexidade da história, de aspetos que levam a que, por exemplo, a história narrada aos alunos, durante o regime do Estado Novo, seja uma, e que, pós-25 de abril de 1974, seja inevitavelmente diferente. E falamos de um pequeníssimo período de tempo, comparativamente aos mais de 800 anos deste país, em que muito de bom e mau aconteceu!

Trazer para os dias de hoje só os aspetos negativos da nossa história e pretender fazer operações plásticas ao passado, fazendo uso de radicalismos exacerbados, em nada favorece o desejado encontro de culturas, a descriminação racial, a convivência sadia entre povos, perante a realidade – factual – deste pequeno país ter criado o primeiro império global da história, iniciado no final do séc. XV, com possessões em África, América do Sul, Ásia e Oceânia.

Lendo Conquistadores - Como Portugal criou o primeiro império global, obra do historiador Roger Crowley, especializado em história marítima e mediterrânea, fica-se com uma ideia, nua e crua, da dimensão do tráfego de escravos, da brutalidade da destruição de vidas, particularmente na costa oriental africana e na ásia, da própria destruição do comércio a oriente, a envolver muçulmanos – por quem, na época, se cultivava um ódio de estimação e eram vítimas, aquando dos implacáveis abates de embarcações carregados de pessoas e bens –. Sim, tudo isso não foi abordado nas escolas portuguesas, apenas os feitos gloriosos.

Por alguma razão, em 1998, a Índia não se associou a Portugal nas comemorações dos 500 anos da chegada de Vasco da Gama àquele país! E, pelo que se pode constatar, durante a leitura do referido livro, com estes capítulos da história, tiveram toda a legitimidade e é compreensível – ao preservarem essa memória histórica – que os indianos não estivessem minimamente satisfeitos com os portugueses daquela época, nem com os portugueses, de há um quarto de século atrás, que organizaram essas comemorações. Aliás, as relações diplomáticas entre Índia e Portugal só foram normalizadas após 25 de abril de 1974.

Mas vejamos como se chega a esse primeiro império global, criado em nome da fé, com um rei a julgar-se “messiânico”, firme na intenção de “destruição do bloco islâmico”. Falamos do rei D. Manuel I, que assumia, pomposamente, o título de “rei de Portugal e dos Algarves, Senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia e Índia”, quando para outros reis da Europa era visto como o “rei merceeiro”, por comercializar especiarias. É que além da bênção do Papa Júlio II, com direito à «posse perpétua das terras conquistadas aos infiéis, onde outros reis cristãos não tivessem reivindicações», chegou a ser-lhe concedido, pelo mesmo Papa, em julho de 1505, «um imposto de cruzada que poderia ser cobrado durante dois anos e remissão de todos os pecados para quem nele participasse». Convenhamos, seria reconfortante e uma atenuante para quem participasse nestes ferozes combates, saber que todo o mal causado a outrem ficaria livre de condenação divina, embora a bravura de muitos dos marinheiros resultasse do facto de serem prisioneiros, a quem lhes era dado oportunidade de sair da prisão e ir à aventura, conhecer “outros mundos”, em liberdade.

Há quem avance, agora, com a ideia de se destruir o Padrão dos Descobrimentos, localizado na zona Belém, junto ao rio Tejo, em Lisboa. O monumento original foi criado em 1940, com materiais perecíveis, em pleno regime salazarista, por ocasião da Exposição do Mundo Português. Com esta exposição, pretendia-se comemorar a fundação de Portugal [1140] e a restauração de Portugal [1640], e este monumento seria “para homenagear as figuras históricas envolvidas nos descobrimentos portugueses”, mas poderia funcionar como propaganda do Estado Novo, para exacerbar nacionalismos e fortalecer o regime ditatorial.  Em 1960, no mesmo local, foi criada uma réplica, em betão e em pedra, onde podem ser apreciadas as enormes esculturas de Leopoldo de Almeida. Estas, são representativas de várias figuras de notáveis da história deste país, muitas delas baseadas nos seis “painéis de São Vicente de Fora”, criados por Nuno Gonçalves, pintor régio de D. Afonso V. Naquele espaço, funciona o Centro Cultural das Descobertas, tem um auditório, duas salas de exposições e um miradouro.

Podemos não gostar das atrocidades cometidas durante as Descobertas, tal como podemos não gostar das atrocidades cometidas pela polícia política do regime do Estado Novo, mas ocultar ou escamotear essa realidade, ou, pior, aceitar esta onda de intolerância e de preconceitos com a história, que leva a querer destruir monumentos evocativos dessa mesma realidade histórica, é outra atrocidade que não se deve permitir. Nem que as peças escultóricas funcionem como interesse museológico, já que há muito deixaram de funcionar como propaganda do regime. Será deste modo que se purificam, na atualidade, os valores da nossa sociedade?

(Continua na Parte II, de IV)

© Jorge Nuno (2021)


25/02/2021

Crónicas de Língua Afiada: ESTRANHO PAÍS... Parte II

 ESTRANHO PAÍS…

 Parte I I

 Estranho país, em que

– se chega a propor a entrega de um botão antipânico aos estrangeiros que permaneçam temporariamente à guarda do SEF[1] nos aeroportos nacionais, para os proteger da agressividade da própria polícia de fronteira;

– agentes da PSP[2] e militares da GNR[3] se “guerreia” sobre as competências territoriais, relacionadas com a escolta de uma carrinha especial usada para transporte de vacinas, com bloqueio da mesma em Évora, quando seguia de Coimbra para o Algarve, onde viria a chegar, com bastante atraso, podendo ver-se essa viatura escoltada por seis carros e duas motos da PSP e duas carrinhas da GNR, e o MAI[4] forçado a pedir a abertura de um “inquérito urgente” ao IGAI[5], para apurar o sucedido;

– quando detinha o maior índice de mortalidade na Europa, surgem equipas médicas do Luxemburgo, França e Alemanha, a revelar solidariedade e a dar um contributo, mesmo que simbólico, no combate à pandemia, e se impeça, pela via administrativa, a colaboração voluntariosa e solidária de médicos reformados portugueses, que se prontificaram para ajudar quem tanto precisa de cuidados médicos, colocando a possibilidade de, não sendo na linha da frente, terem tarefas de apoio aos médicos de família, nem que fosse nos inquéritos epidemiológicos; esta falta de resposta e indiferença, por parte de quem se escuda nas regras, pode ser considerada insultuosa para estes médicos e para os portugueses, e passa um mau sinal a todos aqueles que, em momentos críticos, sentem genuína vontade de ajudar;

– quando se anuncia que se perdeu quase 17 milhões de turistas em Portugal, em 2020, por causa da pandemia, fica-se a saber, ironicamente, que a cidade de Braga foi eleita como o “melhor destino europeu [2021] para visitar”, numa altura em que a maioria dos hotéis estão fechados, tal como a totalidade dos restaurantes, pelas mesmas razões, impossibilitando os turistas de a visitar e ficar com a ideia de que a escolha é acertada;

– forçado pelo presidente da República – que quer que se vendam livros – o Governo elabora e aprova um decreto-lei, definindo que a venda será possível em todos os espaços que têm permissão para estar abertos (como p. e. os hipermercados ou lojas tipo FNAC) e deixa de fora as livrarias, que unicamente estão devotadas à venda de livros, ficando assim impedidas de o fazer, tal como fica a Autoridade da Concorrência impedida de assegurar a aplicação das Leis da Concorrência, que se quer saudável; mais estranho ainda… quando o primeiro-ministro diz ter feito “a vontade ao senhor presidente da República, que o proibiu de proibir”;

– no final do ano de 2019 se apregoava o “milagre económico” do país, em boa verdade, alavancado pelo turismo, e agora, o BdP[6], anuncia que a dívida do Estado, das empresas e das famílias atingiu um recorde de 745.800 ME[7] em 2020, com acréscimo de 24.900 ME no endividamento do setor público, face a 2019, situando-se em 342.500 ME, e do aumento de 2.500 ME no endividamento no setor privado, a atingir o total de 403.300 ME neste setor; prova-se que a atual situação é bem pior do que em 2008, altura em que a Troika regressou a Portugal, para “castigar” quem gasta acima das suas possibilidades;

– após difíceis negociações, foi anunciada a aprovação de verbas significativas, na denominada “bazuca” europeia, e a criação do PRR – Programa de Recuperação e Resiliência (em consulta pública), com cerca de 13.900 ME de subvenção a fundo perdido e 2.700 ME a conceder pela UE[8], a título de empréstimo; lembra-se que tinham sido inscritos, no documento inicial, 4.300 ME como pedido de empréstimo… só que este vai fazer aumentar a dívida soberana do Estado e o próprio OE[9] de 2021 e seguintes, e lembra-se, também, que em 2023 haverá eleições legislativas, caso não sejam antecipadas;

– depois de António Costa Silva ter sido convidado como consultor do Governo, vindo a elaborar o documento “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030”, que enquadrou o orçamento de 2021, ouviu-se um membro do mesmo Governo – o ministro do Planeamento – numa audição parlamentar, face à entrada do dinheiro da “bazuca” e como estaria ser planeada a sua utilização, esclarecendo que não é possível usar esse dinheiro em apoios de emergência, para mitigar o impacto da pandemia, pois esse dinheiro destina-se a concretizar reformas, logo, fica-se com a ideia que, com pandemia, não é possível Portugal ter um plano de recuperação económica;

– se sabendo da súbita recessão económica, derivada da pandemia, e que quando não se combate a crise, agrava-a, estranha-se que após muitas promessas de investimento, não se verificasse a execução orçamental de 2020, incluindo o orçamento retificativo – a velha história das políticas de cativação – levando os ministérios a reter 6.866 ME, o que inviabilizou que a estratégia económica – a haver – tenha resultado; entretanto, deixou Portugal em 3.º lugar, entre os países da EU que menos gastaram no combate à crise, facto que teve pesados efeitos económicos e sociais, levando ao crescimento das desigualdades e ao aumento da pobreza.

© Jorge Nuno (2021)



[1] Serviço de Estrangeiros e Fronteira

[2] Polícia de Segurança Pública

[3] Guarda Nacional Republicana

[4] Ministério da Administração Interna

[5] Inspeção-geral da Administração Interna

[6] Banco de Portugal

[7] Milhões de euros

[8] União Euopeia

[9] Orçamento de Estado

11/02/2021

Crónicas de Língua Afiada: ESTRANHO PAÍS... Parte I


ESTRANHO PAÍS…

 

Parte I

 

Estranho país, em que

– Se deixa sair os reclusos da prisão, com licença precária, na expetativa que regressem livremente ao fim da mesma e, no principal hospital do norte, se coloca uma pulseira eletrónica antifuga em cada doente, precisamente para impedir a sua fuga do hospital;

– Se criam regras, através de um Plano de Vacinação contra a Covid-19 – com três frases e indicação de grupos prioritários – assim como de outras estratégias direcionadas para o combate à pandemia, e esquece-se de coisas básicas como:

orientações específicas para os serviços do Estado que acolhem estas novas vacinas, levando a que um hospital se veja obrigado a deitar 600 doses de vacinas para lixo, estando estas destinadas aos profissionais de saúde que ali trabalham em condições de grande pressão, insegurança e risco de vida;

do tempo muito reduzido para aplicar as vacinas, que implicaria haver listas ordenadas de suplentes e, não existindo, tem originado a que, abusivamente, se vacinem, na primeira fase, pessoas definidas no Plano como não prioritárias e, por ter contornos de escândalo, levar a que haja um elevado número de demissões em organismos públicos, IPSS e outros, incluindo o próprio coordenador da chamada Task Force;

ter os meios materiais, humanos e logísticos adequados, que possibilite administrar as vacinas em segurança, sendo inadmissível deixar-se, por exemplo: esgotar o stock de seringas, como bem essencial que é, neste caso; ou deixar-se chegar a 50.000 o número de testes epidemiológicos por fazer, por falta de recursos, fazendo aumentar exponencialmente, e de forma descontrolada, as cadeias de transmissão do vírus;  

– uma iniciativa de cidadãos, dinamizada por uma mulher que pretende engravidar através de inseminação artificial do sémen do seu falecido marido, levou a que na Assembleia da República fosse levada a aprovar um projeto de lei favorável a esta petição, com especialistas a invocar ética e mostrarem-se contra o recurso a sémen de cônjuge morto, e o Ministério Público a acenar com a inconstitucionalidade; ignorando os pareceres éticos e legais, os deputados avançaram e aprovaram; o presidente da República fez um pedido de fiscalização preventiva do projeto de lei, tendo o Tribunal Constitucional declarado inconstitucional duas normas de alteração à legislação; agora, os deputados não querem recuar neste processo que possibilita a inseminação post mortem, sem valorizar que o foco deva estar no controlo da resolução de problemas, que atenuem a gravidade da situação do país;

Insolitamente, parlamentares também escolhem a pior altura – o pico da pandemia – para debater e aprovar a lei da eutanásia, que permitirá a morte medicamente assistida, precisamente quando se regista o pico de óbitos desde o início desta tragédia, com os médicos a não ter capacidade e condições para salvar as vidas daqueles que, quando entram num hospital, veem nisso uma oportunidade para sobreviver;

– Um dos maiores epidemiologistas do país sinta necessidade de “desobrigar-se” de fazer apresentações nas reuniões regulares do Infarmed, a “pôr o dedo na ferida”, dizendo que «foi a maior crise de saúde pública em Portugal nos últimos 100 anos (…) tem de haver um passo atrás e assumir que estamos a fazer qualquer coisa que não está bem» e, implicitamente, passar um “atestado de incompetência política” ao governo, por más decisões políticas durante esta fase pandémica, especialmente nos últimos meses, «indo atrás da pandemia, em vez de termos aproveitado os primeiros meses de experiência».

Lembra-se que este país viveu uma tragédia, com o colapso da ponte Hintze Ribeiro (2001), em Entre-os-Rios, e a morte de 59 pessoas, entre passageiros de um autocarro e de três viaturas ligeiras, que caíram ao rio Douro; o ministro do Equipamento Social [Obras Públicas] demitiu-se.

Noutra tragédia no país – incêndio florestal de Pedrógão Grande –, o balanço oficial foi de 66 civis e um bombeiro mortos; a ministra da Administração Interna demitiu-se; resultante da investigação aos incêndios, o Departamento de Investigação e Ação Penal de Leiria deduziu acusação contra o autarca deste concelho, acusando-o de sete crimes de homicídio por negligência e quatro de ofensa à integridade física por negligência.

Perante uma tragédia bem maior, em pandemia, os números oficiais de óbitos em Portugal, associados à Covid-19 [até à data desta crónica], dão-nos conta de 14.457 pessoas que partiram e deixaram enlutadas as suas famílias, fora aqueles que faleceram com outras patologias, por falta de assistência. Tendo a responsável pelo Ministério da Saúde admitido que não se realizaram 1,2 milhões de consultas da especialidade em hospitais, em 2020, assim como se cancelou um elevado número de intervenções cirúrgicas consideradas não urgentes, se reduziram os rastreios e tratamento de doenças do foro concológico, tal como outros exames complementares de diagnósticos, não é de estranhar a manchete de um jornal: «Há mais de 70 anos que Portugal não tinha tantos mortos». Já em janeiro de 2021, os casos de infeção e de óbitos subiram exponencialmente, registando-se: entre os dias 8 e 18, mais de 100 óbitos / dia; entre 19 e 27, mais de 200 óbitos / dia; entre 28 e 31, mais de 300 óbitos / dia. Com estas mortes, será o equivalente a que só no mês de janeiro tivessem “caíram ao rio” uma média de 33 autocarros / dia, ou se tivesse despenhado um avião Boeing 737 / dia, lembrando-se que estes aparelhos têm capacidade máxima de 215 passageiros. Não haverá aqui fundamentos, mais que suficientes, para se enveredar pelo apuramento de responsabilidades políticas e criminais de quem, tendo poder decisório, falhou? É que a situação mais fácil é acusar os portugueses de irresponsabilidade.

© Jorge Nuno (2021)