26/05/2018

CRÓNICAS DO CORAÇÃO DO MINHO (17) - "Loucos em Cima de Vulcões e à Frente de Touros"


LOUCOS EM CIMA DE VULCÕES E À FRENTE DE TOUROS

«Por isso é que eu sou das ilhas de bruma / onde as gaivotas vêm beijar a terra (…)», assim se cantava o refrão desta bela canção, de autoria de Manuel Medeiros Ferreira, e terminava o último ato “oficial” da visita, com cereja no topo do bolo, rotulado no programa como «serão cultural, com música tradicional e contemporânea açoriana». Foram bons apontamentos musicais com o maestro Carlos Frazão, ao piano, e a voz cristalina de Helena Oliveira, ambos talentosos micaelenses.

Para trás ficavam sete dias magníficos, perante cenários idílicos, onde é evidente a preservação e valorização do património natural, que nos toca profundamente. Miradouros e bermas da estrada floridos; furnas, grutas, escarpas, caldeiras e lagoas, resultantes de fenómenos vulcânicos; cascatas e piscinas naturais; reservas florestais, parques naturais e paisagens protegidas; termalismo; jardins botânicos e românticos; observação de aves, golfinhos e baleias; extensas e verdejantes pastagens,… tudo isto no reino das “vacas felizes”.

Foram igualmente felizes as iniciativas de marketing associadas ao «leite de pastagens de vacas felizes» – leite produzido neste arquipélago –, que promoveu a canção bem ritmada “Ilha das Vacas Felizes”, com uma letra que refere: «Uma vaca feliz / outra vaca feliz / uma ilha de vacas felizes / andam sempre a passear / têm vista para o mar / o pasto verdejante é o seu manjar / (…) na encosta de um vulcão / bem no meio do oceano / há vacas com muita sorte / vivem livres todo o ano (…)». Também resultam os folhetos turísticos «Açores, certificado pela natureza» ou, como pode ler-se num outro, «(…) transforma a paisagem em poesia».

Já em fevereiro de 2017 tinha escrito o seguinte, na minha crónica “Vacas que Riem –Vacas Felizes”, publicada na Bird Magazine: «É que (…) no arquipélago dos Açores, temos vacas que são criadas em prados verdes, apresentam boa produção leiteira e são mesmo apelidadas de “vacas felizes”. Estas vacas são expostas apenas ao puro som do marulhar, da sinfonia dos pingos da chuva atlântica, da húmida brisa, da folhagem da vegetação (com pastagens verdejantes cercadas de hortênsias azuis) e do som telúrico saído das profundezas destas ilhas vulcânicas, numa concórdia de elementos que embriagam. Trata-se de um programa natural, criado pela mãe-natureza, com a qual as vacas tão bem se harmonizam». (Para mais, aceder ao link: https://birdmagazine.blogspot.pt/2017/02/vacas-que-riem-vacas-felizes.html).

Durante este circuito, além da magia da natureza, ficaram bem patentes os aspetos ligados à fé, com realce para a grandiosidade da iluminação decorativa da fachada do convento de Nossa Senhora da Esperança, em Ponta Delgada, onde fica temporariamente o busto do Senhor Santo Cristo dos Milagres. Estas festividades religiosas e pagãs atraem residentes e milhares de emigrantes e turistas. Destaque também para a simpatia do povo açoriano, a riqueza da cultura e da história, que se estende aos tempos do povoamento.
Sobre esta última, apesar de haver indícios de visitas humanas na idade antiga, crê-se que navegadores enviados pelo rei D. Dinis (1261 – 1325) terão chegado a algumas destas ilhas, mas terá sido Diogo de Silves, em 1427, a (re)descobrir a ilha de Santa Maria, seguindo-se São Miguel e mais algumas ilhas. O arranque do povoamento só se deu em 1439, determinado por carta régia de 2 de julho do mesmo ano; foi iniciado na ilha de Santa Maria por Gonçalo Velho, recém-nomeado capitão-donatário, acompanhado de famílias oriundas de várias proveniências de Portugal, a que se juntaram mouros, judeus e flamengos (estes por influência da irmã do Infante D. Henrique); estendeu-se à ilha de São Miguel em 1444, por nova carta régia, sendo ambas as ilhas doadas pelo Infante D. Henrique à Ordem de Cristo.

Sobre a natureza vulcânica e história das ilhas, sobressai o deslumbramento aquando da vista sobre as caldeiras e lagoas. É impressionante a visita ao Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos, na ilha do Faial, o qual entrou em erupção em setembro de 1957 e originou fortes abalos de terra, com enormes prejuízos materiais, obrigando à emigração de cerca de 40% da população faialenses e muitos açorianos de outras ilhas, deixando famílias separadas durante décadas.

É igualmente impressionante o relato da batalha da Salga, que ocorreu em 1581 na ilha Terceira, ao tempo do rei Filipe II de Castela, e que mostrou a heroicidade dos terceirenses ao não se querem render aos castelhanos, quando praticamente todo o território do reino de Portugal já lhe pertencia, desde o ano anterior. Após o desembarque de cerca de mil combatentes castelhanos e uma luta renhida, quando a vitória parecia pender para os invasores, apesar dos atos de bravura destes portugueses, é aqui que se dá reviravolta ao entrar em cena uma grande quantidade de vacas e bois (levados para as ilhas para produzir carne e leite), gado que foi encaminhado em direção aos castelhanos, depois de espicaçados com aguilhão e disparos das armas da época. Porque vestiam armaduras pesadas e retroceder para o mar mostrou-se fatal, tornou-se mais fácil a vitória portuguesa e a humilhação castelhana. É evidente que ficou o culto e a tradição das largadas de touros à corda nesta ilha. Começa logo pelas imagens de vídeo no aeroporto, enquanto se espera pela bagagem; no restaurante, enquanto se toma a refeição; numa loja, para comprar uma qualquer “recordação” do artesanato local, para oferecer… Um guia turístico, mesmo consciente dos custos da insularidade, dizia na despedida: “Podem achar que somos loucos por vivermos em cima de vulcões e corrermos à frente de touros, mas esta terra tem atrativos suficientes para nos fazer querer viver aqui. Voltem com mais tempo e verão que tenho razão”.

Chegado ao continente, deparo-me com notícias simultâneas em todas as estações de televisão, em que a cor predominante também é o verde. Depois de alguns “abalos” frequentes, que vinham a aumentar de intensidade, foi espicaçado o “vulcão” adormecido: um grupo de trinte e oito jovens, conotados com uma conhecida claque de futebol, correu algumas centenas de metros e entrou na Academia do Sporting, em Alcochete, causando terror entre jogadores da equipa profissional, equipa técnica e staff e que, face à gravidade da ocorrência, levou o juiz de instrução criminal a declarar a prisão preventiva, como medida de coacção, para vinte e três jovens – aqueles que foi possível deter e levar a tribunal. Ocorreu-me, que sendo Alcochete um concelho ribatejano com tradição nas touradas e largadas de touros, seria interessante ver os campinos, com o seu colete encarnado e barrete verde, encaminhar os touros na direção destes anormais membros da claque, que acham normal ir-se para “reuniões” de rosto coberto; seria interessante ver quão fortes seriam em grupo, com ou sem armaduras, perante uma manada de touros em passada rápida. Foi possível, no continente, ver estes loucos em cima de “vulcões” (criados por eles próprios) e que podem causar prejuízos de muitos milhões de euros. Mas, em contrapartida, há que reconhecer: daria mesmo gozo vê-los correr à frente de touros de lide, com pontas dos cornos afiados e massa bruta de 500 kg!

© Jorge Nuno (2018)