LOUCOS
EM CIMA DE VULCÕES E À FRENTE DE TOUROS
«Por
isso é que eu sou das ilhas de bruma / onde as gaivotas vêm beijar a terra (…)»,
assim se cantava o refrão desta bela canção, de autoria de Manuel Medeiros
Ferreira, e terminava o último ato “oficial” da visita, com cereja no topo do
bolo, rotulado no programa como «serão cultural, com música tradicional e
contemporânea açoriana». Foram bons apontamentos musicais com o maestro Carlos
Frazão, ao piano, e a voz cristalina de Helena Oliveira, ambos talentosos
micaelenses.
Para
trás ficavam sete dias magníficos, perante cenários idílicos, onde é evidente a
preservação e valorização do património natural, que nos toca profundamente.
Miradouros e bermas da estrada floridos; furnas, grutas, escarpas, caldeiras e
lagoas, resultantes de fenómenos vulcânicos; cascatas e piscinas naturais; reservas
florestais, parques naturais e paisagens protegidas; termalismo; jardins
botânicos e românticos; observação de aves, golfinhos e baleias; extensas e
verdejantes pastagens,… tudo isto no reino das “vacas felizes”.
Foram
igualmente felizes as iniciativas de marketing
associadas ao «leite de pastagens de vacas felizes» – leite produzido neste
arquipélago –, que promoveu a canção bem ritmada “Ilha das Vacas Felizes”, com
uma letra que refere: «Uma vaca feliz / outra vaca feliz / uma ilha de vacas
felizes / andam sempre a passear / têm vista para o mar / o pasto verdejante é
o seu manjar / (…) na encosta de um vulcão / bem no meio do oceano / há vacas
com muita sorte / vivem livres todo o ano (…)». Também resultam os folhetos
turísticos «Açores, certificado pela natureza» ou, como pode ler-se num outro,
«(…) transforma a paisagem em poesia».
Já
em fevereiro de 2017 tinha escrito o seguinte, na minha crónica “Vacas que Riem
–Vacas Felizes”, publicada na Bird Magazine: «É que (…) no arquipélago dos
Açores, temos vacas que são criadas em prados verdes, apresentam boa produção
leiteira e são mesmo apelidadas de “vacas felizes”. Estas vacas são expostas
apenas ao puro som do marulhar, da sinfonia dos pingos da chuva atlântica, da húmida
brisa, da folhagem da vegetação (com pastagens verdejantes cercadas de
hortênsias azuis) e do som telúrico saído das profundezas destas ilhas
vulcânicas, numa concórdia de elementos que embriagam. Trata-se de um programa
natural, criado pela mãe-natureza, com a qual as vacas tão bem se harmonizam». (Para
mais, aceder ao link: https://birdmagazine.blogspot.pt/2017/02/vacas-que-riem-vacas-felizes.html).
Durante
este circuito, além da magia da natureza, ficaram bem patentes os aspetos
ligados à fé, com realce para a grandiosidade da iluminação decorativa da
fachada do convento de Nossa Senhora da Esperança, em Ponta Delgada, onde fica
temporariamente o busto do Senhor Santo Cristo dos Milagres. Estas festividades
religiosas e pagãs atraem residentes e milhares de emigrantes e turistas. Destaque
também para a simpatia do povo açoriano, a riqueza da cultura e da história,
que se estende aos tempos do povoamento.
Sobre
esta última, apesar de haver indícios de visitas humanas na idade antiga,
crê-se que navegadores enviados pelo rei D. Dinis (1261 – 1325) terão chegado a
algumas destas ilhas, mas terá sido Diogo de Silves, em 1427, a (re)descobrir a
ilha de Santa Maria, seguindo-se São Miguel e mais algumas ilhas. O arranque do
povoamento só se deu em 1439, determinado por carta régia de 2 de julho do
mesmo ano; foi iniciado na ilha de Santa Maria por Gonçalo Velho, recém-nomeado
capitão-donatário, acompanhado de famílias oriundas de várias proveniências de
Portugal, a que se juntaram mouros, judeus e flamengos (estes por influência da
irmã do Infante D. Henrique); estendeu-se à ilha de São Miguel em 1444, por
nova carta régia, sendo ambas as ilhas doadas pelo Infante D. Henrique à Ordem
de Cristo.
Sobre
a natureza vulcânica e história das ilhas, sobressai o deslumbramento aquando
da vista sobre as caldeiras e lagoas. É impressionante a visita ao Centro de
Interpretação do Vulcão dos Capelinhos, na ilha do Faial, o qual entrou em
erupção em setembro de 1957 e originou fortes abalos de terra, com enormes
prejuízos materiais, obrigando à emigração de cerca de 40% da população
faialenses e muitos açorianos de outras ilhas, deixando famílias separadas durante
décadas.
É
igualmente impressionante o relato da batalha da Salga, que ocorreu em 1581 na
ilha Terceira, ao tempo do rei Filipe II de Castela, e que mostrou a
heroicidade dos terceirenses ao não se querem render aos castelhanos, quando
praticamente todo o território do reino de Portugal já lhe pertencia, desde o
ano anterior. Após o desembarque de cerca de mil combatentes castelhanos e uma
luta renhida, quando a vitória parecia pender para os invasores, apesar dos
atos de bravura destes portugueses, é aqui que se dá reviravolta ao entrar em
cena uma grande quantidade de vacas e bois (levados para as ilhas para produzir
carne e leite), gado que foi encaminhado em direção aos castelhanos, depois de
espicaçados com aguilhão e disparos das armas da época. Porque vestiam
armaduras pesadas e retroceder para o mar mostrou-se fatal, tornou-se mais
fácil a vitória portuguesa e a humilhação castelhana. É evidente que ficou o
culto e a tradição das largadas de touros à corda nesta ilha. Começa logo pelas
imagens de vídeo no aeroporto, enquanto se espera pela bagagem; no restaurante,
enquanto se toma a refeição; numa loja, para comprar uma qualquer “recordação”
do artesanato local, para oferecer… Um guia turístico, mesmo consciente dos custos
da insularidade, dizia na despedida: “Podem achar que somos loucos por vivermos
em cima de vulcões e corrermos à frente de touros, mas esta terra tem atrativos
suficientes para nos fazer querer viver aqui. Voltem com mais tempo e verão que
tenho razão”.
Chegado
ao continente, deparo-me com notícias simultâneas em todas as estações de
televisão, em que a cor predominante também é o verde. Depois de alguns “abalos”
frequentes, que vinham a aumentar de intensidade, foi espicaçado o “vulcão”
adormecido: um grupo de trinte e oito jovens, conotados com uma conhecida
claque de futebol, correu algumas centenas de metros e entrou na Academia do
Sporting, em Alcochete, causando terror entre jogadores da equipa profissional,
equipa técnica e staff e que, face à gravidade da ocorrência, levou o juiz de
instrução criminal a declarar a prisão preventiva, como medida de coacção, para
vinte e três jovens – aqueles que foi possível deter e levar a tribunal.
Ocorreu-me, que sendo Alcochete um concelho ribatejano com tradição nas
touradas e largadas de touros, seria interessante ver os campinos, com o seu
colete encarnado e barrete verde, encaminhar os touros na direção destes anormais
membros da claque, que acham normal ir-se para “reuniões” de rosto coberto;
seria interessante ver quão fortes seriam em grupo, com ou sem armaduras,
perante uma manada de touros em passada rápida. Foi possível, no continente, ver
estes loucos em cima de “vulcões” (criados por eles próprios) e que podem causar
prejuízos de muitos milhões de euros. Mas, em contrapartida, há que reconhecer:
daria mesmo gozo vê-los correr à frente de touros de lide, com pontas dos
cornos afiados e massa bruta de 500 kg!
© Jorge Nuno (2018)