Reconhece o que está à vista e aquilo
que está escondido de ti tornar-se-á claro aos teus olhos.
In Biblioteca de Nag Hammadi, coleção de
textos gnósticos do cristianismo primitivo (que vai desde a sua fundação até
cerca de 325 d.C.), contendo treze códices de papiro escritos em copta, a qual
foi descoberta em 1945 na região do Alto Egito, perto de Nag Hammadi.
AGE
QUOD AGIS [Não Te Distraias]
Há
cinco dias fiz a cobertura da festa de encerramento de mais um ciclo anual,
organizada conjuntamente pela APACDI – Associação de Pais e Amigos do Cidadão
Diminuído Intelectual e pelo CERCDI – Centro de Educação e Reabilitação do
Cidadão Diminuído Intelectual. Já o faço há uns anos e é sempre gratificante
ver o empenho e o esforço despendido na preparação do evento, culminar da
atividade desenvolvida, independentemente dos resultados esperados e obtidos.
Como tem vindo a acontecer, o espaço utilizado é cedido pela autarquia e
situa-se no interior das antigas muralhas do castelo, na velhinha Igreja de
Santo Onofre, depois designada Igreja da Misericórdia, agora transformada em
sala de exposições temporárias e sala polivalente, sempre que a programação o
exija.
Toda
esta zona, pela sua situação estratégica, foi palco de inúmeras disputas e
lutas ferozes entre povos, que remontam ainda à própria fundação do país. Terá
começado como uma pequena ermida, cuja data de edificação se perdeu no tempo e
que foi ampliada em meados do séc. XVI, ficando com o porte de uma igreja de
média dimensão, mas com a particularidade de ter uma bonita fachada com traços do
maneirismo, restaurada recentemente, com aproveitamento de todos os túmulos
existentes no seu interior, como tradição funerária naquela época, para os mais
poderosos. O projeto de restauro contemplou a ampliação da igreja, vindo a
ocupar o terreno contíguo nas traseiras, com a execução de um moderno edifício
de quatro salas, para albergar obras de valor documental, histórico e
artístico. Numa delas funciona um arquivo documental, simultaneamente como
espaço de investigação e classificação de achados arqueológicos. A outra sala funciona
como um museu vivo, de carácter etnográfico, de um passado recente. Uma
terceira contém um acervo de moedas e utensílios com vários séculos e até
milénios de existência, em ossos, metal e cerâmica e, uma ala, com destaque para
a pedra - muitas das quais com inscrições ao tempo da ocupação romana.
Finalmente, uma sala lúdico-pedagógica para acolher crianças e jovens de várias
idades, que ciclicamente visitam este espaço, no âmbito da frequente cooperação
entre escolas e autarquia.
No
espaço da igreja, agora transformada em sala de espetáculo, criou-se um pequeno
palco, com desvelo na decoração, luzes coloridas e sistema de som, para dar um
ar mais festivo, alegre e motivador à atuação dos jovens utentes da CERCDI. Uma
hora e meia antes, coloquei estrategicamente a câmara sobre o tripé e fiz
alguns ensaios prévios, apesar da iniciativa da reportagem ser a de compilar os
momentos mais interessantes, ocupando poucos minutos e gigabytes, para depois colocar online
a peça jornalística, no site da
InterVisão. Por regra, não o costumo fazer de uma forma generalizada, mas com
este tipo de público tão querido, até dou uns ligeiros retoques no material em
bruto e faço, posteriormente, uma sessão animada com os intervenientes e com os
seus pais, amigos e professores, para satisfação de todos, onde naturalmente me
incluo.
A
sala estava mesmo cheia e tudo parecia estar alinhado para uma tarde de verão
bem passada, mesmo em trabalho. Desagradável, por assim dizer, apenas o calor
próprio do verão, que agora se iniciava, a juntar ao tanto “calor humano” naquele
espaço e do calor proveniente dos projetores. Via-se muita gente a abanicar-se
ainda antes do início desta sessão e, cada vez mais, à medida que o tempo
passava, sendo evidente algum desconforto dos presentes. Estas crianças e
jovens iam entrando, representando o seu papel e saindo do palco em pequenos
grupos, a maior parte delas com vestimentas suplementares, de cariz ecológico –
aproveitamentos de papel, papelão e plástico, sempre com as orientações e
estímulos das educadoras e professoras. Surgiu então o inesperado e, pelo
insólito, senti-me atraído a fazer um grande plano deste jovem ator, que
aparentava ter cerca de onze anos, que se prolongou até uma professora ter
retirado o miúdo de palco, perante um enorme aplauso, com quase todos de pé,
como se se tivesse assistido à representação de um grande profissional. E o
espetáculo continuou, com os restantes membros do grupo e com a tolerância
habitual de quem admite que, nestes casos, não há derrotas e que são conquistas
diárias todos os pequenos progressos que se registem.
No
final da sessão, quando me preparava para guardar o meu equipamento e abandonar
o local, fui abordado pela mãe do miúdo, que me pediu para não divulgar
publicamente “aquelas” imagens, com o seu filho. Estava muito consternada e
pediu a minha compreensão.
Nunca
tinha estado tão ansioso para rever um vídeo e fazer a edição de imagem! Depois
de o rever, repeti… não sei quantas vezes. E tomei a decisão, que me pareceu
mais racional: fazer dois telefonemas e conseguir juntar, numa pequena sessão,
dois amigos – a Teresa, uma educadora que conhece bem o miúdo e, o Fernando, um
professor de Filosofia, que estudou num seminário e abandonou antes de se
ordenar padre. Estes, sugeriram-me também para convidar o senhor padre Miguel,
que anuiu e se juntou um pouco mais tarde ao grupo, quando lhe disse
sumariamente o conteúdo do vídeo e que a presença dele tinha importância.
Em
conjunto, visualizámos a tal parte do vídeo, transformando aqueles minutos em cerca
de três horas de acalorada conversa, com perspetivas diferentes sobre o
fenómeno observado. Ficou apenas uma possível tradução, com eventuais e
admitidos erros, pois tanto o Fernando como o padre Miguel argumentaram que o
tempo do latim já ia longe, tanto na aprendizagem como nas missas. Mesmo assim,
arrisquei a introduzir legendas em Latim e Português [entre parênteses reto].
A
peça de teatro infantil de curta duração intitulava-se “Galo, Galinho, Galão.
Agora já tenho esporão!?”, projeto com ambiência num galinheiro, cujo argumento
propiciava o esboçar de muitos sorrisos e vários intervenientes em palco, com o
galo mais velho a querer reformar-se e passar o testemunho ao galo Zé, bem mais
novo, mas com outro galo e uma galinha, filha do que se quer reformar, a
tentarem convencer que essa não era a melhor solução. A dada altura o nosso
jovem, que insistentemente mostrava inquietude e limpava o suor com as mãos,
pareceu abstrair-se de tudo e começou por dizer, sem convicção, as primeiras
palavras do texto que lhe estava destinado, após a deixa do colega, e depois
sentiu-se uma distorção da sua voz, com um timbre diferente, como se se
tratasse da voz de um adulto, comentando em jeito de enigma, com alguns aspetos
imperceptíveis:
–
Ex imo pectore [do fundo do coração] coram populo [sem receio] fiat lux [faça-se luz] fugit irreparabile tempus [o tempo foge
irreparavelmente] mea sententia [a
meu ver] difficile est satyram nom
scribere [(… diz-se) quando a sociedade está corrompida] lucri causa [pelo interesse, pelo lucro]
(…) modus in rebus [(…) em tudo deve
haver moderação] cui plus licet quam par
est, plus vult quam licet [aquele a quem se permite mais do que é justo
quer mais do que é permitido] (…) dormientibus
non succurrit [(…) o direito não ajuda os que dormem] (…)
Em
sobreposição, uma voz feminina na plateia falava alto, para se fazer ouvir: –
Não te distrais, não distraias!... – Para logo haver umas quantas vozes a
mandar calar essa mulher, levando a algum burburinho e muitos simultâneos shhiiiiiiiiuuu!
O
miúdo, indiferente, continuava na mesma toada: – (…) malesuada fames [a fome (é) má conselheira] (…) dum spiro spero [(…) enquanto respiro
tenho esperança] finita causa, cessat
effectus [acabada a causa, cessa o efeito] (…) mendaci ne verum quidem dicenti creditur [ (…) ninguém acredita no
mentiroso, mesmo quando fala verdade] (…) ad
nauseam [até enjoa] (…) pabula da
corvis, dement tibi lumina corvi [ (…) dá de comer aos corvos, eles te
arrancarão os olhos] (…) maio mori quam
fœdari [antes (quero) morrer que manchar-me] (…) fiat justitia, ruat cœlum [ (…) faça-se justiça, mesmo que o céu
caia] (…) – Sendo aqui que o miúdo, que parecia desfalecer, é retirado de cena,
perante muitas aclamações benévolas, de pé.
Diz
o Fernando – Ainda nós temos sorte em esta voz ser em latim e podermos, ou bem
ou mal, fazer uma aproximada tradução. Mas sei de casos em que a linguagem é
ininteligível, ou por exemplo, identificada como aramaico ou qualquer outro
dialeto com vários séculos antes de Cristo…
Surpreendentemente,
o padre Miguel, sai-se com esta – Fizeram bem em não interromper o miúdo pois
poderia ser prejudicial qualquer outra interferência.
A
educadora Teresa disse que nunca se tinha apercebido de algo deste género com o
miúdo, que já lidava com ele há uns anos e que, pela surpresa, sente que até
demorou a reagir. Acrescentando que sabia do caso de uma conhecida atriz, que
ocorreu em 2003 no castelo de Montemor-o-Velho, quando rodavam uma novela para
a TVI, creio que era “O Teu Olhar”, e que essa atriz também teve uma alteração
de personalidade, a par de outros fenómenos estranhos sentidos no local,
chegando mesmo a chamarem o pároco de Montemor, com a notícia a ser difundida na
ocasião pelo Correio da Manhã.
O
padre Miguel, confirmou saber deste caso, mas desvalorizou, dizendo que o
colega foi chamado para dar a bênção a quem a pediu, só isso!
O
Fernando insiste – Procurem Virginia Tighe no Google, que encarnou Bridey Murphy, uma irlandesa do séc. XIX – e
continuou a conversa, com intervenções dos outros dois, enquanto eu procurava
no computador portátil.
Poucos
instantes depois – Mas ela estava sob hipnose e a ti, se te hipnotizarem num
palco, podes estar convencidíssimo que estás numa jaula a domar um leão,
agarrado a uma vassoura a dançar o tango ou a fazer qualquer outra palermice
para o pessoal se rir! – digo eu, dirigido ao Fernando.
–
O que estás para aí a dizer?! Viram alguém a hipnotizar o miúdo? Só digo que há
provas genuínas da existência de vidas passadas e que há provas de
incorporações de entidades espirituais a quem é permitido usar o corpo de outra
pessoa para se manifestar – argumenta o Fernando, continuando – Quando chamam
um padre para fazer exorcismo, o que é isso? Acham que é só para deitar água benta
no local? Dar a bênção à pessoa? Mas mesmo sob hipnose pode chegar-se a vidas
passadas. É o que alguns terapeutas fazem na regressão…
–
O miúdo apanhou foi calor a mais e começou com alucinações! Acontece muitas
vezes… olha, por exemplo, aconteceu com vários tenistas profissionais na
Austrália e noutros países com temperaturas elevadas e até os apanha bolas… – Acabando eu por ser interrompido pelo Fernando.
–
Alucinações são percepções sem estímulos externos e o miúdo não tem sequer
consciência do que lhe aconteceu, não guarda memórias desta realidade…
–
Ainda bem que não se lembra – diz a Teresa – Coitada da criança e dos pais, já
lhe bastam o problema que tem. Deixa-os viver as suas vidas, naturalmente – vira-se
para mim e diz – Faz mas é o seguinte: trata da montagem do vídeo, excluis essa
parte e vai ser agradável rever a festa. Eles vão adorar! Estou mesmo a ver a
reação do galo Zé! – e esboçou um sorriso rasgado.
– Isso mesmo! – diz o padre Miguel
entusiasmado e continua, visivelmente a querer colocar uma pedra no assunto – É
um episódio passageiro e daqui a uns meses ninguém fala mais nisso e a criança
há de crescer sem qualquer sobressalto.
–
Pois… mas por que razão não podemos explorar um pouco mais este assunto, já que
um dos objetivos na vida é viver a verdade ou, pelo menos, procurar dar passos
para chegar até ela? – insiste o Fernando.
– Oh
filho, grandes são os desígnios de Deus, que muitas vezes temos dificuldade em
entender. Não tentes descobrir mistérios!... – remata o padre Miguel.
© Jorge Nuno (2014)