Todos sabemos que
quando nos rimos nos sentimos melhor. Comece a rir de si próprio. Quando
cometer um erro ria de si. Não se leve a sério! É muito importante para uma
vida saudável e relaxada.
Bob Proctor
ESCREVER NA
PEDRA BRANCA
Hoje, tal
como em quase todos os dias a seguir ao almoço, entro no meu escritório, ajeito
a persiana para ter claridade suficiente, deixando entrar os breves instantes
de sol de mais um dia chuvoso e faço uma rápida arrumação à secretária para
começar a trabalhar na escrita. Não tenho nenhuma ideia prévia, nem quanto à temática
nem quanto ao estilo… se vai sair um poema, um conto ou, quem sabe, se vou
iniciar outro romance. Recosto-me no cadeirão, semicerro os olhos e procuro
esvaziar a mente dos tristes problemas do quotidiano que me afetam, direta e
indiretamente, por mais que recuse as suas causas e a incapacidade de resolução.
Em turbilhão surgem-me muitos acontecimentos e aprendizagens anteriores e, em
particular, uma que pratico em resultado da interiorização da frase do Osho:
“Não se pode ser um criador se não se for um meditador”. Não sei quantos
minutos estive assim. Apenas sei que ao fim de algum tempo senti um impulso,
talvez por não estar a resultar totalmente a minha meditação, e levantei-me
bruscamente, dirigindo-me ao canto do escritório onde está o meu equipamento de
som de alta fidelidade. Meti um CD de música clássica no leitor, desta vez com
concertos favoritos, com destaque para Joahnn Sebastian Bach, Antonín Dvorák, Franz
Joseph Haydn, Claude Debussy, Franz Liszt, Manuel de Falla, Rimsky-Korsakoff e Joseph-Maurice
Ravel. Já sentado, enquanto ouvia o primeiro trecho e ainda sem iniciar a escrita,
lembrei-me de duas frases de gratidão, que costumo pronunciar diariamente. Uma
é atribuída a Maomé e diz: “A gratidão pela abundância que recebeu é a melhor
garantia de que a abundância irá continuar”. A outra frase é de Wallace Wattles,
que refere: “A mente grata espera continuamente coisas boas e a expetativa
torna-se fé”. Sinto que tenho razões para estar grato e agradeço ao Universo, e
desta vez mantenho mesmo os olhos cerrados, recostado para trás no cadeirão.
Vou-me desprendendo e, como que ao longe… ouço a aparente monotonia do Bolero,
com pouco mais de 14 minutos de melodia uniforme e repetitiva, mas com breves
sensações de mudança, através da dinâmica na orquestração, conseguida por Ravel.
Relaxo… relaxo… e, quando parecia que a inspiração tinha partido de fim de
semana, eis que algo começa a fluir…
“Hoje parece
dia de São Nunca. Apesar de alguém me dizer para não gastar o meu latim, algo
me impele a escrever “ad libitum” [a meu bel-prazer]. Não sei o que vai sair,
mas sei o que estou a sentir.
Podem
candidamente fazer crer: que o abuso não é uso, mas tão somente corrupção; que
o abuso não destrói o uso; que sendo o abuso repreensível continua a ser lícito
o uso; que a honestidade caiu em desuso; que o caminho do mal é fácil de
trilhar; que o mal vem sempre de trás; que atire a primeira pedra quem nunca
pediu; que aceitar um benefício é vender a liberdade; que um favor cria um
devedor; que um devedor precisa de um tutor; que o tutor é que o decisor; que a
decisão é antecipada e sustentada pelos peritos e pelos fazedores de opinião;
que os peritos é que têm os livros; que os fazedores de opinião sabem do que
falam; que na democracia cada um entrega o seu destino na mão de outros; que
até para a Autoridade Tributária cada contribuinte é sujeito passivo; que às
vezes lavando as mãos, sujamos a consciência; que é para ir até ao final do
caminho mesmo que o caminho não seja esse; que este país não é para velhos; que
agora este país também já não é para jovens; que os sete pecados não estão na
Constituição e que cumprir a própria Constituição é que é pecado…
Como
gostaria, tal como os antigos romanos, marcar o dia de hoje com uma pedra
branca, por ser um dia feliz. Por vermos passar o poder da mão de poucos para
as mãos de muitos; por vermos os problemas dos outros como os nossos problemas;
por se entender a educação como instrumento que transforma a sociedade; por
cada um arriscar ser “perito”, mesmo que cometa erros; por cada um promover o
que quer ver mudado e coletivamente definir a estratégia do país, sem descurar
os atos solidários e de criação de riqueza; por ver essa riqueza gerada ser distribuída
por todos…
Como gostaria de marcar o dia de hoje com uma
pedra branca, por ser um dia feliz. Mas tenho que marcar o dia de hoje com uma
pedra negra, porque negro está o meu país!”
Sinto um
leve toque no braço. Com alguma lentidão estendo os braços, para os
desentorpecer (por que não dizer espreguiçar?). Vou para esfregar os olhos e sinto
o obstáculo dos óculos. Olho vagamente em redor, de modo desfocado, talvez seja
a lente engordurada pela mão, e deparo-me com uma sombra à minha direita. É a
minha esposa, que a rir me pergunta:
– Queres tomar agora o comprimido para dormir?
– Hã?!
– Tenho aqui o comprimido para tu dormires!... – Insiste
ela, com ar brincalhão, lembrando-se de uma das brincadeiras que lhe contei há
40 anos, casos frequentes no tempo da tropa. E sem esperar pela minha reação,
pergunta, em jeito de pedido – Não vais arranjar o
lanchezinho à Nina?
Ainda
atordoado, respondo-lhe com um seco: – Logo
vi!
– Então?... Adormeceste? – Pergunta, já com ar mais
sério.
– Não sei… acho que estava a sonhar que estava a escrever
um conto! – Disse-lhe, provavelmente de modo pouco convincente, e como o poderia
ser se eu mesmo estava confuso?
– O homem, tu até sonhas com a escrita!.. Vai lá buscar o
lanchezinho, anda lá!
Cerca de um
quarto de hora depois na casa de banho, tentando reconstituir os factos, ainda
penso desordenadamente… – Mas eu tenho mesmo
coisas escritas, vi-as, estavam à minha frente! Falava em “escrever na pedra
branca”. Mas quando é que eu as escrevi? Sopraram-me ao ouvido? Tratou-se de
alguma psicografia? Não… que eu saiba não! Não, autopsicografia também não…
isso era com o Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor / finge tão
completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente (…)”. Mas
espera lá… a psicografia é possível, pois o Damião Ramos Cavalcanti publicou um
poema do Pessoa em 2010, que dizia qualquer coisa como isto: “Fingiu sem
fingimento /Alegria de ser poeta / Supondo com tormento (…)” e chamou-lhe
“Psicografia de Fernando Pessoa ou Fingir sem Fingimento”, mas pode não ter
sido psicografia, apenas um trocadilho de palavras muito bem articuladas em
memória do maior poeta português. Então, em que ficamos? Terá sido antes de
adormecer? Se foi, por que razão não me lembro? Ela diz que sou um
despassarado… um distraído, será que tenho que fazer o despiste do Mal de
Alzheimer? Por vezes, esqueço-me, é certo… Espera lá… O que é que almocei
ontem? Oops!... Mas não é assim tanta a confusão mental… Reconheço até que a
flexibilidade de pensamento estará mais apurada agora. Não sinto apatia, mas
grande genica. Estou com grande poder criativo. Se sinto irritabilidade?… Quem
não sente, ao ver o que se passa à nossa volta? Não estou desligado da
realidade, mas bem consciente dela. Acho-me mesmo uma pessoa lúcida. Neurónios
a morrer? Claro que sim, é natural com o envelhecimento, mas certo… certo… é
que os exercito todos os dias com a escrita. Diminuição de vocabulário? Não…
acho precisamente o contrário, pois tenho-o vindo a aumentar e muito, a cada
dia que passa. O dicionário é mesmo um companheiro indispensável, que prezo ter
sempre ao alcance da mão. Empobrecimento da linguagem? Não… ela está sempre a
dizer-me: “Oh homem, fala português!...”, por achar que “falo caro” e não haver
necessidade disso em ambiente familiar. Dificuldades de coordenação? Bem… já
não corro como dantes, mas para que é preciso correr, se basta andar
calmamente? Afetado pelo stresse? Qual stresse? Nunca estive tão bem!… Controlo
o tempo e o modo de o usar, apenas obedecendo à minha voz interior…
Coincidências…
quando estou a pensar “em voz”, ouço a da minha esposa:
– Nelinho!... Esqueceste o que te pedi?
Enquanto
tentava perceber o que ela tinha pedido, voltou à carga, parecendo, pelo timbre
de voz, estar a ficar impaciente:
– Então esse lanche vem ou não? Daqui a nada está mas é na
hora de fazer o jantar!...
Olho para o
espelho e vejo que estou na casa de banho – O que é
que estou aqui a fazer? – Interroguei-me e, pouco depois, encontrei a
resposta – Ah!... Vinha lavar as mãos! Mas para
quê, se eu estava a escrever um conto… Espera lá… agora me lembro… mas eu
estava a dormir!... Ou vim à casa de banho por ter lido, no conto, “escrever na
pedra branca” e a pedra de mármore branco só existir aqui, junto do lavatório?...
– Nelinho!... Estás a ouvir? Onde estás?
Interrompido
o meu raciocínio, respondo – Estou aqui, na casa
de banho.
– Não sabia. Pensei que tinhas ido a Espanha buscar o
lanche! – Diz com
tom irónico e continua a falar alto da outra divisão da casa – Mas se eu soubesse que estavas na casa de banho, estava
preocupada… não fosses pela sanita abaixo, parar ao rio Fervença!...
© Jorge Nuno (2014)
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