19/05/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (10) - Já Não Se Pode Dormir?

JÁ NÃO SE PODE DORMIR?

A seguir ao almoço, sento-me em frente ao meu PC para iniciar a crónica para a BIRD, e dou uma olhada pelo correio eletrónico, pelas notícias online e pela minha página do Facebook. Nesta, deparo-me, imediatamente, com uma foto na comunidade em que sou membro e com a qual me deliciei: uma imagem recente da Serra da Estrela, com um pastor deitado no chão, a dormir, enquanto as suas cabras se mantêm em vigília, junto às fragas e a pastar, dando a ideia, pela pose e pelo porte, de que os ares da serra dão um apetite devorador.
Há aqueles que não dormem em serviço – nem podem – acreditava eu, para bem de todos nós. Mas compreendo e entendo que este pastor fez mesmo bem em tirar uma soneca, e admito que sempre terá o seu cão de pastoreio (que não vi na foto) que, com determinação, vigia e pode pôr as cabras em ordem, se começarem a tresmalhar-se.
Não sei se por influência deste quadro bucólico, se pelo efeito do estômago composto, se pela temperatura exterior de 38º C, a verdade é que começo a sentir-me, rapidamente, no estágio 1 do sono NREM (Non Rapid Eye Movement), que é como quem diz: com uma sonolência! Sem desligar o computador, atirei-me para cima da cama ao lado, sem querer saber que esta fase costuma ter a duração aproximada de 5 minutos. Apenas sei que adormeci e devo ter chegado ao estágio 4 – o do sono profundo – como um Porsche Boxster GTS chega dos 0 aos 100 kms/h, ou seja, em 5 segundos!
Acordei cinquenta minutos depois, com o correr e gargalhar das pequenas vizinhas de cima, não sendo eu tão veloz quanto o Porsche a chegar aos 100 km/h… na minha tentativa de identificar e assimilar qual a proveniência do ruído. Poderia ficar rabugento e, na melhor das hipóteses, refilar coisas simples e educadas como: “Já não se pode dormir?”, ou “Ninguém põe as crianças a dormir?”, ou “Ninguém leva as crianças até ao jardim?” – sim, porque não sou dado a praguejar impropérios, embora por vezes dê mesmo vontade de perder a cabeça e começar a desatinar –. Em vez disso, lembrei-me do ator e escritor Peter Ustinov que terá dito que “o som de uma gargalhada sempre lhe pareceu a mais civilizada música do universo”. E aqui, não era uma gargalhada, mas muitas e repetidas gargalhadas, logo uma grande sinfonia enviada… quem sabe, pelo universo, para eu acordar. Em surdina, agradeço às miúdas e ao universo, pois a tão apregoada sesta, com efeitos benéficos para a saúde, estava razoavelmente cumprida e eu sentia uma vontade reforçada de escrever a crónica.
Talvez tenha dado para ver que eu não sou daqueles que sofre de perturbação comportamental do sono, e muito menos das “agruras da privação do sono e desacertos com os ritmos do bebé”, quando este teima em não querer dormir, já que passei por isso há mais de três décadas, lembrando-me que tinha que contar, milhentas vezes, a “história da menina muito chata”, história que era suposto ter o efeito contrário ao verificado.
Li algures que “vidas interessantes dão sonos tranquilos” e li, também, no livro “Dormir Tranquilo”, da autoria do pediatra Mário Cordeiro, que “o registo de vida stressante desregula a hormona do sono – a melatonina –. A ser assim, então a minha vida e a do pastor estavam a ser interessantes e sem stresse, com a diferença que ele sempre podia prolongar a sesta, sem ser acordado pelas miúdas a correr e a rir, nem pelo som das sinetas das cabras, a que já deveria estar imune.
A propósito da sesta, Sara Medrick, professora do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia, no seu livro “Durma a Sesta, Mude a sua Vida”, naturalmente, faz aquela apologia e alega que o desempenho é melhor quando se dorme mais. Uma pesquisa da NASA – a agência espacial norte-americana – aconselha que se durma no local de trabalho, pois terá chegado à conclusão que “os pilotos que fizeram uma sesta de 25 minutos estavam 35% mais atentos e duas vezes mais focados do que aqueles que não tinham dormido”. Outros estudos mostram que “as sestas dinamizam a aprendizagem, fazem com que aumente o sentimento de felicidade e ainda contribua para um aumento da atenção, memória, aprendizagem e criatividade”.
Temos que reconhecer que o sono – como estado normal de repouso para o corpo e mente – complementa o estado de vigília e que a sua privação pode afetar a regulação e regeneração das células e afetar, igualmente, o sistema imunológico. A ser assim, depois do que já tinha lido e do que agora escrevi, tenho duas dúvidas, por haver um difícil entendimento:
1.ª – Custa a admitir que nas longas e animadas sessões na Assembleia da República haja deputados que adormeçam, cumprindo o ritual da sesta sempre que lhes apetece e, face aos resultados comprovados dos estudos, não se veja um melhor desempenho com esse “passar pelas brasas”;
2.ª – Custa a admitir a veracidade da notícia veiculada pala BBC, com base em informações dos serviços secretos sul-coreanos enviados ao parlamento do seu país, que o líder supremo da Coreia do Norte, Kim Jong-un, tenha mandado executar o general Hyon Yong-Chol, ministro da defesa (tal como já fizera com o próprio tio), com tiro(s) de bateria antiaérea – método destinado à execução de altos funcionários e à frente de centenas de pessoas –, pelo ato “desrespeitoso” do general adormecer num evento público onde o líder supremo se encontrava.

Abençoado pastor que, em contacto com a natureza, aparentava o sono dos justos!
Abençoada sonolência que senti quando iniciei esta crónica, ainda sem tema, e sem ter que responder perante ninguém.
E se os factos são verdadeiros, estranho mundo… em que um general que ousou “passar pelas brasas” numa cerimónia oficial nem deva ter podido questionar educadamente: “Já não se pode dormir?

© Jorge Nuno (2015)


02/05/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (9) - Não Mais [Ditadura do] Pelo



NÃO MAIS [DITADURA DO] PELO



Habituei-me à sabedoria milenar chinesa, mas desta vez a notícia relâmpago fez mesmo faísca e deixou-me algo incrédulo. A notícia dava conta que na China um homem foi condenado a seis anos de prisão por se recusar a rapar a barba. Como os chineses têm vindo a comprar tudo o que podem… pensei que o caso pudesse estar relacionado aos negócios do pelo e, nuns laivos de excesso de fantasia, até já os estava a ver a ficar com as 29 dependências da Clínica do Pelo, espalhadas pelo litoral de Portugal. Afinal, vim a apurar que o citado caso aconteceu na província de Xinjiang, região do noroeste daquele país, predominantemente muçulmana, onde têm acontecido vários atentados e recrutamento para o Estado Islâmico.

Ainda há pouco tempo, um prisioneiro no Estado do Arkansas, submeteu o seu caso ao Supremo Tribunal dos EUA para esclarecer se ele, como muçulmano preso, pode ou não ter barba grande segundo a sua crença religiosa, quando outras 44 penitenciárias estaduais permitem o uso da barba. Levado ao extremo, este caso definirá se há, ou não, liberdade religiosa naquele país, tido como paladino da liberdade.

Na comunidade amish, os homens quando casam deixam de cortar a barba, sendo que a barba grande tem o mesmo simbolismo que a aliança no dedo – é um sinal que o homem é casado –. Aconteceu em Bergholz, no Estado de Ohio [EUA], um bispo amish e mais 15 seguidores usaram da força, à noite, para cortar a barba a um determinado número de homens da mesma comunidade, sendo levados a tribunal. A legislação prevê penas até 16 anos de prisão para quem forçar o corte da barba, contra a vontade própria e como forma de humilhação, por ser considerado um crime de ódio.

O pastor John Weaver, no seu sermão “O Significado Histórico e Bíblico da Barba”, menciona a barba fazendo referência a Levítico 19:26-28: “Não comereis coisa alguma com sangue; não agourareis nem adivinhareis; não cortareis o cabelo (…), nem danificareis as extremidades da barba (…). Eu sou o Senhor”. Neste sermão, acrescenta a dado passo: “Não estou a dizer que um homem que não tem barba é menos santificado que aquele que tem barba. Além disso, não estou a dizer que um homem com barba é mais santo do que um homem sem barba”, mas lá foi dizendo que, com base nas Escrituras, os homens tementes a Deus devem ter barbas visíveis. Avança ainda que o Quarto Concílio de Cartago, em 398, decretou. “ O clérigo não deixará o seu cabelo crescer, nem removerá a sua barba”.

Lembro-me da confusão que tem havido na paróquia de Canelas, com a recente substituição forçada do padre Roberto Carlos, contra a vontade do povo, e do seu substituto – o padre Albino Reis – a ser insultado à frente das câmaras de televisão, com alusão ao seu cabelo e barba compridas, numa mostra clara de intolerância, até pelo aspeto físico do “novo” padre.

Em Moçambique, na época colonial, era frequente os presos políticos colocados na cadeia central da Machava – ala do Centro de Recuperação Político-Social ou Secção Prisional da PIDE – não serem autorizados durante os primeiros nove meses de “internato forçado” a cortar o cabelo, a barba ou até mesmo lavar os dentes. Bem mais civilizados e tolerantes foram os legisladores e quem aprovou em 1843, em Portugal continental, o Regulamento Provisório das Cadeias, já que no Capítulo II, Artigo 5.º, dão-se instruções sobre o asseio e salubridade nas prisões, devendo o carcereiro “seguir as ordens que mandam limpar, lavar e arejar, e defumar as prisões; bem como as que obrigam os presos (…) a fazer a barba e a cortar as unhas e os cabelos em dias marcados.”

 Atualmente, a legislação portuguesa prevê sanções aos taxistas que se apresentem ao serviço com a barba por fazer e situação idêntica já foi adotada em alguns Estados do Brasil. Somos livres de questionar o porquê da aplicação destas regras a estes profissionais e não a outros, tais como médicos, chefs e muitos outros, em que pode estar em causa a higiene e até a saúde pública. Mencionei algumas profissões, mas é evidente que em qualquer das situações, por muitas boas razões que haja, pode estar a ser violado o Princípio da Igualdade consagrado no Artigo 13.º da CRP – Constituição da República Portuguesa, que estabelece que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” e “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”. Também o Artigo 26.º refere que “(…) A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, (…) à imagem, (…) e à proteção legal contra qualquer forma de discriminação”. Por acaso alguém consegue imaginar o filósofo e professor Agostinho da Silva ou o jornalista José Milhazes, sem barba? Ou os ex-futebolistas Toni e Fernando Chalana, sem bigode? Ou Jesus de Nazaré sem os seus cabelos longos e rapado, como Buda? É parte da sua identidade pessoal, da sua imagem e, como tal, seria desprovido de sentido privá-los do direito de usar barba, cabelo ou bigode, se assim o entenderam!

Infelizmente, não havia a CRP quando eu cumpri o serviço militar obrigatório, e se era incompreensível a discriminação!... Não podia usar barba no Exército, mas se estivesse na Marinha… podia! Quando fui recrutado, tive que forçosamente cortar a barba, rapar o cabelo e, resolvi aproveitar a única oportunidade para exibir uns pelos sobre o lábio superior: deixei ficar um bigodinho parecido com o do galã Errol Flynn. Numa visita do comandante da Região Norte ao quartel em Bragança, por questões protocolares compareci no gabinete do comandante da unidade, atual gabinete do presidente da autarquia, e àquele general, vindo do Porto, deu-lhe para embirrar com o meu vistoso a alourado bigode! Pegou numa esferográfica, levou o bico a um dos meus cantos da boca e disse, à frente de todos, que o meu bigode era um “bigode à chinês” e que não estava “conforme o regulamento militar”, humilhando-me publicamente.

Infelizmente, a CRP também não se aplicou ao ti moleiro da Augusta, que ao longo de mais de 60 anos de casado deixou a sua mais-que-tudo exercer o poder de matriarca, impedindo-o, despoticamente, de estar mais que 24 horas sem se barbear. Esse problema não teve a ti Ricarda, que me habituei a vê-la (há mais de 50 anos) a vender peixe de porta a porta, sem complexos e sem ditaduras legislativas relativas aos pelos, como mulher de máscula compleição física, a exibir o seu bigode preto, farfalhudo, de fazer inveja a qualquer homem.

Estranho mundo… ainda mais estranho se eu fizer o exercício do “se”! Se o chinês muçulmano – que eu julgava ser obrigado a ser ateu – vivesse há 50 anos atrás, em Moçambique, poderia ser à mesma preso político, mas sempre teria a hipótese de conservar a barba por 6 meses; se o bispo amish vivesse em Portugal no final do Séc. XIX, poderia estar preso, mas seria obrigado a cortar a barba, no tempo definido por lei; se o velho moleiro pertencesse à comunidade religiosa do pastor John Weaver, poderia continuar a ser temente da sua Augusta, mas não seria considerado temente de Deus, por não ter barba visível; se o caso do meu bigode – que face ao regulamento militar português ultrapassava o limite previsto em 3 mm – viesse a ocorrer nos EUA, poderia continuar a usar “bigode à chinês”, mas seria a minha “vingança de chinês” quando processasse judicialmente o general, por humilhação pública, que o poderia levar a uma pena de prisão efetiva; se Jesus de Nazaré voltasse novamente, agora com a missão de pacificar os paroquianos de Canelas, poderia sentir-se a sua enorme aura e ver-se os seus cabelos longos, mas adivinha-se a dificuldade que teria em cumprir a sua missão entre aqueles católicos; se os legisladores não estivessem quietos com a pata e ousassem continuar a legislar sobre o pelo, se lhes fosse aplicada, sumariamente, uma pena de prisão perpétua, pelo menos haveria, na humanidade, uma geração sem confusões, de gente feliz por poder usar barba, ou por rapá-la, consoante a sua própria vontade. Mas nem tudo seriam rosas!… Pois mesmo que não houvesse legislação sobre pelo, nem legisladores no ativo, até a ti Ricarda – que viveu feliz, no tempo e local certo – se tivesse vivido 50 anos mais tarde, precisamente agora e no mesmo local, teria que gastar, por mês, o valor de uma canastra de cavalas, chicharros, ruivos e chaputas, só para ir à depilação a laser à Clínica do Pelo, devido à pressão social e ao sloganNão mais pelo”, até retirar, definitivamente, o seu bigode farfalhudo, o que a faria perder a sua identidade e imagem de marca!

© Jorge Nuno (2015)