JÁ NÃO SE PODE DORMIR?
A seguir ao almoço, sento-me em
frente ao meu PC para iniciar a crónica para a BIRD, e dou uma olhada pelo
correio eletrónico, pelas notícias online
e pela minha página do Facebook. Nesta, deparo-me, imediatamente, com uma foto
na comunidade em que sou membro e com a qual me deliciei: uma imagem recente da
Serra da Estrela, com um pastor deitado no chão, a dormir, enquanto as suas
cabras se mantêm em vigília, junto às fragas e a pastar, dando a ideia, pela
pose e pelo porte, de que os ares da serra dão um apetite devorador.
Há aqueles que não dormem em
serviço – nem podem – acreditava eu, para bem de todos nós. Mas compreendo e
entendo que este pastor fez mesmo bem em tirar uma soneca, e admito que sempre terá
o seu cão de pastoreio (que não vi na foto) que, com determinação, vigia e pode
pôr as cabras em ordem, se começarem a tresmalhar-se.
Não sei se por influência deste
quadro bucólico, se pelo efeito do estômago composto, se pela temperatura
exterior de 38º C, a verdade é que começo a sentir-me, rapidamente, no estágio
1 do sono NREM (Non Rapid Eye Movement), que é como quem diz: com uma sonolência! Sem
desligar o computador, atirei-me para cima da cama ao lado, sem querer saber que
esta fase costuma ter a duração aproximada de 5 minutos. Apenas sei que
adormeci e devo ter chegado ao estágio 4 – o do sono profundo – como um Porsche Boxster GTS chega dos 0 aos 100
kms/h, ou seja, em 5 segundos!
Acordei cinquenta minutos depois,
com o correr e gargalhar das pequenas vizinhas de cima, não sendo eu tão veloz
quanto o Porsche a chegar aos 100
km/h… na minha tentativa de identificar e assimilar qual a proveniência do
ruído. Poderia ficar rabugento e, na melhor das hipóteses, refilar coisas simples
e educadas como: “Já não se pode dormir?”, ou “Ninguém põe as crianças a
dormir?”, ou “Ninguém leva as crianças até ao jardim?” – sim, porque não sou
dado a praguejar impropérios, embora por vezes dê mesmo vontade de perder a
cabeça e começar a desatinar –. Em vez disso, lembrei-me do ator e escritor
Peter Ustinov que terá dito que “o som de uma gargalhada sempre lhe pareceu a
mais civilizada música do universo”. E aqui, não era uma gargalhada, mas muitas
e repetidas gargalhadas, logo uma grande sinfonia enviada… quem sabe, pelo
universo, para eu acordar. Em surdina, agradeço às miúdas e ao universo, pois a
tão apregoada sesta, com efeitos benéficos para a saúde, estava razoavelmente
cumprida e eu sentia uma vontade reforçada de escrever a crónica.
Talvez tenha dado para ver que
eu não sou daqueles que sofre de perturbação comportamental do sono, e muito
menos das “agruras da privação do sono e desacertos com os ritmos do bebé”, quando
este teima em não querer dormir, já que passei por isso há mais de três décadas,
lembrando-me que tinha que contar, milhentas vezes, a “história da menina muito
chata”, história que era suposto ter o efeito contrário ao verificado.
Li algures que “vidas
interessantes dão sonos tranquilos” e
li, também, no livro “Dormir Tranquilo”, da autoria do pediatra Mário Cordeiro,
que “o registo de vida stressante desregula a hormona do sono – a melatonina –.
A ser assim, então a minha vida e a do pastor estavam a ser interessantes e sem
stresse, com a diferença que ele sempre podia prolongar a sesta, sem ser acordado
pelas miúdas a correr e a rir, nem pelo som das sinetas das cabras, a que já
deveria estar imune.
A propósito da sesta, Sara
Medrick, professora do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia,
no seu livro “Durma a Sesta, Mude a sua Vida”, naturalmente, faz aquela
apologia e alega que o desempenho é melhor quando se dorme mais. Uma pesquisa
da NASA – a agência espacial norte-americana – aconselha que se durma no local
de trabalho, pois terá chegado à conclusão que “os pilotos que fizeram uma
sesta de 25 minutos estavam 35% mais atentos e duas vezes mais focados do que
aqueles que não tinham dormido”. Outros estudos mostram que “as sestas
dinamizam a aprendizagem, fazem com que aumente o sentimento de felicidade e
ainda contribua para um aumento da atenção, memória, aprendizagem e
criatividade”.
Temos
que reconhecer que o sono – como estado normal de repouso para o corpo e mente –
complementa o estado de vigília e que a sua privação pode afetar a regulação e
regeneração das células e afetar, igualmente, o sistema imunológico. A ser assim,
depois do que já tinha lido e do que agora escrevi, tenho duas dúvidas, por haver
um difícil entendimento:
1.ª
– Custa a admitir que nas longas e animadas sessões na Assembleia da República haja
deputados que adormeçam, cumprindo o ritual da sesta sempre que lhes apetece e,
face aos resultados comprovados dos estudos, não se veja um melhor desempenho
com esse “passar pelas brasas”;
2.ª
– Custa a admitir a veracidade da notícia veiculada pala BBC, com base em informações
dos serviços secretos sul-coreanos enviados ao parlamento do seu país, que o
líder supremo da Coreia do Norte, Kim Jong-un, tenha mandado executar o general Hyon Yong-Chol, ministro da
defesa (tal como já fizera com o próprio tio), com tiro(s) de bateria antiaérea
– método destinado à execução de altos funcionários e à frente de centenas de
pessoas –, pelo ato “desrespeitoso” do general adormecer num evento público
onde o líder supremo se encontrava.
Abençoado
pastor que, em contacto com a natureza, aparentava o sono dos justos!
Abençoada
sonolência que senti quando iniciei esta crónica, ainda sem tema, e sem ter que
responder perante ninguém.
E
se os factos são verdadeiros, estranho mundo… em que um general que ousou “passar
pelas brasas” numa cerimónia oficial nem deva ter podido questionar
educadamente: “Já não se pode dormir?”
© Jorge Nuno (2015)