NÃO MAIS [DITADURA DO] PELO
Habituei-me à sabedoria milenar
chinesa, mas desta vez a notícia relâmpago fez mesmo faísca e deixou-me algo
incrédulo. A notícia dava conta que na China um homem foi condenado a seis anos
de prisão por se recusar a rapar a barba. Como os chineses têm vindo a comprar
tudo o que podem… pensei que o caso pudesse estar relacionado aos negócios do pelo
e, nuns laivos de excesso de fantasia, até já os estava a ver a ficar com as 29
dependências da Clínica do Pelo, espalhadas pelo litoral de Portugal. Afinal,
vim a apurar que o citado caso aconteceu na província de Xinjiang, região do
noroeste daquele país, predominantemente muçulmana, onde têm acontecido vários
atentados e recrutamento para o Estado Islâmico.
Ainda há pouco tempo, um prisioneiro no
Estado do Arkansas, submeteu o seu caso ao Supremo Tribunal dos EUA para
esclarecer se ele, como muçulmano preso, pode ou não ter barba grande segundo a
sua crença religiosa, quando outras 44 penitenciárias estaduais permitem o uso
da barba. Levado ao extremo, este caso definirá se há, ou não, liberdade
religiosa naquele país, tido como paladino da liberdade.
Na comunidade amish, os homens quando casam deixam de cortar a barba, sendo que a
barba grande tem o mesmo simbolismo que a aliança no dedo – é um sinal que o
homem é casado –. Aconteceu em Bergholz, no Estado de Ohio [EUA], um bispo amish e mais 15 seguidores usaram da
força, à noite, para cortar a barba a um determinado número de homens da mesma
comunidade, sendo levados a tribunal. A legislação prevê penas até 16 anos de
prisão para quem forçar o corte da barba, contra a vontade própria e como forma
de humilhação, por ser considerado um crime de ódio.
O pastor John Weaver, no seu sermão “O
Significado Histórico e Bíblico da Barba”, menciona a barba fazendo referência
a Levítico 19:26-28: “Não comereis coisa alguma com sangue; não agourareis nem
adivinhareis; não cortareis o cabelo (…), nem danificareis as extremidades da
barba (…). Eu sou o Senhor”. Neste sermão, acrescenta a dado passo: “Não estou
a dizer que um homem que não tem barba é menos santificado que aquele que tem
barba. Além disso, não estou a dizer que um homem com barba é mais santo do que
um homem sem barba”, mas lá foi dizendo que, com base nas Escrituras, os homens
tementes a Deus devem ter barbas visíveis. Avança ainda que o Quarto Concílio
de Cartago, em 398, decretou. “ O clérigo não deixará o seu cabelo crescer, nem
removerá a sua barba”.
Lembro-me da confusão que tem havido na
paróquia de Canelas, com a recente substituição forçada do padre Roberto
Carlos, contra a vontade do povo, e do seu substituto – o padre Albino Reis – a
ser insultado à frente das câmaras de televisão, com alusão ao seu cabelo e barba
compridas, numa mostra clara de intolerância, até pelo aspeto físico do “novo”
padre.
Em Moçambique, na época colonial, era
frequente os presos políticos colocados na cadeia central da Machava – ala do
Centro de Recuperação Político-Social ou Secção Prisional da PIDE – não serem
autorizados durante os primeiros nove meses de “internato forçado” a cortar o
cabelo, a barba ou até mesmo lavar os dentes. Bem mais civilizados e tolerantes
foram os legisladores e quem aprovou em 1843, em Portugal continental, o
Regulamento Provisório das Cadeias, já que no Capítulo II, Artigo 5.º, dão-se
instruções sobre o asseio e salubridade nas prisões, devendo o carcereiro
“seguir as ordens que mandam limpar, lavar e arejar, e defumar as prisões; bem
como as que obrigam os presos (…) a fazer a barba e a cortar as unhas e os
cabelos em dias marcados.”
Atualmente,
a legislação portuguesa prevê sanções aos taxistas que se apresentem ao serviço
com a barba por fazer e situação idêntica já foi adotada em alguns Estados do
Brasil. Somos livres de questionar o porquê da aplicação destas regras a estes
profissionais e não a outros, tais como médicos, chefs e muitos outros, em que pode estar em causa a higiene e até a
saúde pública. Mencionei algumas profissões, mas é evidente que em qualquer das
situações, por muitas boas razões que haja, pode estar a ser violado o
Princípio da Igualdade consagrado no Artigo 13.º da CRP – Constituição da
República Portuguesa, que estabelece que “todos os cidadãos têm a mesma
dignidade social e são iguais perante a lei” e “ninguém pode ser privilegiado,
beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer
dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem,
religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica,
condição social ou orientação sexual”. Também o Artigo 26.º refere que “(…) A
todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, (…) à imagem, (…) e à
proteção legal contra qualquer forma de discriminação”. Por acaso alguém
consegue imaginar o filósofo e professor Agostinho da Silva ou o jornalista
José Milhazes, sem barba? Ou os ex-futebolistas Toni e Fernando Chalana, sem
bigode? Ou Jesus de Nazaré sem os seus cabelos longos e rapado, como Buda? É
parte da sua identidade pessoal, da sua imagem e, como tal, seria desprovido de
sentido privá-los do direito de usar barba, cabelo ou bigode, se assim o
entenderam!
Infelizmente, não havia a CRP quando eu
cumpri o serviço militar obrigatório, e se era incompreensível a discriminação!...
Não podia usar barba no Exército, mas se estivesse na Marinha… podia! Quando
fui recrutado, tive que forçosamente cortar a barba, rapar o cabelo e, resolvi
aproveitar a única oportunidade para exibir uns pelos sobre o lábio superior: deixei
ficar um bigodinho parecido com o do galã Errol Flynn. Numa visita do
comandante da Região Norte ao quartel em Bragança, por questões protocolares compareci
no gabinete do comandante da unidade, atual gabinete do presidente da autarquia,
e àquele general, vindo do Porto, deu-lhe para embirrar com o meu vistoso a
alourado bigode! Pegou numa esferográfica, levou o bico a um dos meus cantos da
boca e disse, à frente de todos, que o meu bigode era um “bigode à chinês” e
que não estava “conforme o regulamento militar”, humilhando-me publicamente.
Infelizmente, a CRP também não se aplicou
ao ti moleiro da Augusta, que ao
longo de mais de 60 anos de casado deixou a sua mais-que-tudo exercer o poder
de matriarca, impedindo-o, despoticamente, de estar mais que 24 horas sem se
barbear. Esse problema não teve a ti
Ricarda, que me habituei a vê-la (há mais de 50 anos) a vender peixe de porta a
porta, sem complexos e sem ditaduras legislativas relativas aos pelos, como
mulher de máscula compleição física, a exibir o seu bigode preto, farfalhudo,
de fazer inveja a qualquer homem.
Estranho mundo… ainda mais estranho se eu
fizer o exercício do “se”! Se o chinês muçulmano – que eu julgava ser obrigado
a ser ateu – vivesse há 50 anos atrás, em Moçambique, poderia ser à mesma preso
político, mas sempre teria a hipótese de conservar a barba por 6 meses; se o
bispo amish vivesse em Portugal no
final do Séc. XIX, poderia estar preso, mas seria obrigado a cortar a barba, no
tempo definido por lei; se o velho moleiro pertencesse à comunidade religiosa
do pastor John Weaver, poderia continuar a ser temente da sua Augusta, mas não
seria considerado temente de Deus, por não ter barba visível; se o caso do meu bigode
– que face ao regulamento militar português ultrapassava o limite previsto em 3
mm – viesse a ocorrer nos EUA, poderia continuar a usar “bigode à chinês”, mas seria
a minha “vingança de chinês” quando processasse judicialmente o general, por
humilhação pública, que o poderia levar a uma pena de prisão efetiva; se Jesus
de Nazaré voltasse novamente, agora com a missão de pacificar os paroquianos de
Canelas, poderia sentir-se a sua enorme aura e ver-se os seus cabelos longos,
mas adivinha-se a dificuldade que teria em cumprir a sua missão entre aqueles
católicos; se os legisladores não estivessem quietos com a pata e ousassem
continuar a legislar sobre o pelo, se lhes fosse aplicada, sumariamente, uma
pena de prisão perpétua, pelo menos haveria, na humanidade, uma geração sem
confusões, de gente feliz por poder usar barba, ou por rapá-la, consoante a sua
própria vontade. Mas nem tudo seriam rosas!… Pois mesmo que não houvesse legislação
sobre pelo, nem legisladores no ativo, até a ti Ricarda – que viveu feliz, no tempo e local certo – se tivesse
vivido 50 anos mais tarde, precisamente agora e no mesmo local, teria que
gastar, por mês, o valor de uma canastra de cavalas, chicharros, ruivos e
chaputas, só para ir à depilação a laser à Clínica do Pelo, devido à pressão
social e ao slogan “Não mais pelo”, até retirar,
definitivamente, o seu bigode farfalhudo, o que a faria perder a sua identidade
e imagem de marca!
© Jorge Nuno (2015)
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