21/11/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (23) - Televisão - Essa Caixa Mágica

TELEVISÃO, ESSA CAIXA MÁGICA

Comemora-se, na presente data, o Dia Mundial da Televisão, instituído pelas Nações Unidas em 1996. A televisão faz-me ter presente a imagem do café do Bafeta, cujo proprietário, corcunda, era uma figura castiça e manhosa, mas com a ousadia suficiente para adquirir o primeiro televisor da localidade – um caixote enorme com imagem a preto e branco, pois claro –. Estávamos em 1957, ano em que teve início a televisão em Portugal. Havia um canal único e bem controlado, em tempo de ditadura. Como o estabelecimento, tipo tasca, era relativamente pequeno, assim como eu (pois ainda frequentava a escola primária), ficávamos em pé, do lado de fora, tal como era frequente na capela, nas cerimónias religiosas em dias festivos. Só que para ver a televisão a paixão e o fervor seria maior, pois até púnhamo-nos em bicos de pés, a acotovelar-nos no exterior e a espreitar pelas duas pequenas janelas, para tentar ver alguma coisa.

Foi aí, no café do Bafeta, que tive acesso pela primeira vez às artes de palco, tudo em direto, deixando-me fascinado. Foi aí que vi as primeiras peças de teatro e filmes portugueses, os quais foram repetidos à exaustão, e que, estranhamente, eram sempre revistos com agrado. Relembro “Aniki Bóbó”, de Manoel de Oliveira, e uma série de comédias bem-sucedidas como o “Pátio das Cantigas”, o “Leão da Estrela”, “A Canção de Lisboa”, a “Aldeia da Roupa Branca”, a “Maria Papoila” e “O Costa do Castelo”, de que faziam parte grandes atrizes e atores, como Vasco Santana, António Silva, Ribeirinho, Milu, Laura Alves, Mirita Casimiro, Beatriz Costa, Curado Ribeiro (…).

Mais tarde, na Casa do Povo, e com uma enorme plateia, sentada, a olhar para aquela caixa mágica, assisti ao mais emocionante jogo de futebol de que tenho memória. Decorreu em Londres, no ano de 1966, e tratou-se do célebre Coreia do Norte – Portugal, na estreia de ambos num campeonato mundial. Portugal perdia por 3 – 0 e viria a ganhar, heroicamente, por 3-5, com 4 golos do saudoso Eusébio, que se sagrou o melhor goleador da prova e contribuiu para que Portugal chegasse ao 3.º lugar, ao eliminar a União Soviética, que tinha o melhor guarda-redes do mundo – Yashin –. Já naquela altura havia maluqueira pelo futebol, a ponto de o meu avô paterno, que trazia trabalhadores à jorna no campo, dispensá-los para verem este jogo, pagando-lhes como se estivessem a trabalhar. Nesse mesmo ano, teria a possibilidade de ver a peça “As Árvores Morrem de Pé, com a Palmira Bastos, na sua bela idade de 90 anos, a ter uma magnífica representação e a deixar-nos a frase que ficou célebre: “Morta por dentro, mas de pé, como as árvores”, a qual serviu de inspiração a muitas mulheres deste país, numa altura em que estas não eram minimamente valorizadas na sociedade.

Outro programa que marcou o panorama televisivo (à época, duplamente cinzentão) foi o primeiro talk show português e uma lufada de ar fresco – o Zip-Zip –, que teve apresentação de Raul Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz. De igual modo, marcou-me a mim também, mesmo ainda sem saber que os conteúdos eram previamente negociados com a PIDE, e que entre os espetadores que assistiam à gravação no Teatro Villaret estava sempre um agente da mesma polícia política. Apesar das restrições, a crítica subliminar, feita através de este programa, serviu para alertar muitas consciências.

Em 1968 surgiu um segundo canal da RTP. Apesar de ele, durante muito tempo, ter uma fatia de mercado na ordem dos 4%, eu fazia parte de uma minoria que o privilegiava, para ver programas de índole cultural.

Em 1975, ano em que se iniciaram as emissões a cores, já se respirava liberdade e os programas refletiam isso.

Nos anos 80, quem passava os “domingos de alcatifa” fez de “O Passeio dos Alegres” um programa de sucesso. Era um programa de entretenimento apresentado pelo Júlio Isidro, que lançou imensos jovens talentosos, hoje artistas consagrados ou… esquecidos. Entretanto, o Herman José fazia sucesso com programas humorísticos, com destaque para o “boneco” criado por si – o Diácono Remédios –, a fazer-nos lembrar, com sorrisos, a censura de má memória. Também a Ivone Silva e o Camilo de Oliveira faziam furor com “Sabadabadu”, um programa de humor que teve curta duração, mas que se via com muito agrado, devido ao talento de ambos.

Em 1992 surgiu a primeira estação de televisão privada em Portugal – a SIC –. No ano seguinte, foi a vez da TVI. Dai para cá deu-se uma evolução espantosa, mas com as seguintes ressalvas: o falhanço da alteração do sinal analógico pelo sinal digital, através da “imposição” da TDT – Televisão Digital Terrestre; o evidente exagero de muitos programas que recorrem à mesma estratégia de autofinanciamento, com recurso a chamadas de valor acrescentado; os enormes intervalos, cheio de publicidade, que fazem esquecer que programa estava ser transmitido; o baixo nível de programas [incompreensivelmente] de grande audiência, como os reality shows, pelo voyerismo, ou os programas musicais no exterior, em que se valoriza a mediocridade; todos os canais generalistas têm um número anormal de rubricas com culinária, numa altura em que falta o pão em muita mesa; as imagens com os horrores da humanidade, em direto, levando à banalização, à indiferença… estendendo, no tempo, as notícias sem novidades, numa luta pela liderança de audiências; os inúmeros “fazedores de opinião”, pagos principescamente, com a estratégia de influenciar; os julgamentos na “praça pública”, com revelação de processos judiciais em segredo de justiça; os elevados riscos para a saúde física e mental das pessoas, e particularmente as crianças, devido ao número excessivo de horas em frente ao televisor. Mas falava de “evolução espantosa”. Num curto espaço de tempo, passou-se de apenas quatro para uma “infinidade” de canais. As velhas antenas nos telhados foram substituídas pelas antenas parabólicas, para logo caírem em desuso. Surgiu o sistema por cabo coaxial, para logo aparecer o de fibra ótica. Hoje, os pacotes com 200 ou mais canais [pagos, naturalmente] estão associados a uma box, que permite selecionar: canais generalistas; informação; desporto; entretenimento; programas infantis; filmes e séries; estilos de vida (moda, culinária…); documentários; música; estações de rádio; sistemas de gravação automática e manual; sistema de videoclube; apps (jogos, compras, youtube…); área do cliente (para gestão dos serviços adquiridos ou a adquirir). Como se isto não bastasse, há televisões que permitem imagem em HD, 3D e agora Ultra HD e, com uma smart tv, tem-se acesso à internet e pode usar-se com as funções de um computador. Apesar de se ver televisão nos smartphones, na rua ou em qualquer lugar, sem fios, e ter-se acesso a programas emitidos até há 7 dias atrás, tenho noção que dentro de 10 anos, se esta crónica voltar a ser lida, alguém irá sorrir por toda esta tecnologia/ maravilha se encontrar obsoleta.

Bem… não sei se será bem assim. A ser como no filme “Idiocracy”, traduzido para “Terra de Idiotas”, o desfecho será mesmo bem diferente. Trata-se de um filme em HD, que passou recentemente num canal de televisão, englobado no tal pacote. Resumidamente, o argumento retrata um homem banal, talvez pouco inteligente, com a tarefa de um bibliotecário nas instalações de uma unidade militar, cujo local de trabalho mais parecia a de um arquivo morto. O personagem principal, Joe Bauers, encarnado pelo ator Luke Wilson, vê-se envolvido num projeto militar de hibernação, na expetativa de ser “acordado” ao fim de um ano. Só que o projeto viria a ser abandonado e o bibliotecário esquecido. O personagem surge uns séculos depois, no ano de 2505… Eu gosto de humor inteligente, e reconheço que neste havia idiotice a mais para o meu [bom] gosto. Confesso que senti um forte impulso para desistir de ver o filme e, simplesmente, mudar de canal ou ir ler, como tantas vezes faço. Mas não, resisti, pela curiosidade, e fui mesmo até ao fim. No prosseguimento do filme… o Joe Bauers deu-se conta que estava perante uma população sem neurónios, completamente alienada e estupidificada pela televisão, o que fazia dele o indivíduo mais inteligente de todos, e viria a resolver muitas das trapalhadas em que os outros (e ele próprio) estavam metidos. Estando eu bem longe de aplicar um rótulo de “qualidade” neste filme, mesmo na presunção de ser uma caricatura, não deixa o mesmo de nos alertar para os perigos da alienação através da televisão. E pelo jeito que isto leva!…

© Jorge Nuno (2015)

07/11/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (22) - Em Força... na Terceira Idade

EM FORÇA… NA TERCEIRA IDADE

Há poucos dias atingi, oficialmente, a chamada terceira idade. Pode parecer estranho e soar a falso, mas esse facto encheu-me de uma genuína alegria. Durante alguns anos, como professor numa Universidade Sénior, encorajei os meus alunos a um envelhecimento ativo, por acreditar nas suas potencialidades e tendo em vista, sempre, a melhoria da qualidade de vida. Numa sociedade inclusiva, como entendo que deverá ser a nossa, devem ser “dadas” oportunidades aos idosos. E na eventual ausência dos convenientes apoios formais, essas oportunidades devem ser “conquistadas”, a partir das bases, por iniciativa dos próprios. Há que cuidar da manutenção da saúde física e mental, como também de prolongar a autonomia e independência, mantendo ou recriando, cada um, os seus objetivos – bem pessoais –, de acordo com as suas tendências, capacidades e talentos.

Hoje, sinto que é isso mesmo que procuro fazer. Se apregoei a “aprendizagem ao longo da vida” e estive envolvido em projetos nacionais que tornaram isso possível a muitos cidadãos, hoje mantenho essa postura de entusiasta pela aprendizagem, apesar da minha condição de aposentado. Se o culto pela leitura esteve sempre presente na minha vida, hoje está mais do que nunca, pela minha maior disponibilidade. Tenho sobre a minha secretária dois livros, que vou intervalando na leitura, além da permanente consulta do dicionário. Um deles é “Um Cérebro Sempre Jovem”, de Tony Buzan, em que na introdução, pode ler-se algo surpreendente: Pare de pensar que cada ano que passa o aproxima mais dos seus terríveis “momentos seniores” (…). É um erro completo partir do princípio de que o seu cérebro se deteriora com a idade: existem dados científicos que o comprovam. A verdade é que tem de cuidar do seu cérebro, tal como qualquer outra parte do seu corpo, para o manter em bom funcionamento (…). Mantenha o seu cérebro ágil e em forma, e ele terá um desempenho tão bom quanto pretende. Conseguirá, de facto, ser capaz de o manter à prova de idade.    

Vi reforçada a perceção, que sempre me tinha acompanhado, de que deveria fazer um bom uso do cérebro, a começar por ter que o exercitar sem descanso. Foi nesta perspetiva que optei, há uns anos, por aderir ao “novo acordo ortográfico”, mesmo sabendo da discordância dos puristas da língua e de todos aqueles acomodados, pouco ou nada sensíveis a qualquer mudança, seja ela qual for, e do imenso investimento e embaraço pessoal que isso implicaria, para mim. Comprei um novo dicionário, com as palavras escritas “corretamente” segundo o novo acordo. Ao mesmo tempo, adquiri o livro “Saber Usar a Nova Ortografia”, de Edite Estrela, Maria José Leitão e Maria Almira Soares. Como sempre fui um homem de ação, escrevi, escrevi, escrevi… e de uma pessoa que estava numa posição confortável, passei a ser uma das “pessoas que são constantemente assaltadas pelas dúvidas linguísticas mais elementares” e pelas dúvidas relacionadas com a capacidade do meu cérebro, que aparentava perder qualidades. É esta uma das razões do aparecimento do meu segundo romance, que intitulei “O Milagre da Memória” (ainda não editado). E também do aparecimento do segundo livro, que adquiri e está atualmente, de forma permanente, em cima da minha secretária – “500 Erros Mais Comuns na Língua Portuguesa”, de Sandra Duarte Tavares –, que tem um curto e delicioso prefácio de Ricardo Araújo Pereira, e que aqui deixo um breve excerto: A minha profissão é escrever textos humorísticos. (Interpretá-los é apenas um acidente, muitas vezes na dupla acepção de acaso e desastre). O meu trabalho é escrever palavras num papel e esperar que elas façam rir alguém. Ou seja: tentar provocar uma convulsão física violenta noutra pessoa. Trata-se de procurar produzir em alguém o efeito das cócegas, mas sem lhe tocar. Os erros de linguagem, a menos que sejam propositados, dificultam-me a vida. Falar ou escrever com erros equivale, no meu caso, a beijar mal, ou a fazer cócegas que magoam. Por isso, junto da secretária onde trabalho, tenho vários livros de pessoas que me ajudam a parecer um pouco menos analfabeto (…).       

Mais uma vez, sinto – mesmo que conte apenas a intenção de me instruir e parecer “menos analfabeto” – que estarei no bom caminho. Sinto também que a minha ousadia, experiência e alegria de viver, como sénior, me está a dar um retorno fabuloso. Receber uma imensidão de mensagens e muitos telefonemas, por parte de familiares e de amigos, a felicitar-me em dia de aniversário e em que entro em força… na terceira idade, são entendidas como uma bênção – a de estar rodeado de amigos –. Fiz uns cálculos rápidos (lá está… é preciso exercitar o cérebro!) e cheguei à conclusão de necessitaria de cerca de 8 horas para responder a todas essas mensagens, caso gastasse 2 minutos com cada. Eu sei que "para os amigos há sempre tempo" (mensagem escrita num relógio de sol existente em Portalegre) e, aos poucos, levei uma semana a responder a cada um, e espero que a memória não me tenha atraiçoado. Foi mesmo um dia inesquecível. Com tantas amizades a felicitar-me – o que fez aumentar o meu bem-estar –, e com todo o meu empenhamento em dar bom uso ao cérebro, lembrei-me do programa de humor acutilante do Ricardo Araújo Pereira, que surgiu por altura da última campanha eleitoral para as Legislativas, intitulado “É Tudo Muito Bonito, Mas”. É que três acontecimentos neste dia de aniversário, em que tudo é [ou parece] muito bonito, mas há sempre um “mas”… tornaram mesmo o dia inevitavelmente inesquecível.
Caso 1 - Ao sair da garagem com o carro, estacionei por breves instantes no exterior. Logo a seguir, três “idosos” (provavelmente um pouco menos idosos que eu próprio), com ar quem vem à feira da cidade, mesmo que não seja dia de feira, olhavam insistentemente para a minha viatura e para mim, com um sorriso ainda mais enigmático do que a da Gioconda. “Devem estar a confundir-me com o anterior presidente da câmara”, pensei e sorri-lhes, o mais educadamente que consegui. Pouco depois, quando fui à mala do carro, descobri que tinha um dos pneus traseiros completamente em cima do passeio, excessivamente alto. Com é possível não ter dado por isso?
Caso 2 – Resolvi oferecer uma prenda a mim mesmo – um candeeiro flexível para a minha secretária, substituindo o bonito candeeiro existente, mas pouco prático –. Antecipadamente, tinha recortado um bocado do panfleto, com o produto, de uma conhecida cadeia de hipermercados. Não encontrando o produto, dirigi-me ao responsável de loja e mostrei-lhe o recorte, para que me dissesse onde o poderia encontrar. Olha espantado para o recorte e diz: “Mas hoje não é quinta-feira. Tem por trás alguma coisa do “Halloween”? – virou e tinha mesmo. Havia concordância, o que o deixa ainda mais confuso, e é então que se lembra de perguntar, como quem já sabia a resposta, e fê-lo com um sorriso semelhante ao dos citados “idosos”: “Bô… não me diga que guardou o jornal do ano passado?
Como é possível isto ter acontecido?
Caso 3 – Apesar de estar um céu muito nebuloso e escurecer mais cedo, resolvi passar o resto do dia em contacto com a natureza e fui até ao Parque Natural de Montesinho, onde se estava perante uma paisagem protegida, deslumbrante e incomum, pela arborização e tons ocre a castanho avermelhado das folhas, em pleno outono. Aproximando-se a hora de almoçar, fui à bonita aldeia (recuperada) de Montesinho, para um repasto com gastronomia regional. Como não via ninguém e o restaurante da aldeia estava fechado, dirigi-me à casa do Povo, onde me disseram: “Agora é tempo de castanha e eles foram por ela!”. Antecipo, mentalmente, o “como é possível?”. Sim, como é possível, uma pessoa com esta experiência de vida, acreditar que o único restaurante da aldeia estava à sua [minha] espera… em tempo de fartura de castanhas? Em vez de um repasto típico, numa aldeia transmontana bem caraterística, acabei no centro comercial da cidade (único sítio onde se poderia encontrar um “restaurante” aberto, de uma qualquer cadeia de fast food) a comer um “calzone italiano”, já por volta das 16h30, o que representaria 17h30, se não tivesse havido a mudança da hora no dia anterior.

Dia inesquecível, a mostrar que estou em força… na terceira idade, e que, apesar de tudo, a minha experiência de vida valorizou, mantendo em alta o lado positivo.


© Jorge Nuno (2015)