TELEVISÃO, ESSA CAIXA MÁGICA
Comemora-se, na presente data, o Dia
Mundial da Televisão, instituído pelas Nações Unidas em 1996. A televisão
faz-me ter presente a imagem do café do Bafeta, cujo proprietário, corcunda,
era uma figura castiça e manhosa, mas com a ousadia suficiente para adquirir o
primeiro televisor da localidade – um caixote enorme com imagem a preto e
branco, pois claro –. Estávamos em 1957, ano em que teve início a televisão em
Portugal. Havia um canal único e bem controlado, em tempo de ditadura. Como o
estabelecimento, tipo tasca, era relativamente pequeno, assim como eu (pois
ainda frequentava a escola primária), ficávamos em pé, do lado de fora, tal
como era frequente na capela, nas cerimónias religiosas em dias festivos. Só
que para ver a televisão a paixão e o fervor seria maior, pois até púnhamo-nos em
bicos de pés, a acotovelar-nos no exterior e a espreitar pelas duas pequenas
janelas, para tentar ver alguma coisa.
Foi aí, no café do Bafeta, que tive acesso pela
primeira vez às artes de palco, tudo em direto, deixando-me fascinado. Foi aí
que vi as primeiras peças de teatro e filmes portugueses, os quais foram
repetidos à exaustão, e que, estranhamente, eram sempre revistos com agrado.
Relembro “Aniki Bóbó”, de Manoel de Oliveira, e uma série de comédias
bem-sucedidas como o “Pátio das Cantigas”, o “Leão da Estrela”, “A Canção de
Lisboa”, a “Aldeia da Roupa Branca”, a “Maria Papoila” e “O Costa do Castelo”, de
que faziam parte grandes atrizes e atores, como Vasco Santana, António Silva,
Ribeirinho, Milu, Laura Alves, Mirita Casimiro, Beatriz Costa, Curado Ribeiro (…).
Mais tarde, na Casa do Povo, e com uma
enorme plateia, sentada, a olhar para aquela caixa mágica, assisti ao mais
emocionante jogo de futebol de que tenho memória. Decorreu em Londres, no ano
de 1966, e tratou-se do célebre Coreia do Norte – Portugal, na estreia de ambos
num campeonato mundial. Portugal perdia por 3 – 0 e viria a ganhar, heroicamente,
por 3-5, com 4 golos do saudoso Eusébio, que se sagrou o melhor goleador da
prova e contribuiu para que Portugal chegasse ao 3.º lugar, ao eliminar a União
Soviética, que tinha o melhor guarda-redes do mundo – Yashin –. Já naquela
altura havia maluqueira pelo futebol, a ponto de o meu avô paterno, que trazia trabalhadores
à jorna no campo, dispensá-los para verem este jogo, pagando-lhes como se
estivessem a trabalhar. Nesse mesmo ano, teria a possibilidade de ver a peça
“As Árvores Morrem de Pé, com a Palmira Bastos, na sua bela idade de 90 anos, a ter uma magnífica representação
e a deixar-nos a frase que ficou célebre: “Morta por dentro, mas de pé, como as
árvores”, a qual serviu de inspiração a muitas mulheres deste país, numa altura
em que estas não eram minimamente valorizadas na sociedade.
Outro programa que marcou o panorama
televisivo (à época, duplamente cinzentão) foi o primeiro talk show português e uma lufada de ar fresco – o Zip-Zip –, que
teve apresentação de Raul Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz. De igual modo,
marcou-me a mim também, mesmo ainda sem saber que os conteúdos eram previamente
negociados com a PIDE, e que entre os espetadores que assistiam à gravação no
Teatro Villaret estava sempre um agente da mesma polícia política. Apesar das
restrições, a crítica subliminar, feita através de este programa, serviu para
alertar muitas consciências.
Em 1968 surgiu um segundo canal da RTP.
Apesar de ele, durante muito tempo, ter uma fatia de mercado na ordem dos 4%,
eu fazia parte de uma minoria que o privilegiava, para ver programas de índole
cultural.
Em 1975, ano em que se iniciaram as
emissões a cores, já se respirava liberdade e os programas refletiam isso.
Nos anos 80, quem passava os “domingos de
alcatifa” fez de “O Passeio dos Alegres” um programa de sucesso. Era um
programa de entretenimento apresentado pelo Júlio Isidro, que lançou imensos
jovens talentosos, hoje artistas consagrados ou… esquecidos. Entretanto, o
Herman José fazia sucesso com programas humorísticos, com destaque para o
“boneco” criado por si – o Diácono Remédios –, a fazer-nos lembrar, com
sorrisos, a censura de má memória. Também a Ivone Silva e o Camilo de Oliveira
faziam furor com “Sabadabadu”, um programa de humor que teve curta duração, mas
que se via com muito agrado, devido ao talento de ambos.
Em 1992 surgiu a primeira estação de
televisão privada em Portugal – a SIC –. No ano seguinte, foi a vez da TVI. Dai
para cá deu-se uma evolução espantosa, mas com as seguintes ressalvas: o
falhanço da alteração do sinal analógico pelo sinal digital, através da
“imposição” da TDT – Televisão Digital Terrestre; o evidente exagero de muitos programas
que recorrem à mesma estratégia de autofinanciamento, com recurso a chamadas de
valor acrescentado; os enormes intervalos, cheio de publicidade, que fazem
esquecer que programa estava ser transmitido; o baixo nível de programas
[incompreensivelmente] de grande audiência, como os reality shows, pelo voyerismo, ou os programas musicais no exterior,
em que se valoriza a mediocridade; todos os canais generalistas têm um número
anormal de rubricas com culinária, numa altura em que falta o pão em muita
mesa; as imagens com os horrores da humanidade, em direto, levando à banalização,
à indiferença… estendendo, no tempo, as notícias sem novidades, numa luta pela
liderança de audiências; os inúmeros “fazedores de opinião”, pagos
principescamente, com a estratégia de influenciar; os julgamentos na “praça
pública”, com revelação de processos judiciais em segredo de justiça; os
elevados riscos para a saúde física e mental das pessoas, e particularmente as
crianças, devido ao número excessivo de horas em frente ao televisor. Mas
falava de “evolução espantosa”. Num curto espaço de tempo, passou-se de apenas
quatro para uma “infinidade” de canais. As velhas antenas nos telhados foram
substituídas pelas antenas parabólicas, para logo caírem em desuso. Surgiu o
sistema por cabo coaxial, para logo aparecer o de fibra ótica. Hoje, os pacotes
com 200 ou mais canais [pagos, naturalmente] estão associados a uma box, que permite selecionar: canais
generalistas; informação; desporto; entretenimento; programas infantis; filmes
e séries; estilos de vida (moda, culinária…); documentários; música; estações
de rádio; sistemas de gravação automática e manual; sistema de videoclube; apps (jogos, compras, youtube…); área do
cliente (para gestão dos serviços adquiridos ou a adquirir). Como se isto não
bastasse, há televisões que permitem imagem em HD, 3D e agora Ultra HD e, com
uma smart tv, tem-se acesso à
internet e pode usar-se com as funções de um computador. Apesar de se ver
televisão nos smartphones, na rua ou
em qualquer lugar, sem fios, e ter-se acesso a programas emitidos até há 7 dias
atrás, tenho noção que dentro de 10 anos, se esta crónica voltar a ser lida,
alguém irá sorrir por toda esta tecnologia/ maravilha se encontrar obsoleta.
Bem… não sei se será bem assim. A ser como
no filme “Idiocracy”, traduzido para “Terra de Idiotas”, o desfecho será mesmo
bem diferente. Trata-se de um filme em HD, que passou recentemente num canal de
televisão, englobado no tal pacote. Resumidamente, o argumento retrata um homem
banal, talvez pouco inteligente, com a tarefa de um bibliotecário nas instalações
de uma unidade militar, cujo local de trabalho mais parecia a de um arquivo
morto. O personagem principal, Joe Bauers, encarnado pelo ator Luke Wilson, vê-se
envolvido num projeto militar de hibernação, na expetativa de ser “acordado” ao
fim de um ano. Só que o projeto viria a ser abandonado e o bibliotecário
esquecido. O personagem surge uns séculos depois, no ano de 2505… Eu gosto de
humor inteligente, e reconheço que neste havia idiotice a mais para o meu [bom]
gosto. Confesso que senti um forte impulso para desistir de ver o filme e,
simplesmente, mudar de canal ou ir ler, como tantas vezes faço. Mas não,
resisti, pela curiosidade, e fui mesmo até ao fim. No prosseguimento do filme…
o Joe Bauers deu-se conta que estava perante uma população sem neurónios,
completamente alienada e estupidificada pela televisão, o que fazia dele o
indivíduo mais inteligente de todos, e viria a resolver muitas das trapalhadas
em que os outros (e ele próprio) estavam metidos. Estando eu bem longe de aplicar
um rótulo de “qualidade” neste filme, mesmo na presunção de ser uma caricatura,
não deixa o mesmo de nos alertar para os perigos da alienação através da televisão.
E pelo jeito que isto leva!…
© Jorge Nuno (2015)