NA FORÇA DA PRIMAVERA
Dava gosto ver o entusiasmo com que o macho procurava atrair a fêmea. Estando ambos no chão, sobre o passeio toscamente empedrado do jardim, o pombo rodeava-a, incessantemente, até à exaustão. A sua plumagem eriçada fazia com que aparentasse um tamanho bem maior. Evidenciava uma bela estética e graciosidade nos seus movimentos corporais, como se se tratasse de um bailarino do Bolshoi. Destacavam-se os movimentos repetitivos com a cabeça, que inclinava, como que a querer dizer: “Ó p’ra mim tão bonito!”. Devido à distância e à minha falta de audição, não ouvi o natural arrulhar, habitual nestas circunstâncias, nem observei o alisamento das suas próprias penas ou da sua potencial parceira, especialmente à volta do pescoço e na zona da cabeça, sinal carinhoso e próprio do ritual de acasalamento. Mas, se calhar, nem teria que ouvir e ver, pois o entusiasmo ia só numa direção. Ela, parecia mais interessada em seguir um caminho predeterminado, quem sabe, para descobrir umas quaisquer migalhas de pão, deixadas no caminho, e mostrava-se indiferente ao macho atrevido. Este, ao fim de vinte longos minutos, provavelmente zonzo da cabeça, provocado pelo rodopio, ainda teve forças para se afastar, voando uns vinte metros. Fiquei a observá-lo, por breves instantes. Tinha poisado sobre a cobertura da casa dos apetrechos do jardineiro. Estranhamente, parecia calmo e pouco (ou nada) preocupado com o facto de ter falhado a tentativa de corte, sem rendição da fêmea. Pensando bem, ela também deve ter uma “palavra” a dizer, já que estas aves são monogâmicas, e ter borrachos de um pombo (ou estar com alguém) pelo qual não se sente nada, creio que deverá ser desagradável.
No banco do jardim, talvez influenciado pelo “filme dos pombos” acabado de observar, um indivíduo, que aparenta ser septuagenário e esforçar-se por ter algum vigor, encosta-se à sua companheira de uma vida e, de lábios estendidos, tenta roubar-lhe um beijo, sem sucesso. Ainda não percebi duas coisas: por que será que estas cenas, com casais que já têm umas boas décadas de vida em conjunto, os faz sentir ridículos, quando as experienciam em público; por que será que há uma reação adversa, tendencialmente por parte da mulher. Ela limitou-se a esquivar-se, usando os braços para o afastar e, enquanto exibia um sorriso, repetiu duas vezes, como que a querer justificar-se perante mim, que passava junto do casal: “O homem endoidou… o homem endoidou!”. Naturalmente, não parei nem fiquei a olhar, por razões óbvias. Mas fiquei curioso e, embora isso não me diga respeito, gostaria de ter podido analisar a expressão daquele homem. Admito que ele possa ter ficado, instantaneamente, mais desiludido que o pombo “cortejador”. Afinal, custa assim tanto retribuir um beijo, quando estão presentes duas pessoas que têm muita cumplicidade, companheirismo e partilham a vida a dois, como se fosse apenas uma única vida?
Mais à frente, noutro banco, encontravam-se duas adolescentes, por volta dos treze ou catorze anos. Uma delas – a mais “espevitada” – tinha cabelo arrapazado, faces excessivamente rosadas, próprio da idade e da brincadeira, e exibia a blusa desapertada e fralda de fora. A outra, de tez clara, tinha cabelos longos, feições mais femininas e um porte ousado para o seu perfil, como quem quer libertar-se da timidez. Ambas desassossegavam um rapaz, que aparentava ser ligeiramente mais velho. Faziam-lhe cócegas; metiam-lhe as mãos no farto cabelo, desgrenhando-o ainda mais; a mais discreta veio por trás e tapou-lhe os olhos, com alguma meiguice; imediatamente, a “Maria rapaz” deu-lhe uns empurrões, como que a querer despertá-lo da letargia e afastar a amiga competidora. Afinal, estavam duas raparigas a dar-lhe uma atenção a que ele parecia não estar minimamente interessado em corresponder. Ele, sempre de olhar fixo no smartphone, que manipulava conforme podia, ia alternando entre sopros dirigidos para o cabelo comprido, que lhe tapava a visão, de modo a afastá-los, e palavras de desagrado, que deixava escapar, praguejando em puro vernáculo (que dispenso aqui a sua reprodução), mas apenas refiro que se a cena estivesse a ser filmada e viesse a ser exibida na televisão, teria, forçosamente, de ter uma bolinha vermelha no canto superior direito do ecrã, ou muitos piiiiii sobre os imensos palavrões proferidos! Até que ele decide, repentinamente, arrumar o telemóvel no bolso de trás das calças largas e de cinta descida. Já em pé, agarra na mochila e dispara, em passada larga, em direção ao portão do jardim, logo seguido de ambas as raparigas. Estas duas “pombinhas”, numa atitude diferente da do citado pombo rejeitado, denotavam uma atração pelo rapaz, e não pareciam minimamente interessadas em desistir daquele “borracho” ou “pãozinho”.
Já fora do jardim, num ponto estratégico com muito movimento de peões, encontrava-se um indivíduo de aspeto pouco ou nada cuidado, de barba por fazer, e cuja idade se devia situar nos trinta e pouco, mas até podia andar na casa dos vinte. Estava sentado sobre um cartão e, à sua frente, tinha o fundo recortado de uma garrafa de plástico, contendo poucas e pequenas moedas acastanhadas. De repente modificou-se o seu ar pesaroso, inspirador de piedade. Levantou a cabeça e, sem sair do lugar, seguiu embevecidamente a jovem empregada do café, que trabalha ali perto. Neste dia soalheiro e primaveril, tinha saído à rua sem a bata e sem o casaco, e exibia os seus fortes atributos, despertando os sentidos a qualquer mortal. A menos que se desse uma grande reviravolta, por agora, este jovem, na primavera da vida, apenas poderia sonhar. Não sei se ele sabia quem foi Steve Jobs ou se conhecia a frase inspiradora que proferiu: “Cada sonho que você deixa para trás, é um pedaço do seu futuro que deixa de existir”. Também eu fiquei a sonhar acordado. Tive um desejo fremente para que este jovem arribasse e pudesse reconstruir o que parece torto, preparando [no seu coração] a terra fértil, cultivando o melhor e poder vir a florescer para a vida, com oportunidades, confiança e alegria, consciente da capacidade da mente em operar milagres. É que o desabrochar é espectacular, na força da primavera!
© Jorge Nuno (2016)