30/03/2016

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (31) - Crónica: "Na Força da Primavera"

NA FORÇA DA PRIMAVERA 

Dava gosto ver o entusiasmo com que o macho procurava atrair a fêmea. Estando ambos no chão, sobre o passeio toscamente empedrado do jardim, o pombo rodeava-a, incessantemente, até à exaustão. A sua plumagem eriçada fazia com que aparentasse um tamanho bem maior. Evidenciava uma bela estética e graciosidade nos seus movimentos corporais, como se se tratasse de um bailarino do Bolshoi. Destacavam-se os movimentos repetitivos com a cabeça, que inclinava, como que a querer dizer: “Ó p’ra mim tão bonito!”. Devido à distância e à minha falta de audição, não ouvi o natural arrulhar, habitual nestas circunstâncias, nem observei o alisamento das suas próprias penas ou da sua potencial parceira, especialmente à volta do pescoço e na zona da cabeça, sinal carinhoso e próprio do ritual de acasalamento. Mas, se calhar, nem teria que ouvir e ver, pois o entusiasmo ia só numa direção. Ela, parecia mais interessada em seguir um caminho predeterminado, quem sabe, para descobrir umas quaisquer migalhas de pão, deixadas no caminho, e mostrava-se indiferente ao macho atrevido. Este, ao fim de vinte longos minutos, provavelmente zonzo da cabeça, provocado pelo rodopio, ainda teve forças para se afastar, voando uns vinte metros. Fiquei a observá-lo, por breves instantes. Tinha poisado sobre a cobertura da casa dos apetrechos do jardineiro. Estranhamente, parecia calmo e pouco (ou nada) preocupado com o facto de ter falhado a tentativa de corte, sem rendição da fêmea. Pensando bem, ela também deve ter uma “palavra” a dizer, já que estas aves são monogâmicas, e ter borrachos de um pombo (ou estar com alguém) pelo qual não se sente nada, creio que deverá ser desagradável. 

No banco do jardim, talvez influenciado pelo “filme dos pombos” acabado de observar, um indivíduo, que aparenta ser septuagenário e esforçar-se por ter algum vigor, encosta-se à sua companheira de uma vida e, de lábios estendidos, tenta roubar-lhe um beijo, sem sucesso. Ainda não percebi duas coisas: por que será que estas cenas, com casais que já têm umas boas décadas de vida em conjunto, os faz sentir ridículos, quando as experienciam em público; por que será que há uma reação adversa, tendencialmente por parte da mulher. Ela limitou-se a esquivar-se, usando os braços para o afastar e, enquanto exibia um sorriso, repetiu duas vezes, como que a querer justificar-se perante mim, que passava junto do casal: “O homem endoidou… o homem endoidou!”. Naturalmente, não parei nem fiquei a olhar, por razões óbvias. Mas fiquei curioso e, embora isso não me diga respeito, gostaria de ter podido analisar a expressão daquele homem. Admito que ele possa ter ficado, instantaneamente, mais desiludido que o pombo “cortejador”. Afinal, custa assim tanto retribuir um beijo, quando estão presentes duas pessoas que têm muita cumplicidade, companheirismo e partilham a vida a dois, como se fosse apenas uma única vida? 


Mais à frente, noutro banco, encontravam-se duas adolescentes, por volta dos treze ou catorze anos. Uma delas – a mais “espevitada” – tinha cabelo arrapazado, faces excessivamente rosadas, próprio da idade e da brincadeira, e exibia a blusa desapertada e fralda de fora. A outra, de tez clara, tinha cabelos longos, feições mais femininas e um porte ousado para o seu perfil, como quem quer libertar-se da timidez. Ambas desassossegavam um rapaz, que aparentava ser ligeiramente mais velho. Faziam-lhe cócegas; metiam-lhe as mãos no farto cabelo, desgrenhando-o ainda mais; a mais discreta veio por trás e tapou-lhe os olhos, com alguma meiguice; imediatamente, a “Maria rapaz” deu-lhe uns empurrões, como que a querer despertá-lo da letargia e afastar a amiga competidora. Afinal, estavam duas raparigas a dar-lhe uma atenção a que ele parecia não estar minimamente interessado em corresponder. Ele, sempre de olhar fixo no smartphone, que manipulava conforme podia, ia alternando entre sopros dirigidos para o cabelo comprido, que lhe tapava a visão, de modo a afastá-los, e palavras de desagrado, que deixava escapar, praguejando em puro vernáculo (que dispenso aqui a sua reprodução), mas apenas refiro que se a cena estivesse a ser filmada e viesse a ser exibida na televisão, teria, forçosamente, de ter uma bolinha vermelha no canto superior direito do ecrã, ou muitos piiiiii sobre os imensos palavrões proferidos! Até que ele decide, repentinamente, arrumar o telemóvel no bolso de trás das calças largas e de cinta descida. Já em pé, agarra na mochila e dispara, em passada larga, em direção ao portão do jardim, logo seguido de ambas as raparigas. Estas duas “pombinhas”, numa atitude diferente da do citado pombo rejeitado, denotavam uma atração pelo rapaz, e não pareciam minimamente interessadas em desistir daquele “borracho” ou “pãozinho”. 

Já fora do jardim, num ponto estratégico com muito movimento de peões, encontrava-se um indivíduo de aspeto pouco ou nada cuidado, de barba por fazer, e cuja idade se devia situar nos trinta e pouco, mas até podia andar na casa dos vinte. Estava sentado sobre um cartão e, à sua frente, tinha o fundo recortado de uma garrafa de plástico, contendo poucas e pequenas moedas acastanhadas. De repente modificou-se o seu ar pesaroso, inspirador de piedade. Levantou a cabeça e, sem sair do lugar, seguiu embevecidamente a jovem empregada do café, que trabalha ali perto. Neste dia soalheiro e primaveril, tinha saído à rua sem a bata e sem o casaco, e exibia os seus fortes atributos, despertando os sentidos a qualquer mortal. A menos que se desse uma grande reviravolta, por agora, este jovem, na primavera da vida, apenas poderia sonhar. Não sei se ele sabia quem foi Steve Jobs ou se conhecia a frase inspiradora que proferiu: “Cada sonho que você deixa para trás, é um pedaço do seu futuro que deixa de existir”. Também eu fiquei a sonhar acordado. Tive um desejo fremente para que este jovem arribasse e pudesse reconstruir o que parece torto, preparando [no seu coração] a terra fértil, cultivando o melhor e poder vir a florescer para a vida, com oportunidades, confiança e alegria, consciente da capacidade da mente em operar milagres. É que o desabrochar é espectacular, na força da primavera! 

                                                                                                                              © Jorge Nuno (2016)

11/03/2016

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (30) - Crónica: "Falar para o Boneco"

FALAR PARA O BONECO

Há uma indesmentível sabedoria popular, a que nem sempre damos o devido relevo, e muitas vezes somos mesmo traídos pela aparência evidenciada por algumas de essas pessoas e temos a tendência mesquinha para as menosprezar.
Creio que terei aprendido uma lição de vida, que não mais esqueci, ao deparar-me com um alentejano que aparentava ter setenta anos (numa altura que eu devia andar pelos trinta). Foi numa noite de verão, num tosco café, um dos poucos abertos na cidade de Elvas, onde eu iria pernoitar. Sentado ao meu lado e talvez por sentir necessidade de conversar com um estranho, que até tinha ares de quem vinha da capital, meteu-se a disparar uma série de questões, algumas que pareciam profundas e filosóficas, apesar do seu ar humilde, e ia, pacientemente, aguardando a minha reação. Primeiramente, senti que ele estava a falar para o boneco, pois não estava a dar-lhe qualquer importância e reconheço que até olhava para ele com alguma altivez. Quando me decidi “ir a jogo”, mesmo tendo eu um curso superior, senti-me completamente vergado pela sua sabedoria.
Uma dessas pessoas que muito admiro, é o poeta António Aleixo, que tendo sido um pobre, “quase analfabeto”, com tragédias familiares, dificuldades e doenças, ficou conhecido como um dos mais importantes poetas populares portugueses – com quem me identifico ao nível da ironia e capacidade de crítica social –, bem patente nas suas quadras, e que ainda hoje fazem a delícia de quem as lê, mesmo tendo passado quase setenta anos sobre a sua morte. Talvez, durante algum tempo, ele tenha sentido que andava a escrever para o boneco, mas ficou uma boa parte do seu legado, que pela aceitação contraria essa ideia.

Mas essa sabedoria popular, não sendo considerado um conhecimento científico, acaba por ser transmitida de geração em geração e revela-se das mais variadas formas, desde as mezinhas para curar algumas doenças, sem recurso aos químicos da indústria farmacêutica, até aos ditados populares. Sobre estes, dou apenas alguns exemplos, para ficarmos apenas na verdade e na mentira: “O dinheiro cala a verdade”; “Ainda que enterrem a verdade, não sepultam a virtude”; “Mais perde em amizades quem mais teima nas verdades”; “Mais vale o calar do mudo do que o falar do mentiroso”; “O mentir exige memória”; “Nada é mais fácil que mentir e mais difícil do que mentir bem”; “Quem a dois senhores quer servir, a um há de mentir”; “A verdade é amarga, a mentira é doce”…  

Fui acumulando alguma dessa sabedoria ao longo de mais de sessenta anos, e ao aperceber-me que tivemos uma longa ditadura no país que durou mais de quatro décadas, admitindo que quanto mais ignorantes são as pessoas mais são facilmente manipuladas, talvez explique porque dediquei mais de metade da minha vida à educação e formação de adultos. Este conceito parecia verdade, até ler num jornal semanal, que colocam gratuitamente na caixa de correio, esta frase do conhecido mágico Mário Daniel: “Quanto mais culta e inteligente for a pessoa, maior a facilidade com que cai no truque”, falando mesmo nos truques para seduzir. Talvez alguns membros destacados da classe política tenham conseguido obter algumas lições, para aumentar o número de votos, já que tinham, como dado adquirido, os votos dos “ignorantes”.

À presente época, ainda se veem alguns cidadãos, provavelmente bem-intencionados, a tentar deixar uma marca e a promover mudanças na sociedade, num apelo à inteligência e à verdade. No entanto, um conhecido bastonário andou a falar para o boneco, tendo como cruzada a crítica aos juízes; agora foi conhecido o caso de um procurador indiciado de ilícitos criminais em que, ao que tudo indica, “o dinheiro calou a verdade”. Há o caso do professor universitário, candidato a presidente da República, que teve a corrupção como tema central da campanha; afinal, “a verdade foi amarga” e obteve 2,16 % dos votos nas últimas eleições, parecendo evidente que andou a falar para o boneco e que as pessoas preferem uma “mentira doce”. Também um conhecido comentador desportivo parece andar a falar para o boneco; enveredou pela defesa da causa “verdade desportiva”, estabeleceu pontes numa abordagem da promiscuidade entre desporto (com predominância do futebol) e política e escreveu, já em 2016, o livro “Mentiras Futebol Clube”, vindo a “perder em amizades por teimar nas verdades”. Estranhamente, até no último filme a que assisti no cinema – “The Boy – Segue as Regras” – vi a personagem Greta, no papel de baby-sitter, que passou quase todo o tempo a falar para o boneco Brahms, de porcelana e no tamanho real de um menino de oito anos, que afinal “não era um mero boneco”… deixando uma pessoa desconcertada, quanto ao que é verdade e mentira.

No dia de tomada de posse do 20.º presidente da República, assisti a uma entrevista de circunstância na TV, feita por um repórter na rua e para “encher chouriços", frente ao Palácio de Belém. À pergunta “Então que espera deste novo presidente?” ouviu-se uma popular responder: “Então… espero que seja melhor que os outros atrasados!”. Será que a esta pessoa fugiu-lhe a boca para a verdade? Fez-me logo lembrar da presidência aberta de Mário Soares em Trás-os-Montes, mais precisamente em Rio de Onor; um repórter perguntou a um ancião o que achava da presença do presidente da República na aldeia e teve como resposta: “Oh… nunca outro tinha cá botado as patas!”. Porque aqui não se precisa de truques, ao ver gente genuína, com tanta simplicidade, bem posso acreditar que este homem estaria mesmo convicto dessa verdade.

       © Jorge Nuno (2016)




09/03/2016

Em Busca das Minhas Pérolas

EM BUSCA DAS MINHAS PÉROLAS

Sonhei novamente… Mais uma dor angustiante, agora prolongada ao ombro, pelo bater da coronha da G3. Acabei de despejar definitivamente o último carregador de balas. Nem me interessa ficar com o tapa-chamas como recordação. Ainda se ouvem ao longe os ecos dos meus disparos e pouco importa se eu consigo, ou não, matar o passado. Basta-me ter a cova aberta, preparada para o enterrar! Fica no ar um “paz à sua alma”, de um passado sem vida e sem cor.

          Sem precisar de ir pelo esgoto, não fujo de terra, em direção ao mar. Simplesmente parto de terra, procurando uma parte funda do oceano, onde irei mergulhar para trazer as minhas pérolas. É aí que está a serenidade que preciso, nesse negro escuro, onde melhor vejo a minha luz interior.

Quando regressar, levitarei sobre as águas, porque eliminei todo o peso que me oprimia. O sal ter-se-á encarregado de diluir as mágoas, desilusões, culpa e emoções reprimidas, numa drenagem psíquica há muito desejada, mas sem a necessária força interior para antes o conseguir.   

Pouco importa a cor do céu, a lua cheia, as tensões de um mundo incerto ou o que possa influenciar ou agitar as minhas águas… Não é preciso ter êxito total nos propósitos e muito menos à custa de favores especiais. Basta pensar e valorizar o esforço despendido na busca das merecidas pérolas. É a dádiva da vida, que se torna abundante, quando nos tornamos gratos.

Quando chegar a terra, carregado de um novo combustível da existência e contigo à minha espera, é hora de saborear. Sei que os problemas não fugiram, mas sei que finalmente ficarás a conhecer o meu sorriso, porque, agora sim, sentirei paz no coração!”

Trecho de um trabalho de prosa poética, elaborado pelo personagem “Filó”, no romance “As Animadas Tertúlias de Um Homem Inquieto” (que completa agora 3 anos), de
© Jorge Nuno