20/04/2016

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (33) - Crónica: "Dar e Receber"

DAR E RECEBER

Há uma ebulição externa, que ocorre a uma velocidade estonteante, a que é preciso estar atento. Sabendo disso, bem me esforço por investir no autoconhecimento, para chegar mais facilmente à fonte do desejado equilíbrio espiritual, mental e físico, que me transmita uma generalizada sensação de bem-estar. Bem me esforço por marcar o meu próprio compasso, e ainda mais ao ver tanta barata tonta, que se movimenta numa correria desprovida de sentido. Bem me esforço por conseguir a melhor forma de lidar com o conflito – sem procurar evitá-lo –, e dar atenção aos aspetos da realização pessoal ainda não conseguidos e/ou se os projetos concebidos há uns tempos atrás, com tanta erosão… ainda fazem sentido nos dias de hoje. Bem me esforço por me libertar, constantemente, de toxinas físicas e emocionais, para conseguir a harmonia interior, que só a mim compete assegurar.

Procuro estar atento e aberto a tudo quanto é novo e deixar-me envolver, de forma generosa, tendo em vista o bem comum, que naturalmente me afeta positivamente. Aprendi que a dádiva e a gratidão entram neste processo. Aprendi que os benefícios de dar acabam, inevitavelmente, por ter um efeito de boomerang. Aprendi que a gratidão é contagiosa e ajuda-nos a reconhecer as muitas coisas boas que nos acontecem na vida (nas quais não reparamos, quando nos focamos no que não queremos). É nesses instantes que ficamos salpicados de agradáveis “purpurinas” de felicidade, como se se tratasse do toque mágico de uma varinha de condão. E são estes momentos que trazem sentido à vida e nos projetam para novos avanços qualitativos.

É por estas razões que bem me esforço por seleccionar o que entra porta adentro e pode afetar os meus sentidos. Mesmo assim, continuo a ser bombardeado, a todo o instante, com informação – ela própria tóxica – de escândalos de corrupção, branqueamento de capitais, fraude e evasão fiscais, abusos com o falso trabalho independente (que escandalosamente chegou a atingir 80% de todos os contratos de trabalho, celebrados em Portugal, nos últimos 3 meses…). A informação que é produzida – com o muito respeito que tenho pelo jornalismo de investigação – com o natural direito de divulgar factos e poder contribuir para a correção e punição de ilícitos criminais, acaba por ser produzida com a sofreguidão e rapidez de quem quer ter a exclusividade de ser o mensageiro da desgraça. A montante, a febre de enriquecimento rápido e sem pudor, faz parecer sem sentido as palavras de Raymond Cloosterman: “Ser rico não tem a ver com riqueza ou posses, mas sim com o número de memórias preciosas que temos”. Estas palavras, certamente, pouco importam a quem comete esses atos, que nada têm a ver com dádiva, mas com apropriação de algo que não lhes pertence por direito próprio, por ser obtido de forma menos digna ou fraudulenta. E quando menos se espera, o conhecimento de esses atos vem a público. A reação que se segue, pelos consumidores de informação, vai desde a tendência para: olhar para tudo isto com [uma preocupante] indiferença, como se estivessem vacinados contra a epidemia; à criação de estórias humorísticas e anedotas relacionadas com o caso, as quais são rapidamente partilhadas nas redes sociais; assemelhar-se à curiosidade do voyeur, que acompanha o dia a dia de um qualquer reality show televisivo de baixo nível, sempre na esperança de ver a cena mais picante, mesmo que passe mais de uma hora e meia em frente à TV, num ambiente degradante…

Da minha parte, tento descobrir alguma notícia, mesmo que seja uma em duzentas, que me dê a ideia que há grandeza humana. E como fico feliz, quando vejo uma, como a de um polícia australiano que decidiu adotar, com sucesso, um pequeno canguru, que perdeu a progenitora por atropelamento de um camião, mesmo que tenha que alimentar o pequeno animal de três em três horas; ou a de uma equipa de salvamento no Equador, que conseguiu resgatar um cão, com vida, dos escombros provocados pelo forte sismo no Equador e que se encontrava nessa situação há dois dias. Muitas vezes, é perante os animais que sobressai o humanismo, evidenciado pela compaixão, bondade, preocupação e entrega generosa a uma causa. No fundo, falamos de dádiva, sem estar à espera de recompensa.

David Brooks, colunista no The New York Times, escreveu que “A gratidão é uma espécie de riso do coração que surge depois de uma bondade surpreendente”. Comecemos por provocar o riso no nosso próprio coração, que nos fará sentir um imenso bem-estar. Este, “contaminará” positivamente quem nos rodeia. Assim, com pequenos avanços, o mundo à nossa volta está em vias de ser melhor.


© Jorge Nuno (2016)

10/04/2016

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (32) - Crónica: "A Lente Desfocada e a Transparência"

A LENTE DESFOCADA E A TRANSPARÊNCIA


Aceito, e agrada-me saber, que equipamentos públicos obsoletos – e muito bem implantados em zonas de elevado valor comercial – possam vir a ser alienados e substituídos por outros com instalações condignas e com equipamentos de vanguarda, capazes de prestar um bom serviço às populações, fazendo sentir que há retribuição compensatória por esse investimento, que o é naturalmente por via dos impostos. Foi isso que fez o Ministério da Saúde, em 2009. Vendeu, por 111,5 milhões de euros, à Sociedade Estamo, empresa do setor empresarial do Estado que compra imóveis públicos (e é participada da Parpública), os antigos hospitais de São José, Santa Marta, Capuchos e Miguel Bombarda. Segundo o que estaria contratualizado, a não desocupação das instalações no tempo previsto daria lugar a uma renda mensal. Passado cerca de sete anos, tomei conhecimento dos valores envolvidos nessa renda. Bem limpei as lentes dos meus óculos e, também, pelo instante fotográfico, admiti que a lente deveria estar desfocada; é que o absurdo era tal que me fez questionar sobre o modus operandi, ainda mais pelos imensos sacrifícios exigidos aos portugueses. Apercebi-me que apenas três hospitais pagariam, anualmente, cerca de 5,8 milhões de euros de renda, embora outra notícia referisse 7 milhões a pagar por 4 hospitais, que não o Miguel Bombarda, entretanto desativado. Apercebi-me, também, que se poderá perder muita história: motivos arqueológicos de interesse, com mármore e madeira meticulosamente trabalhados; azulejos com centenas de anos; muita arte sacra em igrejas e capelas internas; bibliotecas antigas e arquivos com documentos históricos e únicos; equipamentos e utensílios médicos que fariam as delícias dos visitantes num museu, permitindo-nos escutar o eco de um passado, que parece longínquo, mas que hoje é muito apreciado, desde que o espólio esteja bem conservado. E tudo isto numa altura em que Portugal está, cada vez mais, apontado como um excelente destino turístico.

Passou-se algo semelhante, ao nível das rendas, em mais de uma centena de escolas secundárias [públicas], intervencionadas no âmbito do Programa de Modernização do Parque Escolar. Foi muito agradável constatar a recuperação e melhoria significativa nessas instalações e demais equipamentos, possibilitando melhores condições de aprendizagem para os alunos, e de trabalho para os profissionais da educação. Em bastantes casos, com a sensibilidade própria de cada arquiteto, foram idealizados e utilizados materiais de bonito efeito, com requinte, ar condicionado em todas as salas de aula, laboratórios, oficinas, centros de recursos, auditórios, e obras encarecidas, inflacionadas… para depois não se verificar investimento em “simples” sistemas fotovoltaicos de autoconsumo, que permitiria gerar energia elétrica a partir da energia solar, a custos baixíssimos. Resumidamente, há forma de aquecer e arrefecer os espaços, mas os orçamentos escolares não comportam os custos de eletricidade e das rendas mensais, que ficaram a ser pagas, obrigatoriamente, à ParqueEscolar – entidade a que essas escolas ficaram amarradas, por força de lei.

Este tipo de atividade, em grande medida a envolver quantias significativas de dinheiro, e pior ainda por se se tratar do Estado (que nos impõe deveres e que nos deve garantir direitos), remete-me para 1995. Relembro o caso do conhecido ex-ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, que negociou as condições contratuais da concessão da travessia rodoviária do Tejo (e envolver a pontes “25 de abril” e “Vasco da Gama”), para logo depois assumir o cargo de presidente da empresa concessionária – a Lusoponte, uma Sociedade Anónima de capitais privados –. Este chegou a ser considerado “O Negócio de Ouro”. O Estado português terá pago 364 milhões de euros em indemnizações e a empresa terá arrecadado 746 milhões de euros na cobrança de portagens (valores até 2012). Terá havido, posteriormente, “nove acordos de reequilíbrio financeiro”, e o Tribunal de Contas [baseando-me nos seus Relatórios de Auditorias n.º 31/2000 e 47/2001] considera ter havido “substanciais e pesadas consequências financeiras (…) para o erário público”, tal como foi “penalizador” as renegociações, e recomendou que “o Estado procure ativamente (…) até adotando uma postura criadora, assumir uma posição intransigente e permanente defesa dos interesses financeiros públicos(…)”. O certo é que, até 2019, o Estado vai ter que transferir mais 100 milhões de euros de “compensação” e, praticamente sem contrapartidas, absorve mais riscos, incluindo a manutenção da “ponte 25 de abril”, riscos que deveriam pertencer à concessionária. É o exemplo típico de uma parceria público-privada, altamente rentável para uma das partes – a privada – à custa do dinheiro dos contribuintes.

Recentemente, surgiu o caso da ex-ministra das Finanças que, sendo deputada, foi nomeada administradora não-executiva de uma empresa financeira, que negoceia e gere dívida, com interesses na banca portuguesa. Essa empresa – a Arrow Global, que fez a revelação que geria 5,5 mil milhões de euros – terá lucrado com o arrastamento do caso BANIF, com a forma como foram geridos os seus ativos, continua a lucrar com os ativos que ainda estão nas mãos do Estado (e que o Santander Totta rejeitou), tal como tem vindo a lucrar com o crédito malparado dos bancos e instituições de crédito portugueses. Junta-se o facto de subsidiárias dessa empresa terem vindo a receber benefícios fiscais, que suscitam dúvidas quanto à legalidade da sua atribuição. No mínimo, levantam-se questões ético-políticas, a merecer que haja regulação séria e controlo sobre a atividade dos titulares de cargos políticos e também sobre os titulares dos altos cargos públicos. Com este propósito, a esquerda parlamentar tem vindo a movimentar-se e sabe-se que vai ser apresentada uma resolução na Assembleia da República, pelo partido que sustenta o Governo, “para instalar uma comissão eventual sobre as regras de transparência a que devem estar obrigados (…)” os citados titulares de cargos políticos e públicos.

Já vai sendo tempo de haver uma melhor focagem no essencial, que resulte numa gestão adequada da coisa pública, para bem de todos nós e vindouros. Acima de tudo, tem de haver mais transparência e maior integridade, sem descurar a permanente vigilância, que compete a todos nós.

© Jorge Nuno (2016)