A LENTE DESFOCADA E A TRANSPARÊNCIA
Aceito, e
agrada-me saber, que equipamentos públicos obsoletos – e muito bem implantados
em zonas de elevado valor comercial – possam vir a ser alienados e substituídos
por outros com instalações condignas e com equipamentos de vanguarda, capazes
de prestar um bom serviço às populações, fazendo sentir que há retribuição
compensatória por esse investimento, que o é naturalmente por via dos impostos.
Foi isso que fez o Ministério da Saúde, em 2009. Vendeu, por 111,5 milhões de
euros, à Sociedade Estamo, empresa do setor empresarial do Estado que compra
imóveis públicos (e é participada da Parpública), os antigos hospitais de São
José, Santa Marta, Capuchos e Miguel Bombarda. Segundo o que estaria
contratualizado, a não desocupação das instalações no tempo previsto daria
lugar a uma renda mensal. Passado cerca de sete anos, tomei conhecimento dos
valores envolvidos nessa renda. Bem limpei as lentes dos meus óculos e, também,
pelo instante fotográfico, admiti que a lente deveria estar desfocada; é que o
absurdo era tal que me fez questionar sobre o modus operandi, ainda
mais pelos imensos sacrifícios exigidos aos portugueses. Apercebi-me que apenas
três hospitais pagariam, anualmente, cerca de 5,8 milhões de euros de renda,
embora outra notícia referisse 7 milhões a pagar por 4 hospitais, que não o
Miguel Bombarda, entretanto desativado. Apercebi-me, também, que se poderá
perder muita história: motivos arqueológicos de interesse, com mármore e
madeira meticulosamente trabalhados; azulejos com centenas de anos; muita arte
sacra em igrejas e capelas internas; bibliotecas antigas e arquivos com
documentos históricos e únicos; equipamentos e utensílios médicos que fariam as
delícias dos visitantes num museu, permitindo-nos escutar o eco de um passado,
que parece longínquo, mas que hoje é muito apreciado, desde que o espólio
esteja bem conservado. E tudo isto numa altura em que Portugal está, cada vez
mais, apontado como um excelente destino turístico.
Passou-se algo
semelhante, ao nível das rendas, em mais de uma centena de escolas secundárias
[públicas], intervencionadas no âmbito do Programa de Modernização do Parque
Escolar. Foi muito agradável constatar a recuperação e melhoria significativa
nessas instalações e demais equipamentos, possibilitando melhores condições de
aprendizagem para os alunos, e de trabalho para os profissionais da educação.
Em bastantes casos, com a sensibilidade própria de cada arquiteto, foram
idealizados e utilizados materiais de bonito efeito, com requinte, ar
condicionado em todas as salas de aula, laboratórios, oficinas, centros de
recursos, auditórios, e obras encarecidas, inflacionadas… para depois não se
verificar investimento em “simples” sistemas fotovoltaicos de autoconsumo, que
permitiria gerar energia elétrica a partir da energia solar, a custos
baixíssimos. Resumidamente, há forma de aquecer e arrefecer os espaços, mas os
orçamentos escolares não comportam os custos de eletricidade e das rendas
mensais, que ficaram a ser pagas, obrigatoriamente, à ParqueEscolar – entidade
a que essas escolas ficaram amarradas, por força de lei.
Este tipo de
atividade, em grande medida a envolver quantias significativas de dinheiro, e
pior ainda por se se tratar do Estado (que nos impõe deveres e que nos deve
garantir direitos), remete-me para 1995. Relembro o caso do conhecido
ex-ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, que negociou as
condições contratuais da concessão da travessia rodoviária do Tejo (e envolver
a pontes “25 de abril” e “Vasco da Gama”), para logo depois assumir o cargo de
presidente da empresa concessionária – a Lusoponte, uma Sociedade Anónima de
capitais privados –. Este chegou a ser considerado “O Negócio de Ouro”. O Estado
português terá pago 364 milhões de euros em indemnizações e a empresa terá
arrecadado 746 milhões de euros na cobrança de portagens (valores até 2012).
Terá havido, posteriormente, “nove acordos de reequilíbrio financeiro”, e o
Tribunal de Contas [baseando-me nos seus Relatórios de Auditorias n.º 31/2000 e
47/2001] considera ter havido “substanciais e pesadas consequências financeiras
(…) para o erário público”, tal como foi “penalizador” as renegociações, e
recomendou que “o Estado procure ativamente (…) até adotando uma postura
criadora, assumir uma posição intransigente e permanente defesa dos interesses
financeiros públicos(…)”. O certo é que, até 2019, o Estado vai ter que
transferir mais 100 milhões de euros de “compensação” e, praticamente sem contrapartidas,
absorve mais riscos, incluindo a manutenção da “ponte 25 de abril”, riscos que
deveriam pertencer à concessionária. É o exemplo típico de uma parceria
público-privada, altamente rentável para uma das partes – a privada – à custa
do dinheiro dos contribuintes.
Recentemente,
surgiu o caso da ex-ministra das Finanças que, sendo deputada, foi nomeada
administradora não-executiva de uma empresa financeira, que negoceia e gere
dívida, com interesses na banca portuguesa. Essa empresa – a Arrow Global, que fez a revelação que
geria 5,5 mil milhões de euros – terá lucrado com o arrastamento do caso BANIF,
com a forma como foram geridos os seus ativos, continua a lucrar com os ativos
que ainda estão nas mãos do Estado (e que o Santander Totta rejeitou), tal como
tem vindo a lucrar com o crédito malparado dos bancos e instituições de crédito
portugueses. Junta-se o facto de subsidiárias dessa empresa terem vindo a
receber benefícios fiscais, que suscitam dúvidas quanto à legalidade da sua
atribuição. No mínimo, levantam-se questões ético-políticas, a merecer que haja
regulação séria e controlo sobre a atividade dos titulares de cargos políticos
e também sobre os titulares dos altos cargos públicos. Com este propósito, a
esquerda parlamentar tem vindo a movimentar-se e sabe-se que vai ser
apresentada uma resolução na Assembleia da República, pelo partido que sustenta
o Governo, “para instalar uma comissão eventual sobre as regras de
transparência a que devem estar obrigados (…)” os citados titulares de cargos
políticos e públicos.
Já vai sendo tempo de haver uma melhor focagem no
essencial, que resulte numa gestão adequada da coisa pública, para bem de todos
nós e vindouros. Acima de tudo, tem de haver mais transparência e maior
integridade, sem descurar a permanente vigilância, que compete a todos nós.
© Jorge Nuno
(2016)
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