ACREDITAR
NO BIBLIOMÓVEL
Há
poucas semanas fiz um passeio por algumas aldeias raianas do concelho de
Bragança. Achei curioso, em pleno século XXI, cruzar-me com duas viaturas
pesadas, ambas de caixa tapada com toldo e destinadas ao comércio direto com a população.
Uma delas, de matrícula espanhola, vendia fruta e uma outra, de matrícula
portuguesa, vendia mercearias, onde não podia faltar o bacalhau, além de outros
produtos próprios de uma drogaria. Sei que um pouco abaixo deste concelho, uma
cabeleireira usa um furgão que serve de salão de cabeleireiro itinerante. Há
outros negócios em curso, de modo a tentar a sua sorte, cujos empreendedores veem
os problemas da interioridade e do isolamento das populações como uma
oportunidade. Sei da existência da Unidade Móvel de Saúde de Bragança, que foi
criada através de uma parceria entre o Município, os Centros de Saúde e a Santa
Casa da Misericórdia de Bragança, tendo como finalidade as visitas
domiciliárias, prestação de cuidados de enfermagem, acompanhamento de utentes
em situação de vulnerabilidade, despiste de situações de risco, vacinação, sessões
de esclarecimento, etc.
Lembro-me
da distribuição de peixe congelado por todo o país e, claro, de o ver chegar ao
interior do país, em furgões preparados para o efeito. Por iniciativa estatal,
no final dos anos cinquenta do século passado, foi criada, a empresa SAPP –
Serviço de Abastecimento de Peixe ao País, que pretendia introduzir um novo
conceito de abastecimento e de alimentação. Foi lançada a campanha “Vamos
comprar, congelar e cozinhar peixe congelado”, criando mesmo publicidade
através de uns desenhos animados, que passavam na TV a preto e branco, como
forma de propagandear o peixe congelado. Foram também elaborados uns livros de
banda desenhada com a “Menina Pescadinha”, por forma a abranger as crianças, já
que não fazia parte do hábito de consumo nas populações, em qualquer estrato
social, e era preciso criar incentivos, com reforço nos mais novos.
Não me esqueço da
importância das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian – uns
furgões cinzentos da marca Citroën, embora também os houvesse em cor
avermelhada (mas que nunca vi) –. Já andava na escola primária quando este
projeto nacional foi lançado. Ansiava pela chegada da carrinha e era um leitor
assíduo, com o número máximo de livros que era permitido a cada um. Apesar das
orientações que o condutor e bibliotecário tentava dar aos leitores mais
jovens, eu não as respeitava e fazia as minhas escolhas como se pertencesse ao público
adulto. Sei que com 14, 15, 16 anos já lia clássicos da literatura, como: “Os
Irmãos Karamazov”, de Dostoievski; “Guerra e Paz”, de Leão Tolstoi; “Grandes
Esperanças”, de Charles Dickens; “O Vermelho e o Preto”, de Stendhal; “Os
Miseráveis”, de Victor Hugo; “O Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz [que
li durante uma noite]; “Esplendores e Misérias das Cortesãs”, de Honoré de
Balzac; “Doutor Jivago”, de Boris Pasternak, entre muitos outros.
Se
o objetivo deste serviço de bibliotecas itinerantes era o de “promover o gosto
pela leitura e elevar o nível cultural dos cidadãos, assentando a sua prática
no princípio do livre acesso às estantes, empréstimo domiciliário e
gratuitidade do serviço”, não tenho dúvidas da influência deste serviço móvel,
e da importância dos muitos autores que li, na minha forma de encarar o mundo,
de crescer como pessoa e, mais tarde, ao dedicar-me à escrita. Ficou desde
sempre, e para sempre, um enorme gosto pela leitura, pelo que deixo o meu
testemunho: comigo o objetivo foi atingido!
Por
razões várias, este serviço de bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste
Gulbenkian, viria a ser extinto em 2002. Foram muitas as autarquias a acreditar
e tomarem iniciativa semelhante, que
promovesse a leitura e elevasse o nível cultural dos cidadãos (por via da
leitura). Para o efeito, renovaram as bibliotecas fixas, tornando-as espaços
atrativos, em zonas centrais, de fácil acesso, e criaram as chamadas
bibliomóvel, para fazer chegar os livros a zonas mais remotas da sua área
jurisdicional. Entre essas autarquias, menciono (por ordem alfabética) as de: Arouca,
Aveiro, Coimbra, Loulé, Oliveira de Azeméis, Pombal, Porto de Mós, Proença-a-Nova,
Santa Marta de Penaguião, São João da Pesqueira, São Pedro do Sul, Valença.
Acredito que poderá haver mais autarquias envolvidas em neste tipo de projeto,
mas não tenho problemas em admitir que desconheço.
Em
abril de 2016, realizou-se na Universidade de Coimbra uma conferência
intitulada “Bibliomóvel no Século XXI. Novos desafios”, a provar que é dada
importância ao assunto. Felizmente há gente, com visão, a acreditar no
bibliomóvel. Pode mesmo parecer uma coisa do passado, ainda mais por nos
situarmos na era das tecnologias. Desengane-se quem pensa que nas zonas raianas,
e outras zonas do interior, há livre acesso à internet e até mesmo rede móvel,
para uso de um simples telemóvel, pois ou não tem ou é deficiente o sinal
recebido. A pretexto do acesso fácil à cultura, por via informática/internet, o
fomento da leitura não pode abrandar e tem de prosseguir, para fazer chegar os
livros [físicos] às populações desfavorecidas do interior, tal como lá chega,
de modo ambulante, a cabeleireira, a enfermeira, o comerciante…
© Jorge Nuno (2016)
Obs.: Crónica publicada na BIRD Magazine (UTAD), em
08-10-2016
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