27/10/2018

CRÓNICAS DO CORAÇÃO DO MINHO (27) - Adeus Dinheiro!...


ADEUS DINHEIRO!…

«Quando a última árvore for cortada, o último rio envenenado e o último peixe pescado, então o homem percebeu que o dinheiro não se come» – frase atribuída a Gerónimo (1829-1909), chefe índio apache.

Esta frase, proveniente da sabedoria indígena, vem a propósito da estupidez humana, supostamente num mundo evoluído, mas que engloba crimes ambientais de consequências trágicas, além de outros crimes que geram cada vez mais desigualdades entre povos, conducentes à guerra, à fome e a migrações em massa, em várias partes do globo.

Segundo a Newsweek, o presidente norte-americano Donald Trump quer «aumentar para 716 mil milhões de dólares o orçamento da defesa», em 2019, representando um aumento de 7% face ao ano anterior. Em julho deste ano, exigiu em Bruxelas que os países da NATO[1] «aumentem os gastos com a defesa [de 2%] para 4% do PIB», reforçando que «os países europeus devem contribuir com mais [dinheiro]». Segundo o SIPRI[2], a China terá um orçamento de cerca de um terço e a Rússia cerca de oito vezes menos do que os gastos dos EUA com a defesa / manutenção das guerras. Com a recente ameaça de denúncia unilateral, pelos EUA, do acordo com a Rússia sobre o nuclear, feito entre Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev, está aberto caminho para a proliferação de armamento nuclear, para regozijo do lóbi da indústria de armamento norte-americana, e desassossego do mundo. Os EUA são livres de fazer novos acordos ou quebrar os existentes, como é o caso do comércio, e que envolve também a Europa. A propósito do comércio, o presidente Trump, em agosto de 2018, também ameaçou retirar os EUA da OMC[3], levando a um aumento de tensão com a China e junto de uma diversidade de países. E porque não falar em “guerra comercial”, em que todos perdem? Com o aumento das despesas militares, “voa” o dinheiro dos contribuintes. Com a desordem do comércio mundial, abre-se caminho à queda do sistema capitalista. A banca, que tem vindo a dar sinais negativos, tem feito “voar” muito dinheiro dos contribuintes e depositantes.

Diana Cooper, no seu livro “2032 – A Nova Idade de Ouro”, escreveu: «Diz-se que as culturas têm os líderes que merecem. A Lei da Atração postula que atraímos os reflexos do nosso ser interior. A humanidade tridimensional vota em líderes de baixa qualidade. Durante séculos tivemos a denominação masculina. Do ponto de vista negativo, os homens exibem características como: controlo, lógica desprovida de sentimento, autoritarismo, separação e curto prazo. (…) os trabalhadores (…) começam a esperar que os seus líderes demonstrem mais fibra moral e mais honestidade. Este raio está a dissolver o velho paradigma masculino e a tocar a consciência das pessoas com o novo. O poder está, realmente, nas mãos da população. No mundo tridimensional demo-lo aos políticos e às grandes empresas. Para entrar no novo temos de o exigir de volta». É neste livro que se pode ler que o dinheiro irá mesmo desaparecer! Os leitores foram sossegados, ao afirmar que as pessoas serão capazes de encontrar caminhos alternativos.

Em julho deste ano, escrevi a crónica “Evolução – Entre Cemitérios e Corridas”. Nela referi a Suécia, por ter criado o maior cemitério de viaturas automóveis do mundo, originando um impacto ambiental negativo com este abandono de viaturas, ao adotar o que era comum na Europa – viaturas com o volante do lado esquerdo. Recentemente, a marca sueca Volvo anunciou que, a partir de 2019, só vai produzir automóveis com motores elétricos, mostrando estar numa onda positiva, favorável ao ambiente. E é precisamente da Suécia que vem a notícia que este será o primeiro país do mundo a abolir o dinheiro de papel. O Banco Central da Suécia refere mesmo a data de 2030. Tudo isto vem favorecer a atuação da Agência Nacional Anticorrupção e da Autoridade Sueca para Crimes Financeiros, que se situam fisicamente muito próximo, fiscalizam e atuam com firmeza. Gunnar Stetler, responsável pelo funcionamento da primeira instituição, afirmou numa entrevista à jornalista Claudia Wakkin, autora do livro “Um País Sem Excelências e Mordomias”, que só se registaram dois casos de corrupção desde os anos setenta (século passado), envolvendo deputados e membros do governo. Quanto a outros setores, em 75% dos casos investigados verifica-se condenação. Refere ainda que o que mantém a Suécia no topo dos países menos corruptos é a «transparência dos atos de poder, o alto grau de instrução da população e igualdade social».

Em Portugal, ao ter ficado escandalizado com a atuação do meu banco – três vezes no espaço de um ano, abusou na subida de comissões bancárias – cancelei a conta e mudei-me para outro banco, de atendimento personalizado, que não tem tesouraria, logo, não movimenta dinheiro físico!

Vejamos outra realidade, caricaturada por Chico Buarque de Holanda, cantor e compositor brasileiro, um homem de grande coerência poética e enorme consciência política. Tem algumas peças musicais que falam de dinheiro, claro, como crítica social. Uma dessas canções intitulou-a “Dinheiro em Penca”, é pouco conhecida em Portugal e tem uma extensa letra, como é seu hábito; a dado passo, pode-se ouvir-se/ler-se: “(…) Meu padrinho quando moço / Era muito fazendeiro / Tirou ouro do sertão / Foi gastar no estrangeiro / O dinheiro da boiada / Transferiu pro estrangeiro / (…) Eu também já tive um tio / Que virou velho gaiteiro / Que gostava de mulher / Como eu gosto de dinheiro / Era louco por mulher / Eu me amarro no dinheiro / Fui mascate no sertão / Caminhei o norte inteiro / Vendi grampo a prestação / Guarda-chuva em fevereiro / Até hoje estou esperando / A remessa do dinheiro (…) / Uma vez em Nova York / Liguei pro meu feiticeiro / Que atendeu o telefone / Lá no Rio de Janeiro / Eu então falei pra ele / Procurar meu macumbeiro / Pra avisar pro pai-de-santo / Pra arranjar algum dinheiro / Pra pedir pro delegado / Pra soltar meu curandeiro / Ao doutor seu delegado / pra soltar meu curandeiro / Mas o tal telefone / Lá se foi o meu dinheiro (…)”. Pelo teor da letra, literalmente, disse adeus ao dinheiro. Mas se o Chico esperasse mais uns anitos para compor esta canção, ela deixaria de fazer sentido, já que, ao que tudo indica, o dinheiro deixará mesmo de circular.

© Jorge Nuno (2018)  



[1] Organização do Tratado do Atlântico Norte.
[2] Stockolm International Peace Research Institute – que realiza pesquisas sobre conflitos, tendo em vista a paz e segurança internacional.
[3] Organização Mundial do Comércio.

13/10/2018

CRÓNICAS DO CORAÇÃO DO MINHO (26) - Lá Vai Uma, Lá Vão Duas...


LÁ VAI UMA, LÁ VÃO DUAS…

“Lá vai uma, lá vão duas…/ e as palavras a pousar / podem ser nuas e cruas / opiniões a voar”, podia começar assim a nova versão da letra [feita por mim] de uma conhecida canção infantil, mas já lá vamos! Prometi voltar com mais cantigas, e cá estou. Começo com uma que teve muito sucesso, que se chama “O mar enrola na areia” e diz assim:
«(…)Também o mar é casado, ai, / também o mar tem mulher /
é casado com a areia / bate nela quando quer.»
Com novas sensibilidades à flor da pele, num mundo que se quer sem violência – mas que está pejado dele –, por deixar transparecer intenções subjacentes, esta letra inicial já foi objeto de transformações, passando o último verso para: «pode vê-la quando quer» ou «dá-lhe beijos quando quer». Reconheçamos: fica mais suave e é politicamente correto.

Também há motivos fortes para se abordar algumas eternas canções infantis, com lengalengas divertidas para memorizar, brincar e serem usadas como dança de roda. Assim se cantava, com a alegria e inocência natural de criança: “Sebastião come tudo!”; “A criada lá de cima”; “Lá vai uma, lá vão duas”; “Atirei o pau ao gato”; “A Barata diz que tem”; “Olha a bola Manel”, entre muitas outras.

Comecemos com “Sebastião come tudo!” e prestemos atenção à letra [para nos situarmos na época, tem partitura original datada de 1943, em plena ditadura do Estado Novo]:
«Sebastião come tudo, tudo, tudo / Sebastião come tudo sem colher
Sebastião fica todo barrigudo / E depois dá pancada na mulher».
Outra vez a falar-se em bater na mulher? Ensina-se estas coisas às criancinhas, e ainda por cima a cantar, e depois espera-se que em adultos tenham comportamentos diferentes! Mais uma vez, houve quem alterasse o último verso para «dá-lhe nela quando quer» – assim já não se fala em pancada, e fica mais soft – ou «e por fim dá beijinhos na mulher» – beijinhos, sim, pois claro! Mas se o menino no infantário come tudo, tudo, tudo… e depois anda a dar muitos beijinhos na maior amiga, que também usa fralda, está o caldo entornado e a colher não serve para nada –.

Façamos agora “dois em um” com as canções “Lá vai uma, lá vão duas” e “Atirei o pau ao gato”:
«Lá vai uma, lá vão duas / três pombinhas a voar /
uma é minha, outra é tua / outra é de quem a apanhar»
(…)
«Atirei o pau ao gato / mas o gato não morreu /
Dona Chica assustou-se / com o berro / com o berro que o gato deu.
Miau!»
O PAN[1] vai ter um trabalho enorme para forçar a mudança de mentalidades, quanto à forma de encarar os animais, por serem gerações atrás de gerações, enquanto crianças, a correr atrás das pombas para as apanhar – e logo um símbolo da paz! – e a atirar paus a gatos, acabando por assustar as muitas Donas Chicas e os próprios gatos. Já conseguiu algo com a recente abolição da atividade desportiva do tiro ao pombo! Quanto a esta última canção, já se cantam os dois primeiros versos do seguinte modo: «Atirei o peixe ao gato / Mas o gato não comeu (…)». Se fosse o gato vadio que rondava a casa da minha avó, até lhe roubava o peixe que tinha destinado para o almoço da família. Agora, por comodismo, força-se o hábito alimentar dos gatos, com latinhas de húmidos gourmet, e dá nisto!

 Vejamos outro mau exemplo para as meninas, em “A criada lá de cima”:  
«A criada lá de cima / é feita de papelão…/
quando vai fazer a cama / diz assim para o patrão: /
sete e sete, são catorze / com mais sete vinte e um /
tenho sete namorados / e não gosto de nenhum».
Numa sociedade que promove a monogamia, ao ver-se que as meninas começam cedo a interiorizar a ideia de ter sete namorados, não é de estranhar que sejam atiradiças; e esta até parece querer atirar-se ao patrão, enquanto faz a cama. É preciso o homem ser firme, para não se ver envolvido num assédio sexual distorcido, ou até mesmo num processo judicial por violação de menores, se for o caso. Como não acho jeito ao verso: «é feita de papelão…», experimentemos corrigir para: «é enorme furacão»; «está em grande solidão»; «aumenta seu ganha-pão» ou «precisa de um chapadão». Pensando bem, creio que «precisa de um chapadão» seria a versão original e foi corrigida para «é feita de papelão…», quem sabe… pelo Diácono Remédios[2].

Aqui está uma cantiga que deve ter sida cantada muito pelos Relvas deste país, quando miúdos:
«A Barata diz que tem um anel de formatura
é mentira da Barata, ela tem é casca dura
ah ra ra, iu ru ru, ela tem a casca dura (…)»
Começa-se cedo a mentir e com a mania das grandezas, e quando estas criaturas chegam à política é o que se vê, com cabeças duras em cargos de responsabilidade.

A verdade é que tem vindo a crescer um movimento preocupante para impor certos conceitos, em grande parte baseados em estereótipos sociais e… preconceitos[3], em que muitas vezes se julga o livro pela capa, levando-se a cometer excessos.

Ainda bem que não foi adulterada a canção que tanto se trauteava e que diz:
«Olha a bola, Manel / olha a bola, Manel (…)
O Manel tinha uma bola / mas agora não tem não /
e a gente a ver se o consola / vai cantar esta canção (…)»
Se eu o quisesse fazer, deixaria uma minha versão adaptada ao craque da bola, que há anos tem sido o melhor do mundo, e neste um “annus horribilis”[4]:
“CR queria a bola / mas agora não tem não /
e a gente a ver se o consola / vai cantar esta canção (…)».
Pior seria a adaptação para um anúncio solidário, de apoio a homens que sofreram uma orquiectomia[5]. Mas nunca se sabe!

Creio que ninguém ousou mexer na letra de “Os vampiros”, da autoria do Zeca Afonso, conhecida como “Eles comem tudo”. Seria imperdoável violar algo que serviu de «combate cultural e cívico em tempo de censura e símbolo da resistência contra o fascismo». Senão vejamos:
« (…) No chão do medo tombaram os vencidos
ouvem-se os gritos na noite abafada
jazem nos fossos vítimas dum credo
e não se esgota o sangue da manada.
Se alguém se engana com seu ar sisudo
e lhes franqueia as portas à chegada
eles comem tudo, eles comem tudo
eles comem tudo e não deixam nada».
Mesmo sabendo que os Sebastiões barrigudos e os inúmeros vampiros continuam a ser grandes comilões, não há necessidade de dar pancada na mulher, até porque ela pode combinar com o amante e matar o marido. Decididamente, não altero a letra do “Lá vai uma, lá vão duas…”; mas que é um exercício tentador para agitar a malta, é!

© Jorge Nuno (2018)




[1] Partido dos Animais e da Natureza
[2] Personagem criada pelo humorista Herman José
[3] Como avaliação negativa em relação ao grupo; confuso, não é?
[4] Por não conseguir, em 2018, os troféus de jogador do ano UEFA e melhor jogador da FIFA, além de outros casos mediáticos que prejudicam a sua imagem, do clube que representa e dos patrocinadores.
[5] Remoção cirúrgica de testículos