LÁ VAI UMA, LÁ VÃO DUAS…
“Lá vai uma, lá vão
duas…/ e as palavras a pousar / podem ser nuas e cruas / opiniões a voar”,
podia começar assim a nova versão da letra [feita por mim] de uma conhecida canção
infantil, mas já lá vamos! Prometi voltar com mais cantigas, e cá estou.
Começo com uma que teve muito sucesso, que se chama “O mar enrola na areia” e
diz assim:
«(…)Também
o mar é casado, ai, / também o mar tem mulher /
é
casado com a areia / bate nela quando quer.»
Com
novas sensibilidades à flor da pele, num mundo que se quer sem violência – mas
que está pejado dele –, por deixar transparecer intenções subjacentes, esta letra
inicial já foi objeto de transformações, passando o último verso para: «pode
vê-la quando quer» ou «dá-lhe beijos quando quer». Reconheçamos: fica mais
suave e é politicamente correto.
Também
há motivos fortes para se abordar algumas eternas canções infantis, com
lengalengas divertidas para memorizar, brincar e serem usadas como dança de
roda. Assim se cantava, com a alegria e inocência natural de criança: “Sebastião
come tudo!”; “A criada lá de cima”; “Lá vai uma, lá vão duas”; “Atirei o pau ao
gato”; “A Barata diz que tem”; “Olha a bola Manel”, entre muitas outras.
Comecemos
com “Sebastião come tudo!” e prestemos atenção à letra [para nos situarmos na
época, tem partitura original datada de 1943, em plena ditadura do Estado
Novo]:
«Sebastião
come tudo, tudo, tudo / Sebastião come tudo sem colher
Sebastião
fica todo barrigudo / E depois dá pancada na mulher».
Outra
vez a falar-se em bater na mulher? Ensina-se estas coisas às criancinhas, e
ainda por cima a cantar, e depois espera-se que em adultos tenham
comportamentos diferentes! Mais uma vez, houve quem alterasse o último verso
para «dá-lhe nela quando quer» – assim já não se fala em pancada, e fica mais soft – ou «e por fim dá beijinhos na
mulher» – beijinhos, sim, pois claro! Mas se o menino no infantário come tudo,
tudo, tudo… e depois anda a dar muitos beijinhos na maior amiga, que também usa
fralda, está o caldo entornado e a colher não serve para nada –.
Façamos
agora “dois em um” com as canções “Lá vai uma, lá vão duas” e “Atirei o pau ao
gato”:
«Lá
vai uma, lá vão duas / três pombinhas a voar /
uma
é minha, outra é tua / outra é de quem a apanhar»
(…)
«Atirei
o pau ao gato / mas o gato não morreu /
Dona
Chica assustou-se / com o berro / com o berro que o gato deu.
Miau!»
O
PAN[1] vai
ter um trabalho enorme para forçar a mudança de mentalidades, quanto à forma de
encarar os animais, por serem gerações atrás de gerações, enquanto crianças, a
correr atrás das pombas para as apanhar – e logo um símbolo da paz! – e a
atirar paus a gatos, acabando por assustar as muitas Donas Chicas e os próprios
gatos. Já conseguiu algo com a recente abolição da atividade desportiva do tiro ao
pombo! Quanto a esta última canção, já se cantam os dois primeiros versos do
seguinte modo: «Atirei o peixe ao gato / Mas o gato não comeu (…)». Se fosse o
gato vadio que rondava a casa da minha avó, até lhe roubava o peixe que tinha
destinado para o almoço da família. Agora, por comodismo, força-se o hábito
alimentar dos gatos, com latinhas de húmidos gourmet, e dá nisto!
Vejamos outro mau exemplo para as meninas, em
“A
criada lá de cima”:
«A
criada lá de cima / é feita de papelão…/
quando
vai fazer a cama / diz assim para o patrão: /
sete
e sete, são catorze / com mais sete vinte e um /
tenho
sete namorados / e não gosto de nenhum».
Numa
sociedade que promove a monogamia, ao ver-se que as meninas começam cedo a
interiorizar a ideia de ter sete namorados, não é de estranhar que sejam
atiradiças; e esta até parece querer atirar-se ao patrão, enquanto faz a cama.
É preciso o homem ser firme, para não se ver envolvido num assédio sexual
distorcido, ou até mesmo num processo judicial por violação de menores, se for
o caso. Como não acho jeito ao verso: «é feita de papelão…», experimentemos
corrigir para: «é enorme furacão»; «está em grande solidão»; «aumenta seu
ganha-pão» ou «precisa de um chapadão». Pensando bem, creio que «precisa de um
chapadão» seria a versão original e foi corrigida para «é feita de papelão…»,
quem sabe… pelo Diácono Remédios[2].
Aqui
está uma cantiga que deve ter sida cantada muito pelos Relvas deste país,
quando miúdos:
«A
Barata diz que tem um anel de formatura
é
mentira da Barata, ela tem é casca dura
ah
ra ra, iu ru ru, ela tem a casca dura (…)»
Começa-se
cedo a mentir e com a mania das grandezas, e quando estas criaturas chegam à
política é o que se vê, com cabeças duras em cargos de responsabilidade.
A
verdade é que tem vindo a crescer um movimento preocupante para impor certos
conceitos, em grande parte baseados em estereótipos sociais e… preconceitos[3],
em que muitas vezes se julga o livro pela capa, levando-se a cometer excessos.
Ainda
bem que não foi adulterada a canção que tanto se trauteava e que diz:
«Olha
a bola, Manel / olha a bola, Manel (…)
O
Manel tinha uma bola / mas agora não tem não /
e
a gente a ver se o consola / vai cantar esta canção (…)»
Se
eu o quisesse fazer, deixaria uma minha versão adaptada ao craque da bola, que
há anos tem sido o melhor do mundo, e neste um “annus horribilis”[4]:
“CR
queria a bola / mas agora não tem não /
e
a gente a ver se o consola / vai cantar esta canção (…)».
Pior
seria a adaptação para um anúncio solidário, de apoio a homens que sofreram uma
orquiectomia[5].
Mas nunca se sabe!
Creio
que ninguém ousou mexer na letra de “Os vampiros”, da autoria do Zeca Afonso,
conhecida como “Eles comem tudo”. Seria imperdoável violar algo que serviu de
«combate cultural e cívico em tempo de censura e símbolo da resistência contra
o fascismo». Senão vejamos:
«
(…) No chão do medo tombaram os vencidos
ouvem-se
os gritos na noite abafada
jazem
nos fossos vítimas dum credo
e
não se esgota o sangue da manada.
Se
alguém se engana com seu ar sisudo
e
lhes franqueia as portas à chegada
eles
comem tudo, eles comem tudo
eles
comem tudo e não deixam nada».
Mesmo
sabendo que os Sebastiões barrigudos e os inúmeros vampiros continuam a ser
grandes comilões, não há necessidade de dar pancada na mulher, até porque ela
pode combinar com o amante e matar o marido. Decididamente, não altero a letra
do “Lá vai uma, lá vão duas…”; mas que é um exercício tentador para agitar a
malta, é!
© Jorge Nuno (2018)
[1] Partido
dos Animais e da Natureza
[2]
Personagem criada pelo humorista Herman José
[3] Como
avaliação negativa em relação ao grupo; confuso, não é?
[4] Por não
conseguir, em 2018, os troféus de jogador do ano UEFA e melhor jogador da FIFA,
além de outros casos mediáticos que prejudicam a sua imagem, do clube que
representa e dos patrocinadores.
[5] Remoção
cirúrgica de testículos
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