25/02/2021

Crónicas de Língua Afiada: ESTRANHO PAÍS... Parte II

 ESTRANHO PAÍS…

 Parte I I

 Estranho país, em que

– se chega a propor a entrega de um botão antipânico aos estrangeiros que permaneçam temporariamente à guarda do SEF[1] nos aeroportos nacionais, para os proteger da agressividade da própria polícia de fronteira;

– agentes da PSP[2] e militares da GNR[3] se “guerreia” sobre as competências territoriais, relacionadas com a escolta de uma carrinha especial usada para transporte de vacinas, com bloqueio da mesma em Évora, quando seguia de Coimbra para o Algarve, onde viria a chegar, com bastante atraso, podendo ver-se essa viatura escoltada por seis carros e duas motos da PSP e duas carrinhas da GNR, e o MAI[4] forçado a pedir a abertura de um “inquérito urgente” ao IGAI[5], para apurar o sucedido;

– quando detinha o maior índice de mortalidade na Europa, surgem equipas médicas do Luxemburgo, França e Alemanha, a revelar solidariedade e a dar um contributo, mesmo que simbólico, no combate à pandemia, e se impeça, pela via administrativa, a colaboração voluntariosa e solidária de médicos reformados portugueses, que se prontificaram para ajudar quem tanto precisa de cuidados médicos, colocando a possibilidade de, não sendo na linha da frente, terem tarefas de apoio aos médicos de família, nem que fosse nos inquéritos epidemiológicos; esta falta de resposta e indiferença, por parte de quem se escuda nas regras, pode ser considerada insultuosa para estes médicos e para os portugueses, e passa um mau sinal a todos aqueles que, em momentos críticos, sentem genuína vontade de ajudar;

– quando se anuncia que se perdeu quase 17 milhões de turistas em Portugal, em 2020, por causa da pandemia, fica-se a saber, ironicamente, que a cidade de Braga foi eleita como o “melhor destino europeu [2021] para visitar”, numa altura em que a maioria dos hotéis estão fechados, tal como a totalidade dos restaurantes, pelas mesmas razões, impossibilitando os turistas de a visitar e ficar com a ideia de que a escolha é acertada;

– forçado pelo presidente da República – que quer que se vendam livros – o Governo elabora e aprova um decreto-lei, definindo que a venda será possível em todos os espaços que têm permissão para estar abertos (como p. e. os hipermercados ou lojas tipo FNAC) e deixa de fora as livrarias, que unicamente estão devotadas à venda de livros, ficando assim impedidas de o fazer, tal como fica a Autoridade da Concorrência impedida de assegurar a aplicação das Leis da Concorrência, que se quer saudável; mais estranho ainda… quando o primeiro-ministro diz ter feito “a vontade ao senhor presidente da República, que o proibiu de proibir”;

– no final do ano de 2019 se apregoava o “milagre económico” do país, em boa verdade, alavancado pelo turismo, e agora, o BdP[6], anuncia que a dívida do Estado, das empresas e das famílias atingiu um recorde de 745.800 ME[7] em 2020, com acréscimo de 24.900 ME no endividamento do setor público, face a 2019, situando-se em 342.500 ME, e do aumento de 2.500 ME no endividamento no setor privado, a atingir o total de 403.300 ME neste setor; prova-se que a atual situação é bem pior do que em 2008, altura em que a Troika regressou a Portugal, para “castigar” quem gasta acima das suas possibilidades;

– após difíceis negociações, foi anunciada a aprovação de verbas significativas, na denominada “bazuca” europeia, e a criação do PRR – Programa de Recuperação e Resiliência (em consulta pública), com cerca de 13.900 ME de subvenção a fundo perdido e 2.700 ME a conceder pela UE[8], a título de empréstimo; lembra-se que tinham sido inscritos, no documento inicial, 4.300 ME como pedido de empréstimo… só que este vai fazer aumentar a dívida soberana do Estado e o próprio OE[9] de 2021 e seguintes, e lembra-se, também, que em 2023 haverá eleições legislativas, caso não sejam antecipadas;

– depois de António Costa Silva ter sido convidado como consultor do Governo, vindo a elaborar o documento “Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030”, que enquadrou o orçamento de 2021, ouviu-se um membro do mesmo Governo – o ministro do Planeamento – numa audição parlamentar, face à entrada do dinheiro da “bazuca” e como estaria ser planeada a sua utilização, esclarecendo que não é possível usar esse dinheiro em apoios de emergência, para mitigar o impacto da pandemia, pois esse dinheiro destina-se a concretizar reformas, logo, fica-se com a ideia que, com pandemia, não é possível Portugal ter um plano de recuperação económica;

– se sabendo da súbita recessão económica, derivada da pandemia, e que quando não se combate a crise, agrava-a, estranha-se que após muitas promessas de investimento, não se verificasse a execução orçamental de 2020, incluindo o orçamento retificativo – a velha história das políticas de cativação – levando os ministérios a reter 6.866 ME, o que inviabilizou que a estratégia económica – a haver – tenha resultado; entretanto, deixou Portugal em 3.º lugar, entre os países da EU que menos gastaram no combate à crise, facto que teve pesados efeitos económicos e sociais, levando ao crescimento das desigualdades e ao aumento da pobreza.

© Jorge Nuno (2021)



[1] Serviço de Estrangeiros e Fronteira

[2] Polícia de Segurança Pública

[3] Guarda Nacional Republicana

[4] Ministério da Administração Interna

[5] Inspeção-geral da Administração Interna

[6] Banco de Portugal

[7] Milhões de euros

[8] União Euopeia

[9] Orçamento de Estado

11/02/2021

Crónicas de Língua Afiada: ESTRANHO PAÍS... Parte I


ESTRANHO PAÍS…

 

Parte I

 

Estranho país, em que

– Se deixa sair os reclusos da prisão, com licença precária, na expetativa que regressem livremente ao fim da mesma e, no principal hospital do norte, se coloca uma pulseira eletrónica antifuga em cada doente, precisamente para impedir a sua fuga do hospital;

– Se criam regras, através de um Plano de Vacinação contra a Covid-19 – com três frases e indicação de grupos prioritários – assim como de outras estratégias direcionadas para o combate à pandemia, e esquece-se de coisas básicas como:

orientações específicas para os serviços do Estado que acolhem estas novas vacinas, levando a que um hospital se veja obrigado a deitar 600 doses de vacinas para lixo, estando estas destinadas aos profissionais de saúde que ali trabalham em condições de grande pressão, insegurança e risco de vida;

do tempo muito reduzido para aplicar as vacinas, que implicaria haver listas ordenadas de suplentes e, não existindo, tem originado a que, abusivamente, se vacinem, na primeira fase, pessoas definidas no Plano como não prioritárias e, por ter contornos de escândalo, levar a que haja um elevado número de demissões em organismos públicos, IPSS e outros, incluindo o próprio coordenador da chamada Task Force;

ter os meios materiais, humanos e logísticos adequados, que possibilite administrar as vacinas em segurança, sendo inadmissível deixar-se, por exemplo: esgotar o stock de seringas, como bem essencial que é, neste caso; ou deixar-se chegar a 50.000 o número de testes epidemiológicos por fazer, por falta de recursos, fazendo aumentar exponencialmente, e de forma descontrolada, as cadeias de transmissão do vírus;  

– uma iniciativa de cidadãos, dinamizada por uma mulher que pretende engravidar através de inseminação artificial do sémen do seu falecido marido, levou a que na Assembleia da República fosse levada a aprovar um projeto de lei favorável a esta petição, com especialistas a invocar ética e mostrarem-se contra o recurso a sémen de cônjuge morto, e o Ministério Público a acenar com a inconstitucionalidade; ignorando os pareceres éticos e legais, os deputados avançaram e aprovaram; o presidente da República fez um pedido de fiscalização preventiva do projeto de lei, tendo o Tribunal Constitucional declarado inconstitucional duas normas de alteração à legislação; agora, os deputados não querem recuar neste processo que possibilita a inseminação post mortem, sem valorizar que o foco deva estar no controlo da resolução de problemas, que atenuem a gravidade da situação do país;

Insolitamente, parlamentares também escolhem a pior altura – o pico da pandemia – para debater e aprovar a lei da eutanásia, que permitirá a morte medicamente assistida, precisamente quando se regista o pico de óbitos desde o início desta tragédia, com os médicos a não ter capacidade e condições para salvar as vidas daqueles que, quando entram num hospital, veem nisso uma oportunidade para sobreviver;

– Um dos maiores epidemiologistas do país sinta necessidade de “desobrigar-se” de fazer apresentações nas reuniões regulares do Infarmed, a “pôr o dedo na ferida”, dizendo que «foi a maior crise de saúde pública em Portugal nos últimos 100 anos (…) tem de haver um passo atrás e assumir que estamos a fazer qualquer coisa que não está bem» e, implicitamente, passar um “atestado de incompetência política” ao governo, por más decisões políticas durante esta fase pandémica, especialmente nos últimos meses, «indo atrás da pandemia, em vez de termos aproveitado os primeiros meses de experiência».

Lembra-se que este país viveu uma tragédia, com o colapso da ponte Hintze Ribeiro (2001), em Entre-os-Rios, e a morte de 59 pessoas, entre passageiros de um autocarro e de três viaturas ligeiras, que caíram ao rio Douro; o ministro do Equipamento Social [Obras Públicas] demitiu-se.

Noutra tragédia no país – incêndio florestal de Pedrógão Grande –, o balanço oficial foi de 66 civis e um bombeiro mortos; a ministra da Administração Interna demitiu-se; resultante da investigação aos incêndios, o Departamento de Investigação e Ação Penal de Leiria deduziu acusação contra o autarca deste concelho, acusando-o de sete crimes de homicídio por negligência e quatro de ofensa à integridade física por negligência.

Perante uma tragédia bem maior, em pandemia, os números oficiais de óbitos em Portugal, associados à Covid-19 [até à data desta crónica], dão-nos conta de 14.457 pessoas que partiram e deixaram enlutadas as suas famílias, fora aqueles que faleceram com outras patologias, por falta de assistência. Tendo a responsável pelo Ministério da Saúde admitido que não se realizaram 1,2 milhões de consultas da especialidade em hospitais, em 2020, assim como se cancelou um elevado número de intervenções cirúrgicas consideradas não urgentes, se reduziram os rastreios e tratamento de doenças do foro concológico, tal como outros exames complementares de diagnósticos, não é de estranhar a manchete de um jornal: «Há mais de 70 anos que Portugal não tinha tantos mortos». Já em janeiro de 2021, os casos de infeção e de óbitos subiram exponencialmente, registando-se: entre os dias 8 e 18, mais de 100 óbitos / dia; entre 19 e 27, mais de 200 óbitos / dia; entre 28 e 31, mais de 300 óbitos / dia. Com estas mortes, será o equivalente a que só no mês de janeiro tivessem “caíram ao rio” uma média de 33 autocarros / dia, ou se tivesse despenhado um avião Boeing 737 / dia, lembrando-se que estes aparelhos têm capacidade máxima de 215 passageiros. Não haverá aqui fundamentos, mais que suficientes, para se enveredar pelo apuramento de responsabilidades políticas e criminais de quem, tendo poder decisório, falhou? É que a situação mais fácil é acusar os portugueses de irresponsabilidade.

© Jorge Nuno (2021)