OLHARES
NO COMBOIO
Olhei para ti,
quando seguíamos na carruagem da frente. Sentada no banco, virada para o
sentido da marcha, cotovelo sobre o peitoril da janela, de olhar distante para
os montes de picos manchados de branco, numa viagem que parecia infinita. Por
vezes eu passava para o outro lado do pequeno corredor, para absorver melhor
toda a paisagem estranha para mim, deste Reino Maravilhoso que ia descobrindo.
Sem te aperceberes, ia desviando o olhar insistentemente para ti, como que a
querer, com a extensão desse olhar, chegar fundo ao teu subconsciente, tentar
adivinhar o que ia no teu pensamento ou simplesmente admirar-te. Despertava
bruscamente, quando a máquina a vapor da linha do Tua soltava faúlhas, que
entravam não sei por onde, apitava várias vezes para afastar animais ou avisar
pessoas, ou era projetado pelos solavancos inesperados, que aos poucos deixavam
de o ser, numa habituação de difícil entendimento. A via estreita, num traçado
serpenteado em zonas rochosas, escarpadas e os desajustes na bitola, proporcionava
esses laterais movimentos da massa de ferro, mantendo o comboio a sua toada de
marcha lenta até ao próximo apeadeiro.
Lembras-te
quando dizíamos, em brincadeira, que poderíamos sair do comboio, ir apanhar
figos e voltar?
Lembras-te
quando dizíamos, em brincadeira, que já deveríamos estar em Espanha, pois
tínhamos tempo suficiente de viagem para isso?
Lembras-te
quando se preparava e levava uma merenda especial para um dia de viagem, de sol
a sol, gasto para percorrer menos de 400 quilómetros?
Lembras-te
das mudas no Tua e Campanhã, fazendo-se grande parte do percurso junto ao
Douro, que parecia sempre um espelho de água?
Não sou homem para
viver do passado, bem pelo contrário, gosto de viver o presente e, apesar da
idade, gosto de ter um olhar sereno e confiante no futuro. Mas a cada dia que
passa, quando era suposto dizer que já nada me espanta, há sempre algo que me
deixa perplexo, não só pela comparação com valores perdidos, caídos em desuso,
como se fosse uma desgraça ser-se honesto, ou como se a palavra de honra, já
para não referir contratos firmados, fossem uma mera ingenuidade de quem
acredita em tal. E a minha perplexidade parece contrastar com a indolente, e já
referida, habituação de difícil entendimento, como a rã que acaba fervida em lume
brando, sem reagir, pois se o fizesse estaria a salvo.
Lembras-te
quando te escrevia diariamente, colocava um selo de 1 escudo na carta e ela te
chegava no dia seguinte? Tens presente que agora mete-se uma etiqueta
equivalente a 80 escudos e a carta chega uma semana depois?
Poderia continuar a
fazer-te muitas, mas mesmo muitas, perguntas de difícil entendimento!...
Já lá vão 40 anos
de memórias, a que as células resistem!
É pena que não te
possa rever naquele comboio, sem as pressas atuais, pois teríamos todo o tempo
do mundo. É pena, nem que seja só mais uma vez. É pena, pois desativaram a
linha e foram progressiva e escandalosamente roubando os carris, tal como nos
querem desativar a máquina e vão progressiva e escandalosamente roubando no
valor das nossas reformas!
Resta-me
a felicidade de te ter por perto e saber que não me conseguem roubar as
memórias e os sonhos, que vou desenvolvendo a cada dia.
©
Jorge Nuno (2014)