A Longa Noite de Verão
Decorre
o solstício de verão, com a noite mais curta do ano. É certo que a astronomia
define como solstício de Verão “o momento em que o sol, assim como o
vemos a partir da Terra, atinge a maior declinação em latitude, medida a
partir da linha do equador, em junho no hemisfério norte (…)”. A palavra “solstício”
provém do latim e significa “sol que não mexe”, ou seja, “sol parado”, já que dá
a ideia ao observador comum (exceto aos cosmonautas no espaço) que o sol mantém
uma posição fixa, durante algum tempo, ao nascer e ao desaparecer no horizonte.
Completamente
alheios a este ciclo de mudança de estação, alguns emigrantes que conseguiram
antecipar as suas férias e alguns estudantes, mesmo em época de exames, juntam-se
aos seus familiares, pessoas idosas, que resistem em não abandonar a aldeia e
juntam-se também alguns visitantes das aldeias vizinhas e até da cidade, desta
vez em maior número do que em anos anteriores devido à presença anunciada de um
cantor/animador, figura conhecida de um Reality
Show. São os festejos em honra do santo padroeiro – o São João Baptista –
com a habitual animação, embora a verdadeira noite de São João seja daqui a
dois dias. Nestes festejos, como em muitos outros, é frequente terminarem
quando começa a raiar do dia, como se se tratasse de exorcizar os fantasmas
durante a noite para haver o sentimento de libertação durante o dia.
Há
rancho melhorado, farpela aparentemente nova e a porta da igreja aberta todo o
dia e noite, para se poder ver a imagem do santo, embelezado com flores verdadeiras
e notas de 5, 10 e 20 euros e um ou outro cordão ou peça de ouro, para
cumprimento de promessas, que isto de promessas é para se levar a sério!
Dão
alguma vivacidade as flores de papel no largo da Igreja, colocadas junto do fio
elétrico da iluminação com lâmpadas coloridas e da alimentação das quatro colunas
de som espalhadas naquela zona.
Costuma
estar quase sempre por ali o atrelado do trator do ti Zé Inácio, que já de há
algum tempo para cá dá mostras de ter medo de pegar no trator, “não vá o diabo
tecê-las” – diz frequentemente, assustado com a sua falta de reflexos e com os
relatos de tanta morte ocasionada pelo virar dos tratores e, desta vez o
atrelado irá servir de palco para o espetáculo da noite.
A tasca
do Tonho, anunciada no cartaz das festas como tendo um “esmerado serviço de
bar”, também está engalanada, com bancos corridos e mesas no largo e, próximo,
uma televisão de “rabo grande” também no exterior, para se poder ver a bola em
tempos de Mundial, o que obrigou a algum esforço para mudar de sítio ao “prato”
da parabólica.
Nesta
ambiência e com o largo quase cheio dá-se início, com algum atraso, ao
anunciado espetáculo com o popular grupo de música, que quase não se consegue mexer
em cima do atrelado e muito menos as duas moças, semidespidas, com tarefas de esporádicos
acompanhamentos vocais e realização dos habituais passinhos de “dança
sincronizada”, repetidos à exaustão, para gáudio dos homens mais idosos da
aldeia.
Por
volta das 23 horas, sobe ao palco o conhecido cantor/animador, debaixo de
enormes aplausos. Começa a cantar a primeira canção, sem qualidade de voz nem
técnica para o fazer, mas com os requisitos naturais de um animador. E lata não
lhe falta, gracejando facilmente! Mal terminam os aplausos após a primeira
canção, anuncia que vai embora e, ele próprio, sem esperar pela reação do
público, vai gritando de microfone na mão:
– Só
mais uma, só mais uma, só mais uma…. – Mais aplausos. E continua com comentários,
como – Disseram-me que vinha atuar num palco como no Rock in Rio e afinal é o atrelado de um trator! Mas eu mesmo assim
sinto-me um artista realizado. Acreditem que não estava preparado para ter
tanto sucesso… É a primeira vez que ao fim de quatro minutos não gritam daí “Vai-te
embora! Vai-te embora!”… Desculpem, eu não trouxe os CD’s, do meu novo trabalho,
que é o primeiro, pois sei que ninguém os compra… – Apresenta os seus músicos e
bailarinas, que não existem, pois está sozinho em palco. Alega mesmo – Foram os
cortes da troika que me obrigaram a
vir sozinho! – Canta desafinadamente mais algumas canções, que diz serem da sua
autoria, e vai pedindo ao público – Vamos lá a por essas mãozinhas no ar! – E a
verdade é que entretém, com alguma graça, as pessoas presentes até próximo da
meia-noite, altura em que se dá o lançamento do fogo-de-artifício, momento alto
do arraial.
Depois
do fogo, é a debandada da maioria dos forasteiros e de alguns idosos da aldeia,
continuando o arraial, com a animação a cargo do mesmo popular grupo de música
que tinha iniciado o espetáculo.
Passadas
cerca de três horas, regista-se um incidente que envolve dois elementos da GNR
(bem conhecidos, por fazerem regularmente o despiste, aconselhamento e
acompanhamento de idosos isolados ou em estado de solidão), e o Chico “Gordo”,
o “intelectual” que trabalha na cidade, que anda muitas vezes alcoolizado (e
desta vez não foi exceção, causando alguns desacatos). Tem a alcunha de
“Gordo”, evidente pelo seu aspeto físico, devido à cirrose e maus hábitos
alimentares.
Pouco
depois das cinco horas regista-se um diferendo entre o líder do grupo musical e
o mordomo da festa, em que o primeiro recusa continuar a atuação e o segundo a
insistir com o compromisso verbal de atuarem até se justificar e teriam que
continuar até ao raiar do dia, que tardava. O grupo musical arrumou mesmo o
equipamento, perante os protestos dos resistentes no bailarico e do mordomo da
festa, com quem se teriam que entender sobre o pagamento da atuação e para o
qual foi requisitada novamente a presença dos dois agentes de serviço.
A noite
mantém-se e o dia teima em tardar.
Mantém-se
ligada a televisão do Tonho, depois de um jogo de futebol que acaba depois da
uma hora da madrugada, mudado posteriormente para um canal noticioso com comentários
ao jogo, que quase ninguém ouve com o barulho da música no largo. Bem mais
tarde, repete-se um programa, com debate político, que aborda o chumbo do
Tribunal Constitucional (TC) com argumentos a favor e contra o TC, a guerra
entre o Governo e o TC, o posicionamento político dos juízes, o desrespeito da
Constituição, a perspetiva de novo aumento de impostos, o afogamento da
economia, a trapalhada dos cortes dos subsídios e vencimentos no setor público,
as cautelas a ter com os mercados financeiros, o incumprimento das metas do
défice nacional, a ingovernabilidade do país, a impossibilidade de pagar a
dívida soberana, a certeza dos juízes do TC não responderem perante os
eleitores, dando a entender que esses juízes não representam a democracia.
Outro comentador, num claro apoio à oposição, aborda os princípios de
igualdade, de confiança, de proporcionalidade e de razoabilidade, para
justificar a atitude dos juízes e a faz cair no ridículo os governantes
infratores à carta soberana do país, que é para cumprir. Outro, favorável à
ação governativa, aponta os juízes como sendo sindicalistas dos funcionários
públicos, que conseguem não deixar passar as iniciativas do Governo, arrastando
todo o povo e as empresas para uma pesada carga fiscal. A dada altura a temática
desvia-se para eventuais causas da crise e para a solução apresentada pelo BCE,
com dinheiro fácil ganho pelos bancos, disponibilizado pelo BCE a taxas de juro
de 1%, que por sua vez emprestaram aos países necessitados, onde se inclui
Portugal, a taxas de 6 e 7%. Foi divulgado que o BCE, de maio a dezembro de
2010, terá emprestado cerca de 72 mil milhões a países do euro (a chamada
dívida soberana) e que as agências de rating
têm vindo a comportar-se de modo suspeito, fazendo com tudo isto pareça que a
nossa economia está ser insensatamente jogada na roleta do casino e,
entretanto, os cortes nos salários e pensões, assim como os aumentos de
impostos, não chegam só para pagar os lucros dos bancos, que mesmo assim
transmitem a ideia de grande fragilidade, sempre com a desculpa do crédito
malparado e da crise. Insiste-se que este é um mal menor e há que continuar com
as reformas estruturais que conduzam à contenção na parte da despesa do Estado,
a bem ou a mal! Entretanto, “a dívida pública vai aumentando, como um cavalo
desgovernado, sem freio nos dentes”… frase que se destaca, em contraciclo da
maioria dos comentários destes “fazedores de opinião”.
Enquanto
decorre esta emissão, vai-se juntando gente no exterior da Tasca do Tonho, não
pelo interesse do programa em si, cuja linguagem é desconhecida deste tipo de
telespetadores, mas por ser o único local “aberto” àquela hora e por começar-se
a estranhar o atraso no aparecimento do sol. É que, tal como a morte, o nascer
do sol é uma das maiores certezas da vida! Como tal, a preocupação das pessoas
começa a ser evidente. Então alguém tem a ideia de pedir ao Tonho que mude de
canal para ver o que se passa. Ele sobe a um banco e muda manualmente de canal,
para um canal generalista.
Estava
a começar um habitual programa com uma taróloga, que estranhamente deu os “bons
dias”, para logo a seguir dizer – Não perca a fé e reze com este lindíssimo
terço. Ligue e receba o incenso do seu signo.
Ao
ouvirem “não perca a fé”, faz-se silêncio absoluto e o Tonho desce do banco. A
taróloga começa o deitar das cartas de Tarot
e vai dizendo o seu significado. Fala em três dos vinte e dois arcanos maiores
que surgem, “O Carro”, “O Dependurado” e “A Lua” e dois menores, cartas de
espadas. Começa com “Dez de Espadas” e realça – É a vida a mover-se no sentido
oposto. Significa sacrifício, dor, escuridão. Está na hora de mudança. Dê cor à
escuridão – Passa ao “Nove de Espadas” – É considerada a pior carta do naipe,
por ter uma forte conotação negativa, mas pode não ser assim tão mau. Significa
“erguer do escuro”, das “profundezas”. Verifica-se que há muita
vulnerabilidade, desassossego, melancolia persistente e sensação de algum
equívoco. Mas nada de preocupação excessiva, que “depois da guerra vem a paz”,
mas para isso devemos lidar corretamente com os nossos medos e agir rapidamente
se quisermos os nossos problemas resolvidos – Sobre “O Dependurado” diz – É
tempo de mistério. Este é um período de sacrifício, sofrimento, obsessões e de
desilusões sendo precisa toda a força e determinação para ultrapassar os
obstáculos… – Esta linguagem é um pouco mais acessível e as pessoas presentes
nem ousam comentar, pois parecem reconhecer naquilo um conteúdo de verdade
quando se fala em “ escuridão”, “sacrifício”, “dor”, “desassossego”,
“melancolia” e “sofrimento”.
Uma
idosa, que tinha surgido para comprar pão trazido pela carrinha, que devia
estar quase a chegar, aproxima-se dos restantes e outra fala-lhe baixinho e
menciona o terço da taróloga, levando instintivamente a idosa a meter a mão por
dentro da blusa e retirar um terço que trazia sempre ao pescoço, começando a
mexer os lábios e a tremelicar os dedos nas contas, sinal de oração mecanizada.
Entretanto,
a taróloga continua – Agora “O Carro”. Significa que as desigualdades irão ser
vencidas e que com determinação a vitória chegará. As influências externas
podem encontrar-se em disputa entre si, mas há que ter o poder de julgar
corretamente essas influências externas e tomar as suas próprias opções no
caminho a seguir, fazendo-o com convicção. No entanto deve avaliar com atenção
qual a altura certa para agir e realmente tomar controlo da sua jornada
espiritual e corpórea. Agora esta carta, “A Lua”, diz que necessitamos de ser
prudentes e não nos deixarmos cair na ilusão. É preciso mesmo cuidado com as
pessoas que prometem e não cumprem…
Entretanto
vai passando, em rodapé, coisas como: “8 de espadas significa crueldade”. “Capricórnio
– Alguém pode ser cruel consigo. Proteja-se. Tudo pode ser vencido pela fé”. “Aquário
– Pensamento positivo. Comece o dia com um sorriso”. “Carneiro – Novas ideias
no emprego. Possibilidade de ganhar dinheiro”. “Touro – Evite períodos de mais
sacrifícios. Pensamento positivo”. “Caranguejo – Uma fase muito agitada espera
por si”. “Leão – Seja mais amorosa com o seu par”. “Virgem – Coma mais legumes
e ponha os intestinos a funcionar”. “Escorpião – As minhas ideias podem dar
bons resultados, porque eu acredito nelas”. “Sagitário – Dinheiro: Nada a
preocupará a este nível. Tudo está em equilíbrio”. “Peixes – Sente-se ‘enferrujada’?
Pratique natação”…
O Chico
“Gordo”, depois de mais uma noite de excesso de álcool e alguns desacatos
involuntários (que ele nem é dado a atos de violência), tinha adormecido,
sentado no chão, encostado às grades de cerveja vazias. Com dificuldade põe-se
em pé, cambaleando até junto do grupo, que se encontra meio assustado, reunido
a ver televisão. O passar do tempo e o orvalho terá refreado os efeitos do
álcool, mas ainda com sinais bem visíveis. Ao ouvir falar em Horóscopos, diz o
mais alto que é capaz – Iroscópos é comigo… hip! – Provocando entreolhares,
risos amarelos e reações para silenciar quem veio perturbar aqueles momentos de
reflexão e de preocupação. Impávido, continua, arrastando a fala, dobrando a
língua e repetindo algumas palavras – Pareceis… pare… ceis tooooodos uns bêbedos
ou… pior aiiiinda, hip… pareceis… pareceis uns zombies. Deixais a escuridão
tomar conta… tomaaaar conta das vossas vidas, hip. Até que o sol não brilhe…
hip… deveis… deveis deixar aceeeesa a chama da vela interiooor. As crianças
podem ter meeedo… muitooo meeedo do escuro e fazem trampa, mas vós… adultos sois
estú… estúpidos… hip… fazeis a porcaria e não sabeeeis limpaaaar. Hip… Depois…
depooois ficais toda a vida a queixar-vos que cheira… cheeeira mal! Só quereis
andar entre… entretiiidos e achais que são as feeestas… as festas que liiiimpam
a porcaria… hip. Só tendes que teeer coragem… hip… e pegar na pá… na pá e
vassoura... hip. A trampa… pode estar agarraaaaada, mas tudo se limpa...
liiimpa. Estais ceegos… como não vedes… não veeedes… que é um noooovo dia?
Mããoooos à obra…
– Cala-ta parvo! Não incomodes. Não sabes
o que dizes! O que o vinho faz!...– Atira um amigo de longa data do Chico.
© Jorge Nuno
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