30/01/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (3) - A Lucidez do Embriagado

A LUCIDEZ DO EMBRIAGADO

Já na rua, bem agasalhado, sozinho, começo o meu habitual passeio pedestre, que tanto pode ter de saudável como de doentio – quando em esforço, ultrapasso a dúzia de quilómetros –. De repente, sinto um arrepio eletrizante na coluna, que se expande em frações de segundo por todo o corpo. Não, não é influência do intenso frio nesta manhã de inverno. Apenas o relance do sonho quase a esfumar-se e, que com algum esforço, tento recuperar, depois de ter acordado há uma hora atrás. Havia uma aranha negra a trabalhar a sua teia e muito dinheiro a voar. Viam-se euros, yenes, libras esterlinas, dólares americanos, riais sauditas, rublos, yuans, francos suíços, shekels e papel-moeda de muitos outros países. A movimentação do dinheiro não era desordenada, como no caso da noite de Natal em Hong Kong, quando se abriram as portas traseiras de um carro de transporte de valores, com quase quinze milhões de dólares americanos, espalhando as notas por uma movimentada avenida e que muitos aproveitaram para recolher e, honestamente, entregar às autoridades, enquanto que outros, embora não comemorando o Natal, terão pensado tratar-se de uma ”prenda” que podiam levar para casa. A movimentação das notas era algo semelhante a um tapete voador, das histórias das “Mil e Umas Noites”. As notas voavam ordenadamente, como quem não tem pressa de chegar, com uma direção precisa, num único sentido, ondeando ligeiramente, sendo mais evidente nas pontas.
Durante o percurso, costumo fazer uso da contemplação, no contacto com a natureza, e vou tirando algumas fotos para reter o que vejo de interessante e de agradável, numa tentativa, natural, de começar o dia a relaxar, procurando abster-me das notícias desagradáveis com que sou bombardeado diariamente e que me provocam irritação… mas, por momentos, não resisto: vem-me à mente a falta de capacidade dos Serviços de Urgências dos Hospitais, onde morrem pessoas por falta de assistência e as declarações da DGS num dos balanços da gripe, onde se ficou a saber terem morrido mais 1900 pessoas nas duas primeiras semanas do ano do que em igual período do ano passado, denotando o SNS estar a acusar os cortes e a evidenciar falta de meios, conduzindo ao recurso das urgências do setor privado.
Consigo desviar a atenção das “desgraças”, ao parar junto de uns arbustos – azevinho – sentindo-me deliciado com as folhas mescladas de verde e branco (de um pouco de neve que ainda restava) e o contraste das bagas vermelhas. Prossigo a caminhada, numa passada tão vigorosa quanto o trilho e o físico permitem, e vem à mente o sonho com o dinheiro a voar. – Mas o dinheiro nem era meu!... – penso, quase numa tentativa de voltar a desviar do pensamento o que queria evitar. Depois, volta à baila a aranha negra. Pensando bem, afinal, parece-me que não haverá motivos para ficar preocupado, pois as aranhas podem assustar… mas o seu simbolismo, no sonho, está associado à criatividade, que algo me poderá estar a inspirar, pelo que devo corresponder a esses impulsos criativos. E ver a aranha a tecer a teia poderá significar que serei recompensado pelo meu esforço. Sinto-me um pouco mais tranquilo e lembro-me de um pequeno texto que escrevi em 2012, pondo-me a recitá-lo alto, enquanto caminho.
“A ARANHA
Estes aracnídeos são feios, assustam, matam.
Estes aracnídeos repugnam.
Sabem produzir seda para a construção das teias.
Sabem como construir teias.
Sabem como construir teias resistentes.
Sabem como construir teias resistentes a climas adversos.
Sabem esperar pelas vítimas.
Os membros do Clube de Bilderberg também.”
Volta tudo à primeira forma, pois dá-se um clique e lembro-me do dinheiro a voar no sonho e junto as peças do puzzle, com o Clube de Bilderberg – o clube secreto, como sendo a “mão invisível” dos poderosos que operam na sombra e controlam e orientam decisões em todo o mundo. Alega mesmo a jornalista e escritora sevilhana, Cristina Martín Jimenez, depois de exaustiva investigação, que se deu um ataque financeiro planeado a Portugal e que há uma intenção clara, daqueles, em contribuir para que se retire aos países a capacidade decisora (leia-se: perda de soberania), esvaziando o poder democrático.
Há quem não tenha dúvidas que Dominique Strauss-Kahn, ex-diretor-geral do FMI, nomeado para o cargo após indicação do Clube de Bilderberg, foi vítima de uma conspiração construída ao mais alto nível por se ter tornado uma ameaça crescente aos grandes grupos financeiros mundiais. As suas declarações, como a necessidade de regular os mercados e as taxas de transações financeiras, assim como uma distribuição mais equitativa da riqueza, assustaram os que manipulam, especulam e mandam na economia mundial, tornando-se, por isso, a sua “sentença de morte”. Através do relatório da ONG britânica Oxfan, certamente saberia que os oitenta mais ricos mundo têm tantos ativos como os 3,5 mil milhões de mais pobres (recentemente, é indicado que em 2016 o 1% mais rico terá mais de 50% dos ativos existentes no mundo); que os setores que mais cresceram e que compõem a riqueza do 1% são, fundamentalmente, os das finanças, dos seguros, seguindo-se os da saúde (serviços médicos e indústria farmacêutica), que investem muito em lobbying; saberia que, através de um órgão das Nações Unidas, a riqueza mundial estava concentrada nas mãos de um número restrito de pessoas e que o fosso aumentava a um ritmo alarmante e que se essa renda mundial fosse distribuída de uma maneira equitativa, cada cidadão disporia de ativos na ordem dos 21 mil dólares americanos.
“Esta” democracia grega e o líder do Syriza, recém-empossado primeiro-ministro grego (mesmo fazendo uma estranha coligação com o pequeno partido nacionalista de direita “Gregos Independentes”, para ter maioria no parlamento), será fonte de enorme inspiração para cidadãos de outros países que se querem livrar das “garras opressoras”. É, simultaneamente, uma forte preocupação para aqueles que detêm excessiva importância na União Europeia e nos meios financeiros mundiais e, como tal, poderá ser um alvo a abater. É que o Alexis Tsipras fez a afronta, na campanha eleitoral, de dizer “não a mais resgates, não a mais submissão, não a mais chantagens”, quer correr imediatamente com a troika, acha que os governantes devem trabalhar em prol dos cidadãos que os elegeram e não devem desmerecer essa confiança e, ainda por cima, escolheu para ministro das finanças um economista que é conhecido pelas suas posições de recusa de mais austeridade no país. Logo após serem conhecidos os resultados, do FMI, do Bundesbank e do ministério das finanças alemão, surgiu logo a chuva de avisos que “o apoio económico externo só continua se forem cumpridos os acordos”. Logo após a tomada de posse, o primeiro-ministro grego respondeu com uma visita, cheia de simbolismo, ao monumento às vítimas dos nazis em Atenas.
Ia nas cogitações sobre as desigualdades sociais como geradoras de conflitos e nas supostas lutas religiosas… quando passo, a caminho de casa, ao lado de um “snack-tasca”, procurado tanto pela bebida como pelas saias, e vejo um conhecido sujeito, visivelmente embriagado, a cambalear, apesar de ter um braço na parede e estar a ser segurado por uma das “meninas” que ali trabalha – sujeito que já tinha visto noutra altura, igualmente naquele estado, a ser segurado por três “meninas”, que o impediam de entrar na sua velha viatura, de um vermelho descorado, cuja matrícula não lhe permitiria circular no centro da cidade de Lisboa (caso lá quisesse ir), mas que nem conseguiria avançar os oitenta metros até à primeira rotunda, tal o seu estado. Desta vez, arrastava a fala e dizia, repetidamente, para quem queria ouvir: “Abre os oooolhos muuuula! Abre os oooolhos muuuula!...”.
Que lucidez!

© Jorge Nuno (2015)

22/01/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (2) - Os Degraus da Felicidade




CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO



II – Os Degraus da Felicidade



No segundo dia do ano, bastante cedo, apanho o autocarro – como opção de transporte –, apesar de me desagradar as quase três horas e meia de viagem para percorrer 210 kms. Reparo que em cerca de quinze minutos terei olhado para o relógio umas dez vezes. Mostro-me agastado pelo facto de não haver aquela valência na cidade e ter que me deslocar ao Porto. Porque me estava a sentir menos bem, decido esquecer os aspetos desagradáveis e a fixação no destino e gozar o resto da viagem, apreciando a paisagem, que tanto pode ter de agreste como de bela. Tudo dependerá de como os nossos olhos e a nossa mente a querem ver. Como que por encanto, tudo se torna mais esbatido e suave, depois da segunda paragem, quando entra um passageiro e se senta junto de mim. Este, de imediato, mostrou ser uma pessoa positiva, alegre e boa conversadora e a conversa e o tempo fluíram agradavelmente.

Chegado ao destino, compro um jornal e dirijo-me à conhecida clínica portuense. À entrada da receção, faço o check-in automático, numa máquina, e desloco-me ao balcão, onde transbordava simpatia. Ofereceram-me uma revista e chamaram uma auxiliar para me acompanhar à sala de espera. Já sentado, vejo tratar-se de uma revista que é propriedade do próprio grupo, na área da saúde – embora editada no verão passado –. Apesar de ter um jornal para ler, folheio-a com alguma curiosidade. Logo me deparo com um artigo sobre a “Felicidade” e que me parece muito interessante, já que mostra o perfil de um português feliz, numa altura em que me parece que anda tudo com cara de enterro. Ao folheá-lo, destaco coisas como: “As pessoas felizes são 12% mais produtivas” [dados do Departamento de Economia da Universidade de Warwick (Reino Unido); “(…) a existência de hábitos saudáveis antes dos 50 anos traduz-se no aumento de uma saudável e feliz longevidade. Não ter vícios e fazer exercício é importante mas, a forma como contruímos as relações sociais, é determinante para se viver mais tempo” [“Harvard Study of Adult Development”, estudo efetuado nos últimos 72 anos por investigadores da Universidade de Harvard]; George Vaillant, diretor do anterior estudo nos últimos 40 anos, acredita que “um envelhecimento bem-sucedido não está mais dependente das estrelas ou dos nossos genes do que da nossa vontade”; “O humor é uma forma de lidarmos com os conflitos” [Scott Weems, neurocientista cognitivo americano]; “O humor é um ingrediente fundamental para a felicidade. (…) Tenho uma predisposição para ver o sentido cómico das coisas. Alivia a tragédia e coloca a vida noutra perspetiva. [Francisco Gomes, copy e contador de histórias]; “O ser humano tem a capacidade de alterar a forma como vê o mundo, de maneira a sentir-se melhor com a situação em que se encontra” [estudo apresentado pelo departamento de Psicologia de Harvard].

Faço uma pausa para refletir. – Espera lá… mas foi isso que eu fiz, quando vinha no autocarro. Senti que tinha que infletir a tendência de má-disposição, de neura…, e ainda por cima no início do novo ano. A verdade é que consegui e passei a sentir-me melhor. Aquela relação ocasional, de pouco mais duas horas, com uma pessoa bem-disposta, ajudou muito.

Retomo a leitura e vejo alguns dados apresentados, que decorriam de um estudo intitulado “A Avaliação Subjetiva da Felicidade dos Portugueses" - estudo de 2010, realizado por dois membros da Comissão Científica da Associação Portuguesa de Estudos e Intervenções em Psicologia Positiva, com entrevistas feitas a 1033 portugueses de ambos os sexos, a residir em Portugal Continental, com idades entre 16 e 55 anos. Neste estudo estiveram também envolvidos a Alemanha, França, Reino Unido, Itália e Espanha. Pode ler-se: “Mostram-nos os estudos que os que constroem diariamente a felicidade tendem a ser altruístas e não egoístas, atentos ao bem-comum, cooperativos, pacifistas, confiantes nos outros, mais tolerantes e democráticos e companhias agradáveis”. A minha primeira reação é – Está mal! Deviam ter introduzido mais dois escalões etários: dos 55 aos 65 anos e mais de 65 anos, porque seria interessante auscultar este grupo populacional, até mesmo esquecido para efeitos de estudo –. Sinto alguma irritação e, de imediato, foco-me nos aspetos positivos do estudo, até ser chamado, e dirijo-me ao gabinete médico, onde fui atendido com eficácia e cortesia.

No regresso, já de noite, sem companhia ao lado e sem poder apreciar a paisagem, revi mentalmente o artigo sobre a “Felicidade” e dos degraus que têm que se subir para a alcançar, ou melhor, construir. – Se calhar até nem é preciso muito esforço, para ir subindo uns degraus – penso. Vêm à mente os interesses das multinacionais e do neoliberalismo de garras afiadas, entranhados nos atos de governação e de gestão – como forma de pressão –, em campanhas bem oleadas de Marketing, que fazem crer que a felicidade advém do “ter”, bem ao jeito de quem se deixa enrolar facilmente pela ilusão e pela ambição descontrolada, mesmo com cortes nos salários e pensões. Em vez do PIB, porque não se adota, no ocidente, o conceito de FIB - “Felicidade Interna Bruta”, criada pelo rei do Butão, baseada no princípio de que “o verdadeiro desenvolvimento de uma sociedade humana surge quando o desenvolvimento espiritual e o desenvolvimento material são simultâneos, assim se complementando e reforçando mutuamente”?

Com pouca luz e trepidação do autocarro, abro finalmente o jornal e, enquanto vou virando páginas, deparo-me com notícias como: “Passagem de Ano na Madeira – 1, 046 milhões de euros em fogo de artifício, gasto em 8 minutos”; “Acidentes nas estradas portuguesas provocam 480 mortos em 2014”; Evaporou-se o BES e metade da PT. Bolsa portuguesa perdeu 27%”; “Segurança Social publica lista de funcionários que serão colocados na requalificação”; “Falta de pagamento do Estado deixa alunos da educação especial sem aulas e pais desesperados”. Era inevitável: fico fulo, ainda mais por me sentir impotente perante estes factos, o que me faz descer novamente os degraus da felicidade, num dia que estava, claramente, a subi-los!

Para corrigir este estado anímico, lembro-me da oração de São Francisco de Assis: “Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado, resignação para aceitar o que não pode ser mudado e sabedoria para distinguir uma coisa da outra.” Logo de seguida, lembro-me do outro Francisco, o Papa – que conhece seguramente esta oração –, que parece tudo querer fazer para mudar o que está mal, começando pelo Vaticano, e consegue manter um desconcertante sentido de humor, confiança no caminho da mudança e um otimismo galvanizador, que pode ajudar a chegar a essa mudança. Por uma rápida sucessão de ideias, chego ao falecido psiquiatra norte-americano – Milton Erickson –, que era muito espirituoso e usava contos e anedotas para provocar mudanças substanciais nos seus pacientes. Enquanto o autocarro rola a boa marcha na A4, reflito: “Se calhar é por isso que há tanta anedota no Governo, no Banco de Portugal, na Comissão Europeia, no Banco Central Europeu e no Fundo Monetário Internacional!”. E não é que em vez de continuar zangado… sorri, subindo mais um degrau!?



© Jorge Nuno (2015)

03/01/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (1) - Sem Rosto e Sem Rasto




CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO


I - Sem rosto e sem rasto.



Depois do que vi ontem num canal noticioso da TV, vi-me impelido a levantar-me cedo e procurar obter uma consulta no meu médico de família. Fora da vidraça, o habitual cinzentão, bem escuro, recortado pelos focos de luz das torres de iluminação da rotunda. Entretanto, os seus sensores avisam que o dia começa a clarear a bom ritmo e apagam-se as luzes. Preparo-me para sair, sem tomar o pequeno-almoço, apesar de adivinhar que a manhã irá ser longa. Procuro o comando do portão da garagem, não a encontro e, sem demoras, decidido, inicio a caminhada, a pé.

 Já na avenida, reparo que o sol está a nascer, pintando, com cores exóticas, o negro das nuvens que teimam em persistir há demasiado tempo. Tudo depende da forma como olhamos. Eu prefiro fixar-me no belo das partes multicoloridas, de tons dourados, relegando o negro das nuvens a um mero contraste. Olho mais para cima e vejo o rasto deixado pelos três aviões da Força Aérea, presumindo tratar-se de treino de voo e/ou controlo do espaço a aéreo, junto da fronteira, a muito poucos quilómetros da cidade. Era algo agradável de ver. Aqueles rastos – seis linhas retas –, pareciam uma pauta de música. Apesar das pautas só apresentarem cinco linhas, ocorreu-me que os pilotos estariam a compor uma canção tripartida para embalar cada uma das suas mais-que-tudo. Apenas faltava colocar-lhe umas quantas breves, semibreves, colcheias e semicolcheias, já que com mínimas e semínimas seria uma composição mais complexa, para estes pilotos enamorados. Enquanto caminho, viro-me algumas vezes para trás, para apreciar este céu bonito e invulgar.

Chegado ao Centro de Saúde, deu-se o que esperava. Neste “reino maravilhoso” – apesar da crise instalada –, há sempre lugar para mais um à mesa, assim como mais uma consulta de clínica geral, sem marcação! Depressa ouço o meu nome no altifalante, levanto-me e dirijo-me ao gabinete para a triagem. A enfermeira “Popota” – como lhe chamo em surdina – mede-me a tensão arterial, pesa-me e mede o meu perímetro abdominal. Nesse momento toca o meu telemóvel, que desligo, de imediato. A “Popota”, que tem tanto de excesso de peso, como de zelo e simpatia, diz: – Mesmo a propósito! Tenho um telemóvel igual e tem aí uma aplicação que devia usar, pois faz a gestão das calorias, dando indicação do número de passos dados ao longo do dia, para poder perder peso! Por acaso usa esta aplicação? Olhe que deve… pois está a ficar pesado demais!

Fiz um gesto de negação com a cabeça e ela toma a iniciativa de programar a aplicação, dizendo-me que devia fazer, no mínimo, 10.000 passos por dia.

Já regressado à sala de espera, entre “ais” de dores físicas crónicas e de dores emocionais, decorrentes da solidão e da atual crise, ouço comentários pouco abonatórios. Entre os menos deselegantes, podia-se ouvir: “parece que anda tudo doido!”; “deve ser algum vírus que anda no ar.” ou “parece o fim do mundo!”.

O médico ouve as minhas queixas relativas a esquecimento, desvaloriza, dizendo que é próprio da idade e aconselha-me a beber mais água, fazer caminhadas, algum esforço para manter bem ativa a parte intelectual, e descomprimir – procurando não me deixar contaminar pela situação envolvente… –, e manda-me fazer umas análises.

Regresso a pé, olho para o céu, como que à procura de colírio para os meus olhos, mas tudo era diferente. Apenas se viam nuvens negras e os paralelos rastos dos aviões tinham-se dissipado completamente. Passo pelo laboratório de análises, colhem-me algum sangue, e dirijo-me à pastelaria, a uma hora já pouco própria para tomar o pequeno-almoço.

A televisão estava sintonizada num dos canais noticiosos e “martelava-se” em temas recorrentes, como seja o trabalho da comissão de inquérito nomeada pelo Parlamento para averiguar o caso do maior banco privado que foi ao “charco”. Sabe-se que por intervenção estatal foram separadas as “águas”, ficando um a ser um banco mau, “com ativos tóxicos, dívidas dificilmente incobráveis e operações de grande risco em offshores” e o outro, um banco bom, de cara lavada, com avanço de dinheiro dos contribuintes. Via-se os responsáveis pelas várias áreas de negócio a demarcarem-se, alegando “desconhecimento da situação” ou dizerem “não se lembrar…”.

A dona Laurinda, aposentada, que já era professora do ensino primário no tempo do Craveiro Lopes, resiste, firme, ao passar dos anos, e não parece estar esquecida nem dá provas disso. Frequenta aquela pastelaria pelo convívio e para ler diariamente o jornal. A seu lado tem a amiga, que vive com dificuldades – já a vi a mordiscar um bocado de pão, tirado da mala, para acompanhar com um copo de leite –. Ouço a ex-professora confessar que foi prejudicada e a dizer coisas como: “Como é que não se lembram? Estão só a atirar areia para os olhos.”; “Há muita gente sem rosto, que mexe os cordelinhos e faz o que quer.” ou “O dinheiro foi para onde? Não deixou rasto?”

Eu, que me sinto, cada vez mais, com falta de memória… comecei a fazer uma retrospetiva e passei a pente fino vários primeiros-ministros. Um deles, referiu: “Eu nunca me engano e raramente tenho dúvidas”. Tanta firmeza de convicções deixou-me, na, altura cheio de dúvidas!… Uns anos mais tarde, não se lembrou e distorceu o valor das suas reformas. Um outro, candidato a primeiro-ministro, – e viria a sê-lo – em frente às câmaras de televisão, cometeu uma gaffe com os dígitos do PIB e sentiu-se embaraçado ao querer fazer contas de cabeça, sem conseguir, num assunto relacionado com o orçamento para a área da saúde. Outro, quando lhe acenaram com um cargo importante, esqueceu-se que tinha sido eleito há pouco e, não hesitou – foi embora – e lá, cometeu muitas gaffes, esquecendo-se que os governos dos estados-membros eram eleitos democraticamente e que este país vivia com imensas dificuldades, para ele promover projetos megalómanos e incomportáveis. Outro, esquece-se qual foi a importância que o amigo lhe “emprestou”, para poder pagar as suas elevadas despesas mensais. E outro, esqueceu-se quanto recebeu de uma pequena empresa de formação na margem sul, sob a capa de ONG, que não podia ter capacidade para lhe pagar aquilo que se diz ter recebido.

De seguida, passam na TV três breves notícias: uma, dava conta de se estar a comemorar o segundo ano da data prevista para o fim do mundo – que não ocorreu; outra, falava do arquivamento do processo do caso dos submarinos e, por fim, da Comissão Europeia que puxava as “orelhas” ao nosso governo, por estar a abrandar nas reformas previstas, mostrando discordância com o aumento do salário mínimo, previsto para 2015, por entenderem que os cidadãos deste país estão a viver acima das suas possibilidades.

A dona Laurinda vira-se para a amiga e diz – Oh Tila, e estavas tu já a fazer o molho à vaca e a vaca no lameiro! Resposta da amiga, desconsolada – Agora… mesmo que venham com a carrinha, não vou votar!

Não me esqueço de pagar e saio da pastelaria, com a ideia que afinal não é assim tão complicado esquecer (ou não saber) onde estão as chaves do portão da garagem. Abro a tampa do telemóvel e reparo que já tinha dado 5075 passos, que corresponde a 4,0 km e um consumo de 217 Kcal. Não esqueço que há o teto de 10.000 passos a atingir. Lembro-me do rasto… Se eu ao fim de menos de três horas já não consegui ver o rasto dos aviões, como é que eles querem ver o rasto do dinheiro que voa? Enquanto caminho, vou dando uso sistemático ao cérebro – como é apologista o meu médico – e penso – Apesar de se terem esquecido de completar o túnel do Marão, a verdade é que desfizeram o IP4 para o transformar numa autoestrada que chega ao fim do mundo, – sem haver alternativa, caso seja portajada… –. Como o Douro está in e é navegável, se calhar ficaria mais barato desfazer um afluente para fazer chegar aqui os submarinos, e contruir uma Base Naval na cidade, que levaria ao desenvolvimento turístico da região. Como as águas seriam pouco profundas, até podia ser que se visse o rasto!...

© Jorge Nuno (2014)