CRÓNICAS DO FIM DO
MUNDO
II – Os Degraus da
Felicidade
No segundo
dia do ano, bastante cedo, apanho o autocarro – como opção de transporte –,
apesar de me desagradar as quase três horas e meia de viagem para percorrer 210
kms. Reparo que em cerca de quinze minutos terei olhado para o relógio umas dez
vezes. Mostro-me agastado pelo facto de não haver aquela valência na cidade e
ter que me deslocar ao Porto. Porque me estava a sentir menos bem, decido
esquecer os aspetos desagradáveis e a fixação no destino e gozar o resto da
viagem, apreciando a paisagem, que tanto pode ter de agreste como de bela. Tudo
dependerá de como os nossos olhos e a nossa mente a querem ver. Como que por
encanto, tudo se torna mais esbatido e suave, depois da segunda paragem, quando
entra um passageiro e se senta junto de mim. Este, de imediato, mostrou ser uma
pessoa positiva, alegre e boa conversadora e a conversa e o tempo fluíram
agradavelmente.
Chegado ao
destino, compro um jornal e dirijo-me à conhecida clínica portuense. À entrada
da receção, faço o check-in
automático, numa máquina, e desloco-me ao balcão, onde transbordava simpatia. Ofereceram-me
uma revista e chamaram uma auxiliar para me acompanhar à sala de espera. Já
sentado, vejo tratar-se de uma revista que é propriedade do próprio grupo, na
área da saúde – embora editada
no verão passado –. Apesar de ter um jornal para ler, folheio-a com alguma
curiosidade. Logo me deparo com um artigo sobre a “Felicidade” e que me parece
muito interessante, já que mostra o perfil de um português feliz, numa altura
em que me parece que anda tudo com cara de enterro. Ao folheá-lo, destaco
coisas como: “As pessoas felizes são 12% mais produtivas” [dados do
Departamento de Economia da Universidade de Warwick (Reino Unido); “(…) a
existência de hábitos saudáveis antes dos 50 anos traduz-se no aumento de uma
saudável e feliz longevidade. Não ter vícios e fazer exercício é importante
mas, a forma como contruímos as relações sociais, é determinante para se viver
mais tempo” [“Harvard Study of Adult Development”, estudo efetuado nos últimos
72 anos por investigadores da Universidade de Harvard]; George Vaillant,
diretor do anterior estudo nos últimos 40 anos, acredita que “um envelhecimento
bem-sucedido não está mais dependente das estrelas ou dos nossos genes do que
da nossa vontade”; “O humor é uma forma de lidarmos com os conflitos” [Scott
Weems, neurocientista cognitivo americano]; “O humor é um ingrediente
fundamental para a felicidade. (…) Tenho uma predisposição para ver o sentido
cómico das coisas. Alivia a tragédia e coloca a vida noutra perspetiva.
[Francisco Gomes, copy e contador de
histórias]; “O ser humano tem a capacidade de alterar a forma como vê o mundo,
de maneira a sentir-se melhor com a situação em que se encontra” [estudo
apresentado pelo departamento de Psicologia de Harvard].
Faço uma
pausa para refletir. – Espera lá… mas foi isso que eu fiz, quando vinha no
autocarro. Senti que tinha que infletir a tendência de má-disposição, de neura…,
e ainda por cima no início do novo ano. A verdade é que consegui e passei a
sentir-me melhor. Aquela relação ocasional, de pouco mais duas horas, com uma
pessoa bem-disposta, ajudou muito.
Retomo a
leitura e vejo alguns dados apresentados, que decorriam de um estudo intitulado
“A Avaliação Subjetiva da Felicidade dos Portugueses" - estudo de 2010,
realizado por dois membros da Comissão Científica da Associação Portuguesa de
Estudos e Intervenções em Psicologia Positiva, com entrevistas feitas a 1033
portugueses de ambos os sexos, a residir em Portugal Continental, com idades
entre 16 e 55 anos. Neste estudo estiveram também envolvidos a Alemanha,
França, Reino Unido, Itália e Espanha. Pode ler-se: “Mostram-nos os estudos que
os que constroem diariamente a felicidade tendem a ser altruístas e não
egoístas, atentos ao bem-comum, cooperativos, pacifistas, confiantes nos
outros, mais tolerantes e democráticos e companhias agradáveis”. A minha
primeira reação é – Está mal! Deviam ter introduzido mais dois escalões
etários: dos 55 aos 65 anos e mais de 65 anos, porque seria interessante
auscultar este grupo populacional, até mesmo esquecido para efeitos de estudo –.
Sinto alguma irritação e, de imediato, foco-me nos aspetos positivos do estudo,
até ser chamado, e dirijo-me ao gabinete médico, onde fui atendido com eficácia
e cortesia.
No
regresso, já de noite, sem companhia ao lado e sem poder apreciar a paisagem,
revi mentalmente o artigo sobre a “Felicidade” e dos degraus que têm que se
subir para a alcançar, ou melhor, construir. – Se calhar até nem é preciso muito
esforço, para ir subindo uns degraus – penso. Vêm à mente os interesses das
multinacionais e do neoliberalismo de garras afiadas, entranhados nos atos de
governação e de gestão – como forma de pressão –, em campanhas bem oleadas de Marketing, que fazem crer que a
felicidade advém do “ter”, bem ao jeito de quem se deixa enrolar facilmente
pela ilusão e pela ambição descontrolada, mesmo
com cortes nos salários e pensões. Em vez do PIB,
porque não se adota, no ocidente, o conceito de FIB - “Felicidade Interna
Bruta”, criada pelo rei do Butão, baseada no princípio de que “o verdadeiro
desenvolvimento de uma sociedade humana surge quando o desenvolvimento
espiritual e o desenvolvimento material são simultâneos, assim se
complementando e reforçando mutuamente”?
Com pouca
luz e trepidação do autocarro, abro finalmente o jornal e, enquanto vou virando
páginas, deparo-me com notícias como: “Passagem de Ano na Madeira – 1, 046 milhões
de euros em fogo de artifício, gasto em 8 minutos”; “Acidentes nas estradas portuguesas
provocam 480 mortos em 2014”; Evaporou-se o BES e metade da PT. Bolsa
portuguesa perdeu 27%”; “Segurança Social publica lista de funcionários que
serão colocados na requalificação”; “Falta de pagamento do Estado deixa alunos
da educação especial sem aulas e pais desesperados”. Era inevitável: fico fulo,
ainda mais por me sentir impotente perante estes factos, o que me faz descer
novamente os degraus da felicidade, num dia que estava, claramente, a subi-los!
Para
corrigir este estado anímico, lembro-me da oração de São Francisco de Assis: “Senhor,
dai-me força para mudar o que pode ser mudado, resignação para aceitar o que
não pode ser mudado e sabedoria para distinguir uma coisa da outra.” Logo de
seguida, lembro-me do outro Francisco, o Papa – que conhece seguramente esta
oração –, que parece tudo querer fazer para mudar o que está mal, começando
pelo Vaticano, e consegue manter um desconcertante sentido de humor, confiança
no caminho da mudança e um otimismo galvanizador, que pode ajudar a chegar a
essa mudança. Por uma rápida sucessão de ideias, chego ao falecido psiquiatra
norte-americano – Milton Erickson –, que era muito espirituoso e usava contos e
anedotas para provocar mudanças substanciais nos seus pacientes. Enquanto o
autocarro rola a boa marcha na A4, reflito: “Se calhar é por isso que há tanta
anedota no Governo, no Banco de Portugal, na Comissão Europeia, no Banco
Central Europeu e no Fundo Monetário Internacional!”. E não é que em vez de
continuar zangado… sorri, subindo mais um degrau!?
©
Jorge Nuno (2015)
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