CRÓNICAS
DO FIM DO MUNDO
I -
Sem rosto e sem rasto.
Depois do que vi ontem num canal noticioso da TV, vi-me
impelido a levantar-me cedo e procurar obter uma consulta no meu médico de
família. Fora da vidraça, o habitual cinzentão, bem escuro, recortado pelos
focos de luz das torres de iluminação da rotunda. Entretanto, os seus sensores
avisam que o dia começa a clarear a bom ritmo e apagam-se as luzes. Preparo-me
para sair, sem tomar o pequeno-almoço, apesar de adivinhar que a manhã irá ser
longa. Procuro o comando do portão da garagem, não a encontro e, sem demoras, decidido,
inicio a caminhada, a pé.
Já na avenida, reparo
que o sol está a nascer, pintando, com cores exóticas, o negro das nuvens que
teimam em persistir há demasiado tempo. Tudo depende da forma como olhamos. Eu
prefiro fixar-me no belo das partes multicoloridas, de tons dourados, relegando
o negro das nuvens a um mero contraste. Olho mais para cima e vejo o rasto
deixado pelos três aviões da Força Aérea, presumindo tratar-se de treino de voo
e/ou controlo do espaço a aéreo, junto da fronteira, a muito poucos quilómetros
da cidade. Era algo agradável de ver. Aqueles rastos – seis linhas retas –,
pareciam uma pauta de música. Apesar das pautas só apresentarem cinco linhas,
ocorreu-me que os pilotos estariam a compor uma canção tripartida para embalar
cada uma das suas mais-que-tudo. Apenas faltava colocar-lhe umas quantas breves,
semibreves, colcheias e semicolcheias, já que com mínimas e semínimas seria uma
composição mais complexa, para estes pilotos enamorados. Enquanto caminho, viro-me
algumas vezes para trás, para apreciar este céu bonito e invulgar.
Chegado ao Centro de Saúde, deu-se o que esperava. Neste
“reino maravilhoso” – apesar da crise instalada –, há sempre lugar para mais um
à mesa, assim como mais uma consulta de clínica geral, sem marcação! Depressa
ouço o meu nome no altifalante, levanto-me e dirijo-me ao gabinete para a
triagem. A enfermeira “Popota” – como lhe chamo em surdina – mede-me a tensão
arterial, pesa-me e mede o meu perímetro abdominal. Nesse momento toca o meu
telemóvel, que desligo, de imediato. A “Popota”, que tem tanto de excesso de
peso, como de zelo e simpatia, diz: – Mesmo a propósito! Tenho um telemóvel
igual e tem aí uma aplicação que devia usar, pois faz a gestão das calorias,
dando indicação do número de passos dados ao longo do dia, para poder perder
peso! Por acaso usa esta aplicação? Olhe que deve… pois está a ficar pesado
demais!
Fiz um gesto de negação com a cabeça e ela toma a iniciativa
de programar a aplicação, dizendo-me que devia fazer, no mínimo, 10.000 passos
por dia.
Já regressado à sala de espera, entre “ais” de dores físicas
crónicas e de dores emocionais, decorrentes da solidão e da atual crise, ouço
comentários pouco abonatórios. Entre os menos deselegantes, podia-se ouvir:
“parece que anda tudo doido!”; “deve ser algum vírus que anda no ar.” ou
“parece o fim do mundo!”.
O médico ouve as minhas queixas relativas a esquecimento,
desvaloriza, dizendo que é próprio da idade e aconselha-me a beber mais água,
fazer caminhadas, algum esforço para manter bem ativa a parte intelectual, e descomprimir
– procurando não me deixar contaminar pela situação envolvente… –, e manda-me fazer
umas análises.
Regresso a pé, olho para o céu, como que à procura de
colírio para os meus olhos, mas tudo era diferente. Apenas se viam nuvens
negras e os paralelos rastos dos aviões tinham-se dissipado completamente. Passo
pelo laboratório de análises, colhem-me algum sangue, e dirijo-me à pastelaria,
a uma hora já pouco própria para tomar o pequeno-almoço.
A televisão estava sintonizada num dos canais noticiosos e
“martelava-se” em temas recorrentes, como seja o trabalho da comissão de
inquérito nomeada pelo Parlamento para averiguar o caso do maior banco privado
que foi ao “charco”. Sabe-se que por intervenção estatal foram separadas as
“águas”, ficando um a ser um banco mau, “com ativos tóxicos, dívidas
dificilmente incobráveis e operações de grande risco em offshores” e o outro,
um banco bom, de cara lavada, com avanço de dinheiro dos contribuintes. Via-se
os responsáveis pelas várias áreas de negócio a demarcarem-se, alegando
“desconhecimento da situação” ou dizerem “não se lembrar…”.
A dona Laurinda, aposentada, que já era professora do ensino
primário no tempo do Craveiro Lopes, resiste, firme, ao passar dos anos, e não
parece estar esquecida nem dá provas disso. Frequenta aquela pastelaria pelo
convívio e para ler diariamente o jornal. A seu lado tem a amiga, que vive com
dificuldades – já a vi a mordiscar um bocado de pão, tirado da mala, para
acompanhar com um copo de leite –. Ouço a ex-professora confessar que foi
prejudicada e a dizer coisas como: “Como é que não se lembram? Estão só a
atirar areia para os olhos.”; “Há muita gente sem rosto, que mexe os
cordelinhos e faz o que quer.” ou “O dinheiro foi para onde? Não deixou rasto?”
Eu, que me sinto, cada vez mais, com falta de memória…
comecei a fazer uma retrospetiva e passei a pente fino vários
primeiros-ministros. Um deles, referiu: “Eu nunca me engano e raramente tenho
dúvidas”. Tanta firmeza de convicções deixou-me, na, altura cheio de dúvidas!… Uns
anos mais tarde, não se lembrou e distorceu o valor das suas reformas. Um
outro, candidato a primeiro-ministro, – e viria a sê-lo – em frente às câmaras
de televisão, cometeu uma gaffe com
os dígitos do PIB e sentiu-se embaraçado ao querer fazer contas de cabeça, sem
conseguir, num assunto relacionado com o orçamento para a área da saúde. Outro,
quando lhe acenaram com um cargo importante, esqueceu-se que tinha sido eleito
há pouco e, não hesitou – foi embora – e lá, cometeu muitas gaffes, esquecendo-se que os governos
dos estados-membros eram eleitos democraticamente e que este país vivia com
imensas dificuldades, para ele promover projetos megalómanos e incomportáveis.
Outro, esquece-se qual foi a importância que o amigo lhe “emprestou”, para
poder pagar as suas elevadas despesas mensais. E outro, esqueceu-se quanto
recebeu de uma pequena empresa de formação na margem sul, sob a capa de ONG,
que não podia ter capacidade para lhe pagar aquilo que se diz ter recebido.
De seguida, passam na TV três breves notícias: uma, dava
conta de se estar a comemorar o segundo ano da data prevista para o fim do
mundo – que não ocorreu; outra, falava do arquivamento do processo do caso dos
submarinos e, por fim, da Comissão Europeia que puxava as “orelhas” ao nosso
governo, por estar a abrandar nas reformas previstas, mostrando discordância
com o aumento do salário mínimo, previsto para 2015, por entenderem que os cidadãos
deste país estão a viver acima das suas possibilidades.
A dona Laurinda vira-se para a amiga e diz – Oh Tila, e
estavas tu já a fazer o molho à vaca e a vaca no lameiro! Resposta da amiga,
desconsolada – Agora… mesmo que venham com a carrinha, não vou votar!
Não me esqueço de pagar e saio da pastelaria, com a ideia
que afinal não é assim tão complicado esquecer (ou não saber) onde estão as
chaves do portão da garagem. Abro a tampa do telemóvel e reparo que já tinha
dado 5075 passos, que corresponde a 4,0 km e um consumo de 217 Kcal. Não
esqueço que há o teto de 10.000 passos a atingir. Lembro-me do rasto… Se eu ao
fim de menos de três horas já não consegui ver o rasto dos aviões, como é que
eles querem ver o rasto do dinheiro que voa? Enquanto caminho, vou dando uso sistemático
ao cérebro – como é apologista o meu médico – e penso – Apesar de se terem
esquecido de completar o túnel do Marão, a verdade é que desfizeram o IP4 para o
transformar numa autoestrada que chega ao fim do mundo, – sem haver
alternativa, caso seja portajada… –. Como o Douro está in e é navegável, se calhar ficaria mais barato desfazer um
afluente para fazer chegar aqui os submarinos, e contruir uma Base Naval na cidade,
que levaria ao desenvolvimento turístico da região. Como as águas seriam pouco
profundas, até podia ser que se visse o rasto!...
© Jorge Nuno (2014)
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