26/09/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (19) - A Rosa Púrpura do Mundo Virtual

A ROSA PÚRPURA DO MUNDO VIRTUAL

Aos poucos, foi-se chegando à conclusão que cada pensamento tem influência sobre a realidade física e cria [mesmo] a realidade. Indo um pouco mais longe, há quem desenvolva a ideia da “transformação quântica do pensamento”, pratique, e ganhe muito dinheiro com isso. Li, num livro de Pam Grout: “neurocientistas dizem-nos que 95 por cento dos nossos pensamentos são controlados pelo subconsciente pré-programado da nossa mente. Em vez de efetivamente pensar estamos a ver um ‘filme’ do passado”. Isto quererá dizer que está ao nosso alcance mudar a visão das coisas e mudar completamente a nossa vida, fazendo com que a experiência de vida seja bem mais gratificante, desde que mudemos a forma de pensar, mais que ultrapassada, que temos vindo a usar até aqui. Entretanto, continuamos embrenhados num mundo ilusório, de fantasia e de ignorância.

Lembro-me, há cerca de 40 anos atrás, de ter recebido um familiar – que vivia numa localidade do interior e veio à capital –. A dada altura, pronunciou-se que as pessoas da cidade eram doidas, pois “ficavam a falar para a parede”, tal como se estivessem em Jerusalém, junto ao Muro das Lamentações. Acredito que seria essa sensação que os citadinos lhe transmitiam, embora acreditando que não estariam a fazer as suas orações, pois os gestos, a [falta de] concentração e o pouco tempo nessa pose não indiciavam tal. Disse-lhe, simplesmente, que essas pessoas estavam junto de um intercomunicador que há, normalmente, ao lado da porta principal de cada prédio, e que comunicavam com alguém que vive num dos andares. Se esse familiar tivesse dado um salto no tempo e hoje observasse as pessoas a caminhar nos passeios da cidade, com um ou mais sacos em cada mão e a cabeça torta, apoiado num dos ombros, certamente diria que toda a gente da capital, além de continuar doida (por falar sozinha na rua), tinha torcicolo, já que seria difícil imaginar que há agora um pequeno objeto – o smartphone – que nos permite fazer inúmeras tarefas, entre elas, como a mais trivial das funções, falar à distância com outra pessoa.

Lembro-me, também, de um filme com argumento e realização de Woody Allen – A Rosa Púrpura do Cairo – que fantasiava o “boom” do cinema dos anos 30, em plena recessão nos Estados Unidos da América, e retratava uma mulher [mal] casada, com trabalho precário e uma paixão pelo cinema, e um marido desempregado, que a explorava e maltratava. Era um filme dentro de outro, com o ator Jeff Daniels no papel do ator Gil Shepherd, a fazer do explorador Tom Baxter, para decifrar o enigma do faraó que mandou corar de roxo uma rosa para a sua rainha, constando-se que agora, no túmulo dela, crescem rosas púrpura. A dada altura, essa mulher – a atriz Mia Farrow, no papel de Cecilia – apercebeu-se que o personagem Tom Baxter reparou nela (por ter ido pela quinta vez ver o mesmo filme), vindo este a saltar da tela, em plena sala de cinema, e dirigir-se a ela, dando lugar a um casal apaixonado, que logo virou um trio amoroso, já que o ator Gil Sheperd a baralhou e fez ver que o “outro”, não passava de um personagem. Imagino quantas mulheres não se terão deliciado a ver este filme! Há ilusão, fantasia, romance… e parece que as pessoas apreciam isso mesmo, pois os milagres continuam a acontecer, mesmo que depois se acendam as luzes para os cinéfilos poderem sair em segurança.

O problema é que podemos não estar a equilibrar o mundo virtual com o real, começando pelo tempo que diariamente dedicamos ao virtual, precisamente por nos parecer real, fundindo ambos, e não termos consciência disso. Há que ter em atenção para não deixar degradar o relacionamento – esse sim, real – ao nível familiar entre marido e esposa, pais e filhos, núcleo de amigos… Não se trata de falsos moralismos, mas quantas vezes está o casal à mesa (como se vê na zona da restauração de um centro comercial), cada um com o seu telemóvel a ver o correio eletrónico, a consultar a sua página do Facebook (ou dos amigos) ou a comunicar noutras redes sociais, tendo aí uma vida mais ativa do que fora delas? Algo vai mal quando uma pessoa fica desesperada por estar quase a atingir o plafond dos dados móveis, e sentir que é pior do que ter a sinalética do painel da viatura a indicar que o combustível está na reserva; ou por não ter acesso a wi-fi (à borla) durante 24 minutos e sentir que é bem pior que ficar sem água na torneira durante 24 horas; ou correr para o telemóvel, num desassossego, logo que ouve o sinal inconfundível de uma mensagem acaba de chegar ou, simplesmente, para espreitar se há novidades, ignorando completamente o toque da campainha da porta. Para alguns especialistas, este tipo de comportamento já foi rotulado de patologia. Que tal começar por experimentar um fim de semana desligado da Internet e procurar outras alternativas, porventura interessantes, com contacto direto com familiares e pessoas amigas e com a natureza? Que tal restringir o acesso à Internet ao longo da semana, e fazer uma utilização moderada, como se estivesse a fazer uma dieta, sem sentir sacrifício ao não empanturrar-se desordenamente. A “cura de desintoxicação”, talvez possa passar por aqui, como treino básico. Ainda em relação ao pensamento e à vontade própria, há uma máxima que diz: “Se souber aquilo que quer, pode tê-lo”. Ter uma vida mais saudável e feliz, em grande parte, depende de cada um de nós; e uma “verdadeira” rosa púrpura (ou mais) pode ajudar a perfumar a nossa vida.

© Jorge Nuno (2015)


12/09/2015

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (18) - As Minhas Cuecas "Channo"

AS MINHAS CUECAS “CHANNO”

Mesmo ao meu lado, o rapaz resmungava e fazia má-cara perante a insistência da mãe. Apercebi-me que ela fazia um enorme esforço para tentar convencê-lo a experimentar aquele número e modelo de calçado desportivo, marca Crivit, que em boa verdade só tinha visto no Lidl. Mas nada demovia o rapaz, mesmo que a mãe dissesse: “já levei para a tua irmã, ela gostou e duraram até lhe deixar de servir”; “só custam € 19,99”; “os que tu queres, da Nike… custam cinco vezes mais e duram o mesmo tempo.” Ao fim de alguns momentos de impasse a mãe acabou por lhe dizer: “Pronto… se quiseres compro-te os ténis da Nike na feira”. Foi como se a mãe acendesse um novo rastilho curto, pois o rapaz voltou a explodir de imediato, argumentando que era calçado falsificado e não tinha a mesma qualidade dos originais.

Vivemos num mundo que venera e incentiva o culto das “marcas de prestígio”. A própria indústria publicitária também faz uso de estratégias para atrair as marcas e fazê-las gastar mais, agora e cada vez mais através da via digital. Pelos vistos, este jovem teria apreendido a mensagem – repetida à exaustão, com envolvimento de quantias exorbitantes –, emitida por quem tem a missão de fazer apetecível um produto ou uma marca, mesmo que o rácio custo/qualidade não justifique a sua aquisição.

Quanto mais valorizado estiver o produto ou a marca, mais prolifera a contrafação, na expetativa de que estará assegurada clientela e o lucro fácil. Não é por acaso a frequência com que as autoridades, como a GNR – Guarda Nacional Republicana e a ASAE – Autoridade para a Segurança Alimentar e Económica (Órgão de Polícia Criminal) fiscalizam e fazem a retenção de mercadorias contrafeitas, por se estar perante imitação e uso ilegal de marca, acontecendo maioritariamente junto de vendedores ambulantes. Através do site da ASAE, na área do “Grupo Anti-Contrafação”, ficou-se a saber que em menos de 30 dias aconteceu a apreensão de mercadoria contrafeita nas seguintes localidades: festas de São Paio, Torreira (avaliada em € 36.000); na via pública em Faro (€ 3.000); na feira quinzenal de Moimenta da Beira (€ 28.000); através de fiscalização rodoviária, em Albergaria-a-Velha (€ 6.000); na feira semanal de Tondela (€ 70.000); na via pública em Santa Maria da Feira (€ 5.500)…

Entretanto, são muitos os consumidores – por uma questão de status –, a acreditar que lhes trará prestígio e distinção superior, perante os demais, o uso daquela mala “Louis Vuitton”, daqueles óculos “Dior”, daquela peça de vestuário “Dolce & Gabanna”, ou daqueles sapatos “Prada” ou ténis “Nike”, mesmo sabendo que esses ditos produtos de “luxo” têm uma forte probabilidade de serem contrafeitos ou “desviados” por amigos do alheio e (re)colocados à venda, na ilusão que importa mais parecer do que ser.

Na qualidade de aposentado e sem ter a necessidade imperiosa de uma vida social ativa ou de ter que ir aperaltado para o emprego, sinto-me livre de ter que usar: uma gravata “Calvin Klein” (ou sequer usar gravata); uma camisa “Luchiano Visconti”; um fato “Armani”; uns boxers “Guess”; umas meias “Ralf Lauren” e uns sapatos “Galliano”. Como é bom sentir-me livre com o meu pijama de verão “Peng Li” (ou sem ele) e como é bom sentir-me livre com as minhas cuecas “Channo” (ou sem elas)!

© Jorge Nuno (2015)