As nossas escolhas geram o
inferno na Terra ou o Céu na Terra.
Santa Hildegarda de Bingen (1098 – 1179)
Monja e abadessa beneditina alemã, mística, teóloga, pregadora,
escritora de livros de medicina natural, poetisa e compositora, proclamada
Doutora da Igreja pelo Papa Bento XVI, em 2012.
NO MEU GALHO, EM NOITE FRIA DE INVERNO
A tarde fria de inverno transforma-se rapidamente
num sombrio lusco-fusco, ao ver desaparecer de vez os últimos raios de sol por
detrás da serra de Nogueira. Caminho a pé, em direção a casa, olho ao longe e
ainda consigo descortinar os picos mais altos da Sanábria, tingidos de branco
sujo, de uma neve que teima em ficar por muitos meses. Ajeito o cachecol em
volta o pescoço, como se olhar para a neve me fizesse sentir ainda mais o
desconforto do frio, ou como se a minha voz interior me avisasse para não
facilitar, para evitar problemas futuros, sabendo que eu encaro as vacinas,
incluindo a da gripe, como uma treta, por me julgar um super-homem, acima de
qualquer doença. Olho instintivamente para o relógio. Mas são ainda dezassete
horas e já é de noite!
Enquanto caminho, sinto no ar o agradável cheiro a
lenha queimada nas lareiras e, de repente, lembro-me de questionar por onde
andará agora o imenso bando de estorninhos que me habituei a ver em todos os
fins de tarde de verão, vindos dos campos para pernoitar nas velhas e bem
cheirosas tílias da praça Cavaleiro de Ferreira, mesmo no centro da cidade,
entre alegre e aguerrido chilrear. Coisa fina, pernoitar na cidade! Para
novamente, pela alvorada, partirem para os campos, ricos em alimentos. Dizem
que os estorninhos-malhados estão por cá no inverno e os estorninhos-pretos
permanecem todo o ano, mas por que será que só me dou conta deles, qualquer que
seja a espécie, ao crepúsculo, durante o verão? Não é meu hábito andar
distraído, mas algo se passou. Mas por que me lembro agora desta espécie de
comportamento gregário? Será pelo fascínio dos seus movimentos coletivos de
rara beleza, com mudanças rápidas de direção, como que a prepararem-se para a
grande viagem sazonal, à procura de outro habitat, num jogo de sobrevivência e
procura de bem-estar coletivo?
Entre deambulações mentais, vejo-me mecanicamente a
marcar o memorizado código para abrir a porta do prédio. Pouco depois… a
jantar, e ainda são só dezoito horas! E eu que tantas vezes, intimamente e sem
o referir, criticava os mais idosos por jantarem tão cedo!
Tal como um dos estorninhos, hoje apetece-me ir
cedo para o meu galho e adormecer logo para começar cedo o meu novo dia, com
energias renovadas para os próximos atos criativos, sejam eles quais forem.
Estranho, pois sei que não precisaria de partir cedo para os campos em demanda
de alimento, nem obrigatoriamente ficar na cidade, ir para o emprego, picar o
ponto e dar, profissionalmente, o meu contributo ativo. Mas não me sinto
estorninho, porque não tenho a companhia contagiante dos outros estorninhos. No
entanto, hoje, no meu galho, rejeito o computador, a internet e as redes
sociais (com canários, papagaios, cegonhas, abutres, melros, gaviões, cisnes, pelicanos,
patos, beija-flores, avestruzes, caturras, gaivotas, corujas, pavões… mas muito
poucos estorninhos para formar um bando estonteante). Rejeito também o
televisor, a rádio, o leitor de CD’s, o MP 3, o instrumento musical com dois
teclados, pedaleira de baixos, caixa de ritmos e orchestral conductor, ou um ou mesmo dois livros.
Baixo as persianas térmicas até meio, para poder
deixar entrar os primeiros raios de sol de inverno, que surgem do lado de Babe,
e servirão de natural despertador, já que os galos não abundam nas redondezas e
os vidros duplos abafam qualquer ruído exterior. Deito-me, apago a luz e
reflito sobre as aprendizagens do dia e, por fim, poder agradecer ao Universo
por essas aprendizagens.
Vêm-me à mente, em catadupa e sem nada forçar, uma
série de coisas. Curiosamente, as perguntas parecem melhores que as respostas.
Por que razão no escuro vejo melhor? Sim, comigo parece resultar, no escuro
muitas vezes faz-se luz! No escuro dou mais importância à luz. E como se fez
uma noite negra, mesmo sem estarmos em lua nova, e como negro se transformou o
meu país! Queixas? Não, não é meu timbre. Prefiro acender a candeia, do que me
queixar da escuridão. Mas sinto que tenho que ir mais fundo. Serão o medo e a
culpa os dois principais inimigos do homem? O que acontece quando o homem se
libertar de sentimentos de culpa, que lhe foram inculcados durante séculos e,
decididamente, perder os medos? As sociedades, os governos e modelos económicos
vigentes continuarão a agir como até aqui? Por que será que a nossa maior
fraqueza é a dependência, do que quer que seja ou de quem seja, permitindo,
passivamente, que sejam cometidos abusos? Por que razão não agimos de uma forma
mais interdependente, numa relação recíproca, de tratamento igualitário, não
para criar lucro a alguns mas para gerar verdadeira riqueza, que reverterá em
benefício de todos? Será que eu não serei mais do que uma forma de vida, mas
uma experiência mais ampla de vida, como energia em movimento? E que essa
energia, num plano vibracional mais elevado, trará mais autoconsciência? E que
essa energia afetará, inevitavelmente e por simpatia, outra energia que esteja
próxima? E que essa vibração em ascendente conduz à mudança? Estaremos mesmo a
aproximarmo-nos rapidamente da Idade de Ouro da Iluminação? Então por que razão
fica a perceção que tudo nos parece tão negro neste planeta em expiação, que
aparenta ficar pior a cada dia que passa? Não estará cada vez mais gente a
conseguir ver no escuro? Não estaremos já numa fase de mudança de consciência
coletiva, pela evolução natural de tanto olhar e não aceitar indefinidamente a
escuridão? Até que ponto a cocriação, que advém da paixão, será a força motriz
para alterar o statu quo? Quanto
custa ir da apatia à empatia? Precisarei de evocar o meu lado sagrado, o que me
conduz à minha verdade mais íntima, para dar contributos nos atos criativos
comuns e estimular a mudança? A vontade ou necessidade de que a verdade
interior esteja de acordo com a vivência exterior não levará as pessoas ao
questionamento e a querer corrigir assimetrias? É aqui que entra o conceito de
que a vida é um processo de andar em círculo, mas pensando nisso como uma
espiral ascendente?
Estranhamente, um aperto de bexiga leva-me a
esfregar os olhos e a “despertar” lentamente, como quem acaba de acordar de um
sonho não menos estranho. Viro-me para a direita e fixo o olhar no relógio
luminoso. Faltam três minutos para a meia-noite. Levanto-me, vou à casa de
banho e logo me sinto um pouco mais aliviado. Espreito pela janela, sem esperar
ver nada de especial a essa hora da noite, numa cidade que fica quase deserta a
partir do fecho do comércio, mas no ar sinto o persistente cheiro agradável a
lenha queimada e o frio cortante, com reflexos no vidrado do asfalto, visível
sob o número reduzido de candeeiros acesos da rotunda e, contíguo, através do
arraial luminoso que provém do túnel.
Dirijo-me novamente para a cama e reparo que é
precisamente meia-noite. Começa um novo dia. Hesito, por momentos, entre o
adormecimento ou ficar desperto. Mesmo desperto, posso decidir se quero
prolongar a noite negra ou se quero antecipar a alvorada e ver raiar, entre as
barras das persianas, os raios de sol que indiciam um novo dia, uma nova
oportunidade. E como tudo seria mágico e simples, se um enorme bando de
estorninhos saísse dos seus galhos e se juntasse, com as suas mirabolantes
danças aéreas, para dar corpo à visão coletiva do ansiado novo dia.
© Jorge
Nuno (2013)
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