VERÃO
AGRIDOCE
A entrada no verão convida a alguma leveza
de espírito. Tal, é fácil de constatar, pois torna-se visível na forma
descontraída com que se faz:
– um passeio pela areia molhada, descalço,
à beira-mar, enquanto se saboreia o sol, o cântico das ondas e a brisa fresca
de manhã, e dá para relembrar a frase de Salvador Dali: “A cada manhã que
acordo experimento novamente um prazer supremo – o da existência”, fazendo crer
que só estes momentos matinais valerão pelo dia todo, tal a energia recebida,
em sentimento de gratidão;
– uma nova e simples caminhada pelo campo,
livre de fardos e complexos, sem rumo bem definido, em fim de tarde, quando os
estorninhos regressam em bando compacto à zona urbana, saciados de insetos,
vermes, frutos, sementes e bagas. E como é agradável vê-los descontraídos,
confiantes, sem preocupação quanto a quem os guia e o que origina aquela
estranha dança no céu, a fazer lembrar a coreografia da “ola mexicana” nos
estádios de futebol. Nós, sozinhos ou em pequeno grupo, durante a marcha livre,
em contacto com a natureza, experienciamos momentos de evasão e libertação, aproximando-nos
da frase atribuída a Arten, citada por Gary Renard em O Universo Desaparecerá: “Não se libertará até perceber que é você
próprio que forja as correntes que o amarram”;
– uma amena cavaqueira, à noite, numa
qualquer esplanada, sem hora marcada, mas com tempo para os familiares e
amigos. Mesmo que por breves instantes, é nestas alturas que nos sentimos amplamente
sintonizados com a ideia manifestada na frase atribuída a Antoine de
Saint-Exupéry: “Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que fez a tua rosa tão
importante”.
Depois de um ano de correria desenfreada,
fica-se com a sensação que estamos num novo ciclo e que, nesta época, os
relógios trabalham a um ritmo mais lento, como se as pilhas que o sustentam
estivessem a finar. Até os especialistas de marketing,
conhecedores do fenómeno, aproveitam para lançar, nos panfletos publicitários que
são colocados na caixa do correio, a imagem que agora é “tempo para relaxar”. Sem
dúvida, no verão parece que temos mais tempo para nós próprios e para a nossa
“rosa”, dando mais sentido à vida – onde cabe familiares e amigos.
É precisamente na esplanada, engalanada
para as festas dos Santos Populares e para o Campeonato da Europa de Futebol,
com o ligar da televisão que tudo se desmorona. Não, não foi a seleção
portuguesa que perdeu. É que em vez da sintonia de um dos habituais canais
desportivos (os tais que fazem as maçadoras antevisões aos jogos, as sucessivas
transmissões diferidas e em direto, com um ou outro jogo interessante e
emotivo, particularmente os que mostram a caminhada heroica da “nossa” seleção,
adocicando temporariamente a vida dos portugueses), eis que surge um canal
informativo. Com ele, mesmo que olhando esporadicamente, apercebemo-nos: de mais
imagens do atentado na zona internacional do aeroporto de Istambul, em tudo
semelhante ao que aconteceu recentemente em Bruxelas; do anunciado ataque, no
Iraque, às forças do autoproclamado Estado Islâmico, como sendo o mais feroz e
mais destrutivo de todos; do ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schäuble, a
levantar o dedo “ameaçador” e a dizer que Portugal poderá estar à beira de um
novo resgate, agora com consequências mais gravosas; do representante do FMI
para Portugal a ironizar com a redução para as 35 horas semanais no setor do
Estado, e a insistir que a solução passa pelo estafado receituário das reformas
que levem à redução dos salários e das pensões; a “peixeirada” no Parlamento
Europeu, relacionada com o referendo no Reino Unido, que levará à sua saída da
União Europeia (U. E.), como se em democracia os povos não fossem soberanos de
tomar as decisões que acham adequadas; da agência de notação financeira,
Standard & Poor’s, cortar o rating depois
do Brexit; do primeiro-ministro
espanhol, Mariano Rajoy, ser o primeiro a opor-se à ideia, apresentada pela
primeira-ministra da Escócia, de aquele país do Reino Unido vir a manter-se na
U. E., deixando transparecer que estava receoso que isso pudesse influenciar os
movimentos independentistas da Catalunha e do País Basco.
Por momentos fechei os olhos, alheei-me de
tudo, incluindo a companhia agradável e, mentalmente, retive os atos
terroristas, considerando-os, como tal, também a coação e chantagem exercidas
sobre um povo e um governo, sejam eles quais forem. Sem me preocupar em querer saber
por quê, abandonei o meu “bando” e voei solitariamente até Qumran, zona árida
da Cisjordânia, junto ao Mar Morto. Há uns anos, tinha ficado fascinado com a
descrição da comunidade de Essénios que ali viveu, alguns séculos antes de
Cristo. As escavações arqueológicas e os textos encontrados [“Manuscritos do
Mar Morto”, que ficaram com tradução integral em 2002], ajudam a compreender
este povo. Tinha fixado que o termo “essénio” talvez tenha origem na Síria e
que, em aramaico, significará “piedoso”. Porque vivam em comunidade, sem
propriedade privada, poderá querer dizer “união de piedosos”. Era um povo
vegetariano, alimentando-se de fruta e legumes; tinha um enorme cuidado com a
higiene pessoal, particularmente antes das refeições; usava a água para
purificação espiritual; as refeições ocorriam em pleno silêncio; acreditava e
exercia curas pelas mãos, e também utilizava ervas medicinais e argila para a
cura de maleitas; como povo asceta, esforçava-se por cumprir as “leis de Deus”
na sua forma mais pura, em contacto com a natureza, e acreditava que “as forças
do bem triunfarão” [sobre as forças do mal].
Abro os olhos e imagino a televisão na sala de jantar a intoxicar a refeição, o
ambiente e as relações, tal como tinha acabado de prejudicar alguns momentos de
estadia na esplanada. Imagino os
Essénios nos dias de hoje. Imagino o paraíso na Terra, em Qumran, há mais de
dois mil anos. Imagino o inferno na Terra, agora, naquelas terras áridas dos
países vizinhos, no médio oriente. Observo como o fluxo migratório, proveniente
daquela zona, levou ao “Sim” e à saída do Reino Unido da U. E. Observo as
imposições de estados-membros (mesmo sem negociações) para o Reino Unido ter
acesso ao Mercado Comum. Observo a incapacidade dos eurodeputados em
compreender a necessidade de refletir sobre o caminho que está a ser seguido, assobiando
para o lado quanto à Europa a várias velocidades e a caminho de se desintegrar,
se não for encontrado o rumo certo…
Dizia Martin Luther King Jr.: “O arco do
Universo é longo, mas curva-se na direção da justiça”. Confiante, coloco-me ao
seu lado e dos Essénios. Pode demorar, mas a clarividência e a abertura a novas
ideias levará as “forças do bem” a triunfar.
© Jorge Nuno (2016)
Crónica publicada hoje na BIRD Magazine (da UTAD)
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