A
TENTAÇÃO DA ARTE, INSENSATEZ, ESTUPIDEZ E CRIME
Delicio-me quando entro num museu.
Adoro absorver, ao máximo, o seu conteúdo, refletir e aprender com o que vejo.
É-me indiferente o tipo de museu ou temática abordada, pois em qualquer deles
consigo sentir a sua enorme riqueza cultural. É frequente dizer, após cada
visita, que saio mais rico, mesmo com a carteira mais leve. Subentende-se,
nestas circunstâncias, que o museu terá cumprido a sua missão.
Um dos museus que muito admirei foi o
British Museum, uma grande instituição museológica em Londres, com entradas
gratuitas. Desde 1759 que delicia quem o visita. Tem peças como a “pedra de
roseta”, do Egito Antigo, levada para Londres após a capitulação de Napoleão,
quando as suas tropas ocupavam aquele território; ou o conjunto de peças,
conhecidas como os “mármores de Elgin”[1],
com esculturas da Grécia Antiga, que não deixava de ser um saque a envolver
subornos, mesmo que efetuado por um privado e, posteriormente, adquirido pelo
governo britânico. Sucessivos governos gregos e egípcios têm feito campanhas
para a devolução das obras, mas tudo fica na mesma.
O Museu do Louvre – o mais visitado em
todo o mundo – situado em Paris, está cheio de obras riquíssimas, em termos de
arte e cultura humana, representando cerca de “oito mil anos da cultura e da
civilização, tanto do Oriente como do Ocidente”. Foi muito enriquecido com as
peças obtidas nas conquistas napoleónicas. Napoleão sabia bem o que fazia, pois
quando preparou a invasão do Egito. Pretensamente, esta teria como objetivo
principal exercer maior domínio no Mediterrâneo e cortar a rota usada pelos
britânicos para chegarem ao Médio Oriente. No entanto, teve o cuidado de levar
consigo aproximadamente 150 cientistas, professores e conhecedores de arte,
para fomentar o estudo da antiguidade egípcia e, supostamente, preservar o
maior número de peças com valor escultórico e arqueológico. Algumas delas
acabariam por ser devolvidas aos países de origem, com a queda do imperador.
Certo é que ainda se podem ver várias peças escultóricas assírias, etruscas,
egípcias e gregas, entre outras, com vários séculos a.C.
Também Hermann Göring[2],
destacado entusiasta do colecionismo, particularmente de arte, foi o
impulsionador do plano de Hitler para juntar o maior número possível de obras
de arte, que ficariam na posse do estado alemão. Claro, os museus dos países
ocupados estiveram nos holofotes do ocupante e do próprio Göring. Este teria acumulado,
na sua residência de verão, próximo
de Berlim, cerca de 2000 obras de inestimável valor, entre pintura, escultura,
peças diversas e tapeçaria, não fosse a guerra ter terminado e ele vir a ser
julgado em Nuremberga por “crimes de guerra, onde se incluía a pilhagem e roubo
de obras de arte, e outros bens”, além de muitos outros crimes, com inclusão de
crimes contra a humanidade. A situação do roubo de obras de arte foi muito bem
parodiada na célebre sitcom britânica
de sucesso “Allo Allo!”. Retratou a ocupação alemã em França, durante a Segunda
Guerra Mundial, em que as tropas invasoras tinham roubado todas as obras de
arte da vila de Nouvion, onde o René tinha o café e escondia elementos da
resistência. Entre essas obras estava a pintura “A Madonna rendida, com peitos
grandes”, que o coronel Von Strohm queria juntar à sua coleção de obras
roubadas, apesar de desassossegado pela presença constante do oficial de
Gestapo, Herr Flick, que queria encontrar o paradeiro das obras.
Em 2001, Moahmmad Omar, líder do grupo
extremista talibã, mandou destruir todas as imagens no Afeganistão, por
entender que eram ofensivas. Foram 10 anos, afanosamente, a usar dinamite.
Entre essas, estavam duas estátuas gigantes budistas –
Os Budas de Bamiyan –, com cerca de
1500 anos, esculpidas diretamente na rocha de um desfiladeiro. Com 53 e 38
metros de altura, tinham sobrevivo a séculos de guerra.
Em 2003, após a tomada da capital do
Iraque pelos militares americanos, que levou à queda do regime de Sadam
Hussein, estes não evitaram que iraquianos pilhassem e vandalizassem o Museu
Nacional de Bagdad e incendiassem a Biblioteca Nacional, sinal claro de
degradação social, económica, moral e até civilizacional de um povo que vivia
oprimido. Ainda hoje revivo as imagens obtidas neste museu, relacionadas com a
entrada de dezenas de homens e com a directora do museu a tentar afugentar quem
pilhava e destruía, com uma coragem a fazer lembrar a freira timorense que
afastava os indonésios invasores, esbracejando e gritando “xô… xô…. xô!...”,
como se fosse fácil enxotar aquelas “galinhas”. Imagino o sofrimento daquela
directora do museu, guardiã de um espólio com vários milhares de anos.
Quando em 2004 visitei o Museu Nacional
de Praga (República Checa), foi-me dito que em agosto de 1968, aquando da
invasão por tropas soviéticas para deter a chamada Primavera de Praga, a
fachada do belíssimo edifício em estilo neorrenascentista, situado na praça
Venceslau, foi bombardeada por tanques, supondo tratar-se do parlamento da
ex-Checoslováquia. Recuperada grande parte dos estragos e desconhecendo [eu] o
que ficou irremediavelmente perdido, foi outro dos museus que me deliciei a
ver, contendo desde objetos pré-históricos a mineralogia, zoologia,
antropologia, história, ciências naturais…
Os protestos contra o presidente e o
regime de Hosni Mubarak, em 2011, mesmo perante as armas dos militares, levaram
à destruição e vandalização de peças milenárias no Museu Egípcio do Cairo (com
decapitação de múmias, como exemplo), mas grupos operacionais sabiam o que lhes
interessava e onde estava, tendo efectuado pilhagens, com o intuito de obter
lucros, através de marchands e
traficantes de arte, o que viria também a acontecer nas estações arqueológicas
de Mênfis e Abusir.
Mais recentemente, com a ocupação de um
vasto território na Síria e no Iraque, por parte de grupos extremistas do
autoproclamado Estado Islâmico, continuou a destruição de preciosidades
históricas, com inestimável valor. Aconteceu por todo o lado, particularmente
em zonas em que era suposto proteger-se esse património. Foi evidente no Museu
de Mossul (Iraque), com a destruição de antiguidades de relevo. Assim como o foi
a destruição das ruínas greco-romanas de Palmira (Síria), até aí preservadas e
classificada, pela UNESCO, como Património Mundial da Humanidade, tal como
outros cinco locais que figuram na lista da UNESCO. Ainda se deram ao cuidado
de deixar um vídeo para a posteridade, deixando bem claro o seu fanatismo,
através da destruição de estátuas e múmias, assim como da afirmação legendada
no vídeo: “Destruímos os ídolos seja onde for, onde quer que os vejamos,
destruímo-los, não há mais deus que Alá nesta terra”.
Um olhar histórico, face aos
acontecimentos mais recentes, não impede a polémica: as peças preciosas à
guarda dos grandes museus mundiais deveriam manter-se, ou ser devolvidos aos
respetivos governos e colocados nos seus locais de origem?
Quanto a lucidez, não é preciso fazer
um grande esforço, pois sabemos que os símbolos iconográficos destruídos são,
tão só, o património arqueológico mais antigo da humanidade. Assim como os bens
materiais – incluindo os alheios, mesmo que gostemos muito de arte – não vão
connosco para a cova! Como admiro o pensamento lúcido de Alberto Einstein, que
afirmou: “Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, no
que respeita ao universo, ainda não adquiri a certeza absoluta”.
© Jorge Nuno (2016)
[1] Alusivo
a Lord Elgin, de nome Thomas Bruce, embaixador britânico em Constantinopla
[Império Otomano], que em 1801 fomentou as escavações em Atenas e “recolheu”
várias esculturas, com o intuito de as preservar (alegando que os otomanos
mostravam indiferença pela cultura grega) e terá mandado partir muitas dessas
esculturas para as fazer chegar a Inglaterra.
[2] Membro
do Partido Nazi e militar de alta patente, a quem Hitler terá dito que seria o
seu substituto, caso lhe “acontecesse alguma coisa”.
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