INSÓLITOS
LEGISLATIVOS…. POR CÁ.
Foram muitos os comentários, cartoons, anedotas, risota, indignação,
e tudo o que possa passar pela cabeça de cada um, quando foi noticiada a
intenção de se legislar o valor do IMI associado à exposição solar (que levaria
a um agravamento do IMI) ou às vistas para um cemitério ou ETAR[1]
(que, supostamente, representaria um desagravamento).
Recuando a 1937, o decreto-lei n.º
28219 – saído em 24 de novembro de esse ano –, criou uma licença de isqueiro.
Isso mesmo! Obrigava o cidadão a ter uma licença, denominada “Licença anual
para uso de acendedores e isqueiros”. A pedido, era emitida, de forma pessoal e
intransmissível, por qualquer Repartição de Finanças. O custo associado a esta
licença era significativa para a época, até ser abolida em 1970, altura em que
tinha um imposto de selo de 50$00. Havia lugar à apreensão do isqueiro e multa
de 250$00, caso fosse apanhado, por um polícia ou “fiscal de isqueiros”, sem a respetiva
licença. O infrator era mesmo considerado delinquente e, se fosse
funcionário público, a multa seria o dobro e comunicado ao seu serviço, o que
faria com que perdesse, de imediato, cerca de metade do que ganhava durante um
mês de trabalho. Para que se saiba – nem que seja por curiosidade –, 70% da
multa revertia para o Estado e 30% para o autuante ou participante. No caso de
haver denunciante, este recebia metade do valor do autuante. É fácil de ver que
a legislação, ao penalizar fortemente os funcionários públicos infratores e ao
permitir-lhe beneficiar de uma percentagem significativa da multa, caso fossem denunciantes,
fazia com que estes se tornassem cúmplices do regime, que tudo fazia para ter
controlo sobre tudo e todos.
Tive consciência da necessidade dessa
licença em 1968, quando me deslocava na ponte de Santa Clara, em Coimbra. Parou
um indivíduo, mesmo à minha frente, e puxou do cigarro e do isqueiro. Nesse
momento aproximou-se um outro, que lhe exigiu a licença. De imediato, atirou o
isqueiro para a água do rio Mondego e perguntou: “Qual isqueiro?”. Houve algum
rebuliço, em que o “fiscal” tentava exercer a sua autoridade, mas, sem prova,
desta vez não houve multa.
Porque achei estúpido obrigar uma
pessoa a ter licença de isqueiro, tentei procurar uma justificação e foi-me
dito que seria para proteger a indústria “nacional” dos fósforos, contra os
isqueiros feitos noutros países.
Como país é pródigo nestas matérias, tudo
isso tem acontecido ao longo de décadas, renovado com outras temáticas, embora
agora atenuado da prática do denunciante.
No início desta semana, perguntava a
uma pessoa que me é querida, de uma forma simplista e com um sorriso enigmático,
aquilo que poderia ser a interpretação de um cabeçalho de notícia, num qualquer
jornal sensacionalista: “Sabias que agora vão cobrar uma taxa a quem tiver uma
garagem com acesso direto a uma estrada nacional?”. Logo após a primeira tentativa
para descodificar a minha expressão, a resposta foi imediata: “O dia 1.º de
abril ainda está longe! Estás a querer enganar quem?” – tal era o absurdo –. “É
verdade!”, insisto. Curta frase que vejo retribuída com: “´Tá bem, abelha!”,
ficando o assunto por aqui. Mas como o caso me pareceu insólito, embora neste
país já nada será de estranhar – ainda mais quando se trata de aplicar taxas e
taxinhas –, fui pesquisar. Fiquei a saber que GNR tem vindo a notificar alguns
proprietários, cidadãos comuns e empresas, para pagar licenciamentos à IP –
Infraestruturas de Portugal (anteriormente designada Estradas de Portugal).
Perante o desagrado dos visados e de autarcas, a IP diz estar a fazer cumprir a
legislação em vigor. Trata-se da aplicação de uma portaria conjunta dos
ministérios das Finanças e da Economia, datada de 14 de outubro de 2015, direcionada
para quem tiver um imóvel com garagem, com uma rampa de acesso direto a uma
estrada nacional. Um proprietário, que esteja nestas condições, será obrigado
ao pagamento de uma taxa, rotulada de “licenciamento”, que pode chegar aos €
500 + custos do processos a rondar os € 1.250, assim distribuídos: € 500 para
informar o processo; € 200 para ser emitido um parecer favorável (ou não); €
250 para uma vistoria extraordinária e € 300 para a reavaliação ou autorização.
Fiquei também a saber que um conhecido autarca nortenho, com responsabilidades
na respetiva Área Metropolitana, deu o exemplo de uma habitual festividade
religiosa, em que haja uma procissão a atravessar a estrada nacional, estará
sujeita ao pagamento das taxas.
No regime ditatorial era conhecido, ao
pormenor, as percentagens a distribuir entre Estado, polícia, fiscal, autuante,
participante e/ou denunciante, bem visível no verso da licença de isqueiro.
Após quarenta anos de regime [dito] democrático, continuam as práticas
absurdas, agravado pela falta de transparência de se dizer qual a percentagem
qua cabe a cada um. Como apologista de uma democracia, no mínimo, acho
insólito!
© Jorge Nuno (2016)
Obs.: Publicada na BIRD Magazine
(criada na UTAD)
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