VACAS QUE RIEM — VACAS FELIZES
Numa
minha anterior crónica, escrita já em 2017, abordei a notícia que dava conta
que um produtor do Reino Unido descobriu que as suas “cabras produzem mais de
20% de leite do que o habitual, quando expostas ao tema “All I want for
Christmas is you”, de Mariah Carey. Não tenho razões para duvidar que tivessem produzido
mais, mas, sinceramente, não acho que sejam “cabras felizes”. Não estou a ver
este produtor a colocar altifalantes nos prados verdes e húmidos do Reino
Unido, para extasiar musicalmente os seus animais. E não estou a ver estas
cabras felizes por estarem sempre a ouvir o mesmo tema, independentemente
da preferência do produtor de leite por esta cantora, compositora e produtora
musical americana.
É
que nós por cá, no arquipélago dos Açores, temos vacas que são criadas em
prados verdes, apresentam boa produção leiteira e são mesmo apelidadas de
“vacas felizes”. Estas vacas são expostas apenas ao puro som do marulhar, da
sinfonia dos pingos da chuva atlântica, da húmida brisa, da folhagem da
vegetação (com pastagens verdejantes cercadas de hortênsias azuis) e do som
telúrico saído das profundezas destas ilhas vulcânicas, numa concórdia de
elementos que embriagam. Trata-se de um programa natural, criado pela mãe-natureza,
com a qual as vacas tão bem se harmonizam.
Já
me tinha habituado à imagem do queijo “La vache qui rit” [criado em França, em
1921], com uma vaca muito simpática e sorridente, tendo como brincos duas
embalagens de queijo fundido, cremoso, em triângulos e que depois vi convertido,
em Portugal, para “A vaca que ri”, nos mesmos moldes.
A
Bel Portugal detém as marcas “A vaca que ri”, “Mini Babybel”, “Terra Nostra” e “Limiano”.
Com novos proprietários em 1999, foi deslocalizada a produção desta última
marca de Ponte de Lima – que lhe deu o nome – para Vale de Cambra, tendo Daniel
Campelo efetuado greve de fome em defesa deste queijo, do nome e da manutenção
da fábrica em Ponte de Lima. Um ano depois, este ex-deputado do CDS negociou com
o governo um pacote de medidas especiais para o concelho minhoto, numa altura
em que o governo precisava de um voto no parlamento para aprovar o Orçamento de
Estado. Ficou conhecido como o “deputado do queijo”, tendo originado imensas
piadas e muito riso coletivo, provavelmente contagiando as vacas daquela bela e
ainda virgem região minhota.
Como
a BEL Portugal pertence ao grupo francês Bel, que sabe do ofício, o marketing
foi feliz ao propor a criação do programa da marca “Terra Nostra”, que intitulou
“Programa Leite de Vacas Felizes”. Como se não bastasse o nome do programa,
deu-se ao cuidado de apontar cinco razões para se beber leite desta marca, com
destaque para o facto de se tratar de leite de pastagens, legível na própria
embalagem:
–
Terra única – Açores – terra vulcânica onde a chuva atlântica rega os nossos
pastos o ano inteiro;
–
Bem-estar animal – as nossas vacas vivem felizes ao ar livre 365 dias por ano e
não fechadas em estábulos;
–
Erva fresca – as nossas vacas desfrutam de alimentação natural e saudável à
base de erva fresca;
–
Leite puro – leite de elevada qualidade, exclusivo de produtores do Programa de
Leite de Vacas Felizes;
–
Rico nutricionalmente – recolhido em menos de 24 horas para manter a sua
frescura, este leite é naturalmente rico em proteína, cálcio e fonte de
fósforo.
Resumindo,
o programa assenta nas pastagens, bem-estar animal, qualidade e segurança
alimentar e eficiência. Foi bem-sucedido, a ponto de ser premiado,
recentemente, nos Troféus Luso-Franceses (22.ª edição), promovido pela Câmara
do Comércio e Indústria Luso-Francesa.
Terá
sido injusto se não mostraram o prémio às vacas felizes, que dão todos os dias
mais que o “litro”. Deve fazer-se tudo para que se mantenham felizes. Os
promotores, que gostam de testar coisas novas, esqueçam a música da Mariah
Carey, os altifalantes a estragar o ambiente paradisíaco, ou sequer os vários
meios de comunicação social por perto. Elas não gostariam de saber alguns
destes factos, como mera exemplificação:
–
desde 2011 fecharam 1620 balcões (da banca), em todo o país, a uma média de um
balcão por dia; que a banca tem vindo a tremer e nesse período de tempo já
perdeu cerca de 10.000 funcionários e que, como se não bastasse, a Caixa Geral
de Depósitos vai dispensar mais 2.200 funcionários até 2020;
–
o que está escrito no relatório da precariedade no Estado, que dá conta de
116.165 contratos temporários no Estado e nas empresas públicas e que não
contempla os inúmeros falsos recibos verdes e recurso a “outsourcing”, havendo
55.974 contratos a termo, dos quais 26.133 é na Educação, 12.771 na Defesa Nacional,
11.180 na Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e 3609 na Saúde, entre outros,
dando o Estado um sinal muito negativo ao setor privado;
–
o que está escrito no relatório do projeto “Saúde.come”, com a coordenadora
Helena Canhão a dar conta da expressiva percentagem das famílias portuguesas
sem acesso a uma boa alimentação, que provoca menos eficácia no estudo e no
trabalho (assim não se pode exigir o “litro”), em que a falta de poder
económico terá potenciado este problema, além da deficiente informação, o que origina
uma espiral de problemas, que passa pelas doenças crónicas graves, como obesidade
e diabetes;
–
a necessidade do presidente da República vir a público chamar a atenção para a
necessidade de se arranjarem estratégias de combate à pobreza, alguém se agita,
momentaneamente, como tendo urticária, para ficar tudo na mesma;
–
os vários processos em tribunal que se arrastam, estrategicamente ou pela
complexidade dos processos, contra pessoas acusadas de corrupção, fraude fiscal
e branqueamento de capitais, só faltando a tentativa de regular a
despenalização da corrupção, como na Roménia;
–
de ver a agência de rating Fitch elogiar o governo português pela sua
capacidade de gerar consensos, congratular-se com a meta do défice conseguido e
manter Portugal como “lixo”;
–
a dualidade de critérios no seio da União Europeia (EU), que enfraquece e
prejudica os Estados-membros mais frágeis, criando instabilidade na união
monetária.
Mas,
sinceramente, não creio que as vacas queiram deixar de ser felizes ao saber se
o Banco Central Europeu diz se está preparado (ou não) para comprar dívida
portuguesa e se detém atualmente 25,2 mil milhões de euros de ativos
portugueses, continuando Portugal, progressivamente, a sua caminhada de
endividamento, hipotecando o presente e o futuro. Sinceramente… não creio, pois
também os portugueses não me parecem estar interessados nesse tipo de notícias.
Sei que as vacas felizes estão a dar mais que o “litro” e estranho a baixa
produtividade dos portugueses, evidenciada pelo Eurostat em 2011, colocando Portugal
quase no fim da lista de países da UE, quanto a produtividade real por hora
trabalhada. Estranho ainda mais, já que o estudo da Católica Lisbon School of
Business & Economics, promovido pelo Observatório da Sociedade Portuguesa, em
plena crise no país, concluiu que os portugueses sentem-se felizes (72%) e
satisfeitos (67%) com a vida. Decididamente, parece que ninguém quer deixar de
ser feliz e acho que é o caminho certo! Mas não à custa da falta de
conhecimento / ignorância dos problemas, situação cómoda em que se fica sempre
à espera que alguém resolva por nós.
© Jorge Nuno (2017)
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