21/03/2017

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (55): Crónica - "Gestos de Cidadania e Construção de Moinhos"

GESTOS DE CIDADANIA E CONSTRUÇÃO DE MOINHOS

Entre as múltiplas atividades que promoveram o meu crescimento, registo, com agrado, a dedicação de cerca de 30 anos da minha vida à educação e formação de adultos, alguns envolvendo uma complexa diversidade cultural na escola. Pode soar a autoelogio, mas não deixo de referir que quase na totalidade desse tempo senti-me motivado, com iniciativa na procura da inovação, tendo-me envolvido em projetos de importância estratégica para o país, abrangendo este setor, mas particularmente para as pessoas – os verdadeiros destinatários dessas estratégias –. Tinha consciência de que por trás do meu ganha-pão estava o interesse social da atividade realizada. Talvez como resultado desse meu crescimento sustentado, enquanto pessoa, encarei esta atividade com profissionalismo e espírito de missão. Tive mesmo genuínos momentos de alegria interior quando fui professor nos primeiros quatro anos de uma universidade sénior, até mudar de região e de panorama.

Não tenho dúvida que políticas erradas, a começar pelo “deitar abaixo” projetos em marcha com provas dadas, passando também pelo desinvestimento público no setor, até se sentir o vazio que fica, o desencanto dos agentes da educação e da formação, o baixar de braços, apatia generalizada, o crescimento do voyeurismo através da TV e de outros programas da treta, com os canais televisivos a baixar o nível qualitativo dos programas, numa competição desenfreada para obter as maiores audiências… Sabemos que a vida é feita de altos e baixos, ficando agora a ideia que estaremos perante um novo fôlego, com o atual Presidente da República (PR) portuguesa a deixar transparecer que a quer puxar para cima.  

Lembro-me de ter lido algures que “quem não promove a cultura por uma questão ‘cultural’ não quer que os outros pensem cidadania”. Lembro-me da minha persistência em querer passar a mensagem que a cultura pode levar a que sejamos interventivos na sociedade, para que haja mais vontade de sermos atores, declinando a ideia de sermos meros espetadores passivos. Mais cultos, não permitiríamos a continuidade da existência de mecanismos de esbanjamento dos dinheiros públicos, pois seríamos mais vigilantes e exigentes. Mais cultos, não nos deixaríamos enganar pela demagogia e por populismos extremistas. Mais cultos, não permitiríamos que a democracia fosse mal-usada, a ponto de a tornar frágil, já que instituições fortes e credíveis seriam sustentadas por pessoas responsáveis, com caráter, exigentes consigo próprias e com os outros.

Acabei de ler numa nota de rodapé de um canal televiso, sem saber mais pormenores, que o presidente americano quer diminuir o investimento federal nas artes e nas humanidades. Durante a campanha eleitoral, quando confrontado com uma notícia de 1998, que dava conta de ter afirmado que seria simples ser candidato pelo Partido Republicano “porque os seus eleitores são burros”, não desmentiu (apesar da notícia poder ser falsa) e terá dito que não se importava nada que estúpidos e ignorantes votassem nele, desde que, com isso, contribuíssem para a sua eleição. Muitas outras notícias, eventualmente falsas, colocadas nas redes sociais, terão contribuído para atrair eleitores indecisos e pouco esclarecidos. Vitorioso, em tempos de mudança, continua a ordem para a construção dos muros.

Contrastando, tenho vindo a ser surpreendido, pela positiva, pelo atual PR de Portugal. Uma das últimas surpresas relaciona-se com a devolução (não doação) de 45 mil euros que sobraram da sua campanha eleitoral, paga com dinheiro dos contribuintes. E fê-lo, entregando 20 mil euros à Associação de Solidariedade Social e Recreativa de Nespereira, uma IPSS de Cinfães, que ele considerou ser um dos concelhos mais carenciados do país, sendo essa quantia destinada à aquisição de uma carrinha de apoio domiciliário; entregou também 25 mil euros ao agrupamento de escolas de Mogadouro, destinado ao investimento num laboratório – que não tinha –, ficando a saber-se que este agrupamento ficou em último no ranking das escolas, ao nível de ensino secundário. Houve logo quem comentasse publicamente o assunto, referindo-o como “esmola presidencial”, de querer um povo “venerador”, que “a generosidade do Presidente pode ser uma precipitada e pouco informada beatitude”… Todos sabemos que não é da competência do PR efectuar este tipo de financiamento e que nada o obriga a seguir as pisadas e a ter a postura dos seus antecessores. Os mais esclarecidos sabem que o ranking das escolas é de uma tremenda injustiça, por compararem realidades diferentes. Os mais esclarecidos não aceitam que as IPSS tenham a importância que têm hoje, particularmente no interior desertificado, quando os governantes têm ferramentas para possibilitar aos setores público e privado desenvolver essas regiões, criar riqueza e minimizar a pobreza e o isolamento das populações. Também os esclarecidos chineses, através de um seu provérbio milenar, sabiam e sabem que “quando sopram ventos de mudança, uns constroem muros, outros constroem moinhos”.


© Jorge Nuno (2017)    

04/03/2017

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (54) - Crónica: "Quando a Raposa Guarda o Galinheiro"

QUANDO A RAPOSA GUARDA O GALINHEIRO

Escreveu María Elvira Pombo Marchand, no seu livro “Pela mão dos anjos”, que “Magia é a capacidade de nos transformarmos assim como à nossa realidade”, dando a indicação que “o objetivo da magia é a felicidade. O requisito principal para que aconteça magia é acreditar que tudo é possível”. Também Kyle Gray escreveu, no seu livro “Orações aos anjos – como pedir ajuda ao céu para criar milagres”, que “rezar é algo universal. Todas as religiões e sistemas de crenças incluem uma ou outra forma de oração. Todos os dias, as pessoas rezam para ter saúde, dinheiro, sucesso, ou até só para terem boas colheitas. Para muitos, a oração é uma prática diária; para outros, o último recurso em desespero de causa”. Pois bem, dirijo-me a crentes e a não crentes e informo que hoje é o Dia Mundial da Oração. Entendo que, a comemorar-se este dia, deveria ser no Dia de Todos os Santos, pois a oração coletiva, reforçada a Todos os Santos, poderia trazer magia e criar autênticos milagres, com maior facilidade. E como estamos a precisar que aconteça magia e autênticos milagres!…

O Banco de Portugal (BdP), através da nota de informação estatística 23/2017, anuncia um acréscimo da dívida pública em janeiro de 2017, estando agora nos 242,8 mil milhões de euros, que resulta de um aumento de 1,8 mil milhões de euros, relativamente ao final do ano de 2016. Quando estão apontadas falhas graves à supervisão do BdP – longe de cumprir a sua missão e ainda a ocultar informação pertinente, por se considerar soberano e não ter de prestar contas a ninguém, o que não deixa de ser estranho num estado democrático –, eis que o governo quer impor duas mulheres no conselho de administração do BdP, quando o expectável seria atalhar pela substituição do fragilizado governador.  

O polémico assunto dos e-mails trocados entre o anterior presidente da CGD e o atual ministro das Finanças acaba por ser abafado, temporariamente, com o surgimento de nova polémica. Esta dá-nos conta que, entre 2010 a 2014, teriam sido transferidos para offshores em paraísos fiscais valores aproximados a 4 mil milhões de euros / ano; em 2015 dispara para 8.885 milhões de euros. O atual secretário de estado dos Assuntos Fiscais – o tal que viajou para Paris, para ver o jogo Portugal – Hungria, no Campeonato Europeu de Futebol de 2016, a expensas da GALP, apesar de representar o estado português num conflito fiscal milionário com essa empresa, por esta recusar o pagamento de dois impostos com um valor total superior a 100 milhões de euros – deu indicação aos serviços de administração tributária para verificação das declarações entregues pelos bancos no portal da Autoridade Tributária (AT) e ter-se-á concluído que havia falhas no registo dos offshores, entre 2011 e 2015. Este facto originou que essa imensidão de dinheiro saísse do país, sem controlo nem o correspondente pagamento de impostos. Em audição parlamentar, ainda desresponsabilizou politicamente os governantes, dizendo que se terá tratado de um erro informático e deixou no ar a ideia de que não terá havido manipulação de informação para encobrir uma eventual fuga de capitais. É afirmado, publicamente, que estariam ocultas 97% das transferências financeiras para offshores do Panamá.

O secretário de estado dos Assuntos Fiscais do anterior governo, após esta descoberta, também em audição parlamentar, veio dizer que ocultou o facto para não alertar e, com isso, poder vir a beneficiar o infrator. Assumiu individualmente essa responsabilidade (coisa rara), acrescentando que “não há impostos perdidos nas transferências em causa” (coisa estranha) para, de seguida, ser elogiado pelo caráter (coisa bizarra) por uma deputada do CDS-PP, partido onde é membro da Comissão Política Nacional. Apressaram-se os habituais comentadores acreditados na matéria, instalados em determinados canais televisivos, a explicar da legalidade das operações e a minimizar esta ocorrência, retirando-lhe a carga política, atirando a responsabilidade para os técnicos que manuseiam os sistemas informáticos, manipulam a informação e fornecem, aos respetivos políticos em funções no setor, os dados trabalhados, que é suposto serem credíveis. Lembra-se que, por aquela altura havia a estratégia, incentivada pela troika, de “espremer” os portugueses da classe média-baixa e todos os que já possuíam baixos rendimentos, como sendo a única alternativa para resolver os problemas de insolvabilidade do país. 

O referido ex-membro do governo é advogado, especialista em direito fiscal, docente da disciplina de fiscalidade no “Mestrado em Direito e Gestão” promovido pela Nova School of Business and Economics, em Lisboa. É neste estabelecimento do ensino superior, e noutros similares, em cursos financiados, em parte, com dinheiro dos contribuintes, que se formam os reputados fiscalistas, a quem mais tarde é dada uma remuneração principesca pelo seu trabalho, tendo em vista ultrapassar os “podres” da legislação e permitir às empresas fugir aos impostos. Numa altura em que o atual governo, através de uma equipa de juristas da Presidência do Conselho de Ministros, está a procurar limpar a legislação desadequada à atualidade, tendo já sido encontradas 1500 leis obsoletas aprovadas entre 1974 e 1978, estará na hora de se deixar de encomendar legislação a conhecidos grupos de advogados associados que, com alguma promiscuidade na sua ligação a deputados, têm criado legislação com “buracos” e mais tarde assessorarem na solução. Entretanto, é confrangedor ver que não se usa os instrumentos da procura da incómoda verdade… enquanto passa incólume quem faz uso dos paraísos fiscais, por falta de mecanismos de troca de informação ou de vontade de exercer o controlo.

O ex-Dono Disto Tudo, do BES, no interrogatório judicial da Operação Marquês, terá referido que “só o diabo pode explicar coincidências das transferências para Bataglia e os negócios da PT [que leva dois importantes antigos gestores da PT a serem constituídos arguidos, por benefício próprio de muitos milhões]. Do Grupo Espírito Santo terá sido desviado 8 milhões de euros para um offshore, em nome do ex-Dono Disto Tudo, havendo um comunicado dos seus advogados a referir que esta operação e “a tese de fortuna escondida (…) é pura ficção”.

Apesar do diabo ter sido queimado recentemente pelo Carnaval, quem sabe se, em Dia Mundial de Oração, não se justificará mesmo as orações a Todos os Santos, centradas num único objetivo – impedir que as raposas deixem de guardar os galinheiros –. 

© Jorge Nuno (2017)