GESTOS
DE CIDADANIA E CONSTRUÇÃO DE MOINHOS
Entre as múltiplas
atividades que promoveram o meu crescimento, registo, com agrado, a dedicação
de cerca de 30 anos da minha vida à educação e formação de adultos, alguns
envolvendo uma complexa diversidade cultural na escola. Pode soar a autoelogio,
mas não deixo de referir que quase na totalidade desse tempo senti-me motivado,
com iniciativa na procura da inovação, tendo-me envolvido em projetos de
importância estratégica para o país, abrangendo este setor, mas particularmente
para as pessoas – os verdadeiros destinatários dessas estratégias –. Tinha
consciência de que por trás do meu ganha-pão estava o interesse social da
atividade realizada. Talvez como resultado desse meu crescimento sustentado,
enquanto pessoa, encarei esta atividade com profissionalismo e espírito de
missão. Tive mesmo genuínos momentos de alegria interior quando fui professor nos
primeiros quatro anos de uma universidade sénior, até mudar de região e de
panorama.
Não tenho dúvida
que políticas erradas, a começar pelo “deitar abaixo” projetos em marcha com
provas dadas, passando também pelo desinvestimento público no setor, até se
sentir o vazio que fica, o desencanto dos agentes da educação e da formação, o
baixar de braços, apatia generalizada, o crescimento do voyeurismo através da
TV e de outros programas da treta, com os canais televisivos a baixar o nível
qualitativo dos programas, numa competição desenfreada para obter as maiores
audiências… Sabemos que a vida é feita de altos e baixos, ficando agora a ideia
que estaremos perante um novo fôlego, com o atual Presidente da República (PR) portuguesa
a deixar transparecer que a quer puxar para cima.
Lembro-me de ter
lido algures que “quem não promove a cultura por uma questão ‘cultural’ não
quer que os outros pensem cidadania”. Lembro-me da minha persistência em querer
passar a mensagem que a cultura pode levar a que sejamos interventivos na
sociedade, para que haja mais vontade de sermos atores, declinando a ideia de
sermos meros espetadores passivos. Mais cultos, não permitiríamos a
continuidade da existência de mecanismos de esbanjamento dos dinheiros
públicos, pois seríamos mais vigilantes e exigentes. Mais cultos, não nos
deixaríamos enganar pela demagogia e por populismos extremistas. Mais cultos,
não permitiríamos que a democracia fosse mal-usada, a ponto de a tornar frágil,
já que instituições fortes e credíveis seriam sustentadas por pessoas responsáveis,
com caráter, exigentes consigo próprias e com os outros.
Acabei de ler numa
nota de rodapé de um canal televiso, sem saber mais pormenores, que o
presidente americano quer diminuir o investimento federal nas artes e nas
humanidades. Durante a campanha eleitoral, quando confrontado com uma notícia de
1998, que dava conta de ter afirmado que seria simples ser candidato pelo
Partido Republicano “porque os seus eleitores são burros”, não desmentiu
(apesar da notícia poder ser falsa) e terá dito que não se importava nada que
estúpidos e ignorantes votassem nele, desde que, com isso, contribuíssem para a
sua eleição. Muitas outras notícias, eventualmente falsas, colocadas nas redes
sociais, terão contribuído para atrair eleitores indecisos e pouco
esclarecidos. Vitorioso, em tempos de mudança, continua a ordem para a construção
dos muros.
Contrastando, tenho
vindo a ser surpreendido, pela positiva, pelo atual PR de Portugal. Uma das
últimas surpresas relaciona-se com a devolução (não doação) de 45 mil euros que
sobraram da sua campanha eleitoral, paga com dinheiro dos contribuintes. E
fê-lo, entregando 20 mil euros à Associação de Solidariedade Social e
Recreativa de Nespereira, uma IPSS de Cinfães, que ele considerou ser um dos
concelhos mais carenciados do país, sendo essa quantia destinada à aquisição de
uma carrinha de apoio domiciliário; entregou também 25 mil euros ao agrupamento
de escolas de Mogadouro, destinado ao investimento num laboratório – que não
tinha –, ficando a saber-se que este agrupamento ficou em último no ranking das escolas, ao nível de ensino
secundário. Houve logo quem comentasse publicamente o assunto, referindo-o como
“esmola presidencial”, de querer um povo “venerador”, que “a generosidade do
Presidente pode ser uma precipitada e pouco informada beatitude”… Todos sabemos
que não é da competência do PR efectuar este tipo de financiamento e que nada o
obriga a seguir as pisadas e a ter a postura dos seus antecessores. Os mais
esclarecidos sabem que o ranking das
escolas é de uma tremenda injustiça, por compararem realidades diferentes. Os
mais esclarecidos não aceitam que as IPSS tenham a importância que têm hoje,
particularmente no interior desertificado, quando os governantes têm
ferramentas para possibilitar aos setores público e privado desenvolver essas
regiões, criar riqueza e minimizar a pobreza e o isolamento das populações.
Também os esclarecidos chineses, através de um seu provérbio milenar, sabiam e
sabem que “quando sopram ventos de mudança, uns constroem muros, outros
constroem moinhos”.
© Jorge
Nuno (2017)