EM
DIA DE CAMÕES, DE PORTUGAL E DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS
Minha
pátria é a língua portuguesa
Desde
1933 que em 10 de junho se celebra Luís Vaz de Camões, com a data a assinalar a
sua morte, ocorrida em 1580. Este, considerado (por muitos) como o
mais importante poeta português, entre poesia lírica e algumas comédias, teve
notoriedade com a obra “Os Lusíadas”, que “relata factos heróicos da história
de Portugal, em particular a descoberta do caminho marítimo para as Índias”, pelo
capitão-mor Vasco da Gama (de 1497 a 1498). O Dia de Camões começou a ser uma
realidade nacional por iniciativa do Estado Novo, com António de Oliveira
Salazar a comandar os destinos da “Nação”. Ao Dia de Camões, juntou-se os condimentos
“Portugal” e “Raça” (portuguesa, subentenda-se) para exultar os feitos
gloriosos dos portugueses ao longo de séculos, servindo igualmente de
propaganda para sustentar o regime. A partir de 1978, já depois da “Revolução
dos Cravos”, passou a ter a designação atual, com um sentido diferente.
Sempre
gostei mais de Fernando Pessoa do que de Camões, apesar de ambos terem o mesmo
destino “patriótico” – o chão frio do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa –. A
obrigatoriedade de ler Camões não era muito bem vista nos bancos das escolas. Por
diversas vezes, imaginei uma outra longa e idêntica frase para comemorar o 10
de junho, começando como “Dia de Pessoa…”. E até penso que Camões, a ser
coerente, aprovaria. É que ele escreveu algo que muito admiro, pois mostrou
muita clarividência, para a época (com texto transcrito em ortografia atual, com
vista a um mais fácil entendimento): “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
/ Muda-se o ser, muda-se a confiança / Todo o mundo é composto de mudança /
Tomando sempre novas qualidades”. Fundamento o que digo, do seguinte modo:
tivemos Eusébio, desde os anos sessenta do século passado, como um herói
nacional na qualidade de futebolista, figura que aprendemos a respeitar pela
sua postura sempre correta e humilde e pelas alegrias que nos proporcionou; posteriormente,
surgiu um outro futebolista – Cristiano Ronaldo – que tem incontestavelmente
maior projeção internacional, é o desportista mais bem pago da atualidade e o mais
conhecido a nível mundial, além de ter batido, claramente, todos os recordes
anteriores (incluindo os de Eusébio) e assumir querer ficar para a história
como o melhor futebolista de todos os tempos.
Mas
Fernando Pessoa surpreendeu-me com uma frase, que retenho, e que me deixou algo
desapontado ao ler o contexto da mesma. Sob a “mão” de Bernardo Soares, em
“Livro do Desassossego” escreve, tal e qual era usual: “Não tenho sentimento
nenhum político ou social. Tenho porém, um sentido, um alto sentimento
patriótico. Minha pátria é a língua
portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que
não me incommodassem pessoalmente. Mas
odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal
portuguez, não quem sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada,
mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente
que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja,
independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a orthographia também é
gente. A palavra é completa, vista e ouvida. E a gala da transliteração
greco-romana veste-m’a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha”.
Era como se Pessoa tivesse a premonição da subjugação de Portugal a outros
interesses, em vários domínios, incluindo o económico e a própria língua.
Curiosamente,
no mesmo dia, reli um delicioso texto de Teolinda Gersão, como se fosse escrito
pelo João Abelhudo, um suposto aluno do 8.º ano, e que intitulou: “Redacção –
Uma declaração de Amor à Língua portuguesa” e, à noite, li também mais algumas
páginas do livro “Conquistadores – como Portugal criou o primeiro império
global”, obra fascinante de Roger Crowley. Sobre este último, é possível ficar
a conhecer factos que foram ocultados ou distorcidos nas nossas aulas de história
e, por exemplo, alguns trechos de diários de bordo das frotas portugueses,
aquando da expansão portuguesa no séc. XV e XVI, incluindo a primeira viagem da
frota comandada por Vasco da Gama, na “descoberta do caminho marítimo para as
Índias”. Aí é bem visível o português tal qual era falado e escrito naquela
época, de difícil entendimento hoje. Quanto ao texto de Teolinda Gersão,
escrito após ajudar os netos a estudar português, é considerado um “epitáfio à
língua de Camões” e que recomendo, embora não resista a deixar aqui um
“cheirinho” da parte final: “E pronto, que se lixe, acabei a redacção – agora
parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil
não tem culpa nenhuma, não nos quer impor a sua norma, não tem sentimentos de
superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A
culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se
escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos
puséssemos em cima de sapatos altos. Mas como os sapatos não são nossos nem nos
servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é
bem feita, para não sermos burros. E agora é mesmo o fim. Vou deitar a
gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: “Ó João, onde está a tua
gramática?”. Respondo: “Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a
no predicativo do sujeito”.
A
palavra “setôra”, para meu desagrado, faz parte do léxico nas comunidades
educativas do país e ainda não foi incluída na língua portuguesa padrão e, como
tal, não incluída em dicionários, mas pouco faltará. É que a língua é muito
dinâmica e está em constante mutação, quer queiramos ou não. Seria interessante
ver maior uniformização? Como utilizador comum, não me englobo nos chamos
“puristas da língua”. Aprecio a diferenciação, a forma como as pessoas se
exprimem habitual e livremente, seja no Alentejo, em Trás-os-Montes ou noutra
região. A língua portuguesa – usada por mais de 300 milhões de falantes em
várias partes do mundo –, tal como existe, parece “bagunça”. Mas, com maior ou
menor dificuldade, é entendível neste pequeno país, nas regiões autónomas,
noutros Estados membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e, em
qualquer parte do mundo, onde estejam comunidades portuguesas. Nada deve ser
forçado ou imposto. Com todas as variantes, é a língua de Camões, Vasco da
Gama, Pessoa, Teolinda, Eusébio, Ronaldo, a minha com que falo e escrevo, a de
quem me lê, sem tradutor. Neste dia dedicado a Camões, Portugal e às Comunidades
Portuguesas, brindo à língua portuguesa e ao entendimento e união que
proporciona!
© Jorge Nuno (2017)
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