A
VÃ GLÓRIA DE MANDAR
É
natural chegar-se a esta altura do ano com a sensação de necessidade de evasão,
sair para qualquer lado, simplesmente sair como se isso pudesse contribuir para
alguma desintoxicação mental. Admito que esse sentimento possa ser mais forte
para quem trabalhou afincadamente durante um ano e espera a oportunidade de uns
merecidos dias fora da rotina diária; mas também o será para quem é agora
considerado “inativo”, apesar de continuar a dar contributos válidos à
sociedade.
Mesmo
para quem procura exercitar a paciência, há alturas em que a falta dela é
gritante, o que promove essa necessidade de evasão e, pior que tudo, quando conduz
à necessidade de alheamento aos reais problemas – o que é ainda mais gravoso –.
E quem não se sente assim, ao observar tanta incoerência, desfaçatez,
inverdade!… Na ilusão do poder, há quem pense safar-se entre os pingos da chuva
sem se molhar, fazendo uso da retórica, por entender que aguenta o barco quem
tiver melhor capacidade de argumentação. Sempre ouvi dizer que os bons
marinheiros conhecem-se na tormenta, com o mar extremamente agitado. Agitação
não falta… e, quando se está no mesmo barco, não pode ser “safe-se quem puder!”.
É preciso levar o barco a bom porto. Para tal é fundamental: competência, conhecimento
da realidade e entusiasmo na viagem, mesmo sabendo dos perigos e do esforço
pessoal e coletivo que tal exige.
A
voz presidencial tenta sossegar os ânimos, dizendo: “há que apurar os factos
até às últimas consequências, doa a quem doer”. A oposição apressa-se a pedir
que rolem cabeças e aponta, claramente, as de um ministro e de uma ministra. O
primeiro-ministro desdramatiza com: “estão a decorrer inquéritos; até lá não há
culpados”. Essa ministra, aproveita o empurrão [no bom sentido] e diz
precisamente o mesmo, recusando apresentar a demissão. O outro ministro, mesmo
antes do resultado dos inquéritos, diz que é o “responsável político” [pelo
ocorrido], mas mantém-se em funções. Um ex-primeiro ministro afirma,
acirradamente para as câmaras de TV, que o atual primeiro-ministro devia dar
prioridade ao apoio às vítimas [três semanas depois de terem ocorrido] e exige
que se “avance com indemnizações rápidas”, quando outras vítimas de um acontecimento
semelhante [à época em que era o responsável máximo do Governo] ainda estão
hoje à espera dele! Face a uma ocorrência grave para a segurança do país, um
chefe de Estado-Maior exonera cinco comandantes, mesmo antes de se dar início
aos habituais inquéritos, para logo numa reunião, e mais tarde na TV, deixar
escapar que mantém a confiança nesses comandantes e chama a si a
responsabilidade do ocorrido, descartando a responsabilidade política do
ministro da tutela. Não deixa de ser curioso… mesmo sendo considerada uma “ocorrência
grave”, o Sistema de Segurança Interna terá avaliado o risco e mantém que o nível
de ameaça do país é “moderado”.
Hoje,
quem lê Camões, surpreende-se quando ele dá voz ao Velho do Restelo, no Canto
IV, de “Os Lusíadas”, colocando umas “farpas” quando tudo apontava apenas para
os feitos gloriosos daquela época áurea (século XVI):
“(…)
Ó
glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta
vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó
fraudulento gosto que se atiça
C’uma
aura popular, que honra se chama!
Que
castigo tamanho e que justiça
Fazes
no peito vão que muito te ama!
Que
morte, que perigos, que tormentas,
Que
crueldades neles experimentas.
(…)
Chamam-te
Fama e Glória soberana
Nomes
com quem se o povo néscio engana!
(…)”
Mesmo
que se queira “mudar de canal”… outros, em áreas improváveis, também parecem
estar contaminados. Na vertente desportiva, alguns feitos importantes em
modalidades amadoras e semiprofissionais são completamente abafados pelos
escândalos do desporto-rei, que fazem manchete. São excessivas as vezes que
surgem as palavras: “fraude”; “e-mails”; “arbitragem”… associadas à falta de verdade
desportiva, dando pistas como se podem ganhar campeonatos, ou forjando
argumentos para justificar insucessos e denegrir a imagem do “inimigo”.
É
fácil lançar e propagar um boato, como o caso do avião Canadair – e logo
espanhol –, que teria caído no combate ao flagelo dos incêndios. Com a técnica
da contrainformação (tantas vezes usada, sem olhar a meios) pretende-se
neutralizar os serviços de informação do campo inimigo. Pode aparentemente “ganhar”
quem for mais desonesto, mas mais perspicaz. Seguramente, fica a perder quem se
envolve na disputa e quem é apanhado no fogo cruzado.
No
meio de tudo isto… visualizo o doce sentir de uma caminhada, sem esforço, sem
pressa, algures no Parque Nacional da Peneda-Gerês, ou sob temperaturas amenas,
num dos vales próximo dos glaciares dos Alpes. Neste último, suficientemente
longe, observo: as marmotas pequenas a brincar, sob o olhar atento de elementos
adultos, que se revezam e se mantém de pé, cumprindo bem o papel de vigia, para
segurança da colónia (mostrando que estes animais conseguem fazer melhor que
alguns militares indolentes); as cabras selvagens, sem vertigens, que nos
surpreendem e fazem pensar como é possível resistir naquelas condições; a
vegetação luxuriante, com destaque para a flor Edelweiss, com que a natureza
brinda quem a visita…
Nesta
tranquilidade revigorante, como se se tratasse de um detox mental… fica-se
melhor preparado para aguentar o embate e resistir a quem terá a vã glória de
mandar.
© Jorge Nuno (2017)
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