CASA
DE MENINAS
Neste
mês tive o privilégio de assistir a dois espetáculos, um com a Gisela João e outro
com a Ana Moura, ambas excelentes fadistas e fãs da diva Amália Rodrigues.
Assim sendo, não será de estranhar que ambas tivessem cantado a conhecidíssima
“Casa da Mariquinhas”. Foi sempre uma canção que me intrigou, tanto pelas
dúvidas quanto aos verdadeiros autores da música e letra, como pela aparente
saudade da Amália por uma casa de meninas, em tempo de ditadura. Pronto,
cantava-se lá o fado e pode ser a explicação. Quanto ao autores… surgem Carlos
Ramos, Silva Tavares, Alfredo Marceneiro, Amália Rodrigues, Alberto Janes,
Capicua (mas esta será de excluir de imediato da versão inicial, pois nessa
altura, se calhar, a mãe ainda nem tinha nascido). Uma primeira versão,
atribuída a Silva Tavares e Alfredo Marceneiro, dizia o seguinte:
“(…)
Vive
com muitas amigas
aquela
de quem vos falo
e
não há maior regalo
que
a vida das raparigas
(…)
Pretendida,
desejada
altiva
como as rainhas
ri
das muitas coitadinhas
que
a censuram rudemente
por
verem cheia de gente
a
casa da Mariquinhas”.
Os autores não
precisaram de incentivar ao consumo de ginjinhas e entendiam haver “regalo da
vida das raparigas”, em tempos difíceis, mas em que elas eram obrigadas a ir à
“examina”[1],
e realçaram o perfil da dona do bordel. Oh… desculpem, da casa de fados.
O
Carlos Ramos também terá dado voz a este tema. Sei que Fernando Maurício cantou
“O leilão da casa da Mariquinhas”, não havendo dúvidas, pelos relatos escritos,
que muitos ficaram desolados com o desaparecimento desta casa e da proprietária:
“(…)
Aprendiam-lhe
as cantigas,
as
mais ternas, coitadinhas,
formosas
como andorinhas,
olhos
e peitos em brasa…
que
pena eu tenho
da
formosa Mariquinhas”.
Mas
foi a Amália a dar-lhe notoriedade, como em quase tudo que cantava. Ao que tudo
indica, houve mão de Alberto Janes, com quem fazia uma parceria muito criativa,
e surgiu este “remake” com o nome “Vou dar de beber à dor”:
“Foi
no domingo passado que passei
à
casa onde vivia a Mariquinhas
mas
está tudo tão mudado
(…)
Entrei
e onde era a sala agora está
à
secretária um lingrinhas
(…)
E
lá para dentro quem passa
hoje
é para ir aos penhores
entregar
ao usurário umas coisinhas
pois
chega a esta desgraça toda a graça
da
casa da Mariquinhas.
(…)
Recordações
de calor
e
das saudades o gosto eu vou procurar esquecer
numas
ginjinhas
pois
dar de beber à dor é o melhor
já
dizia a Mariquinhas.
Se
a Amália vivesse na época atual, teria de mudar… talvez fazer ainda uma nova
versão, já que a canção incentiva à fuga à realidade e ao consumo de álcool,
numa altura em que há campanhas para a sua redução, pela PRP[2]; a
simples palavra “lingrinhas” seria denegrir a imagem de alguém que assume a sua
sexualidade como entender, e teria à pega a comunidade LGBGT[3]; a
SPA[4] a
acusá-la de plágio e a exigir direitos autorais na música; por ser do domínio
público, levaria a ASAE[5] a
atuar, verificando o negócio da casa de penhores, e seria fechada à mesma, por
negócio ilícito com ouro, logo aproveitado por fundos de investimento para
especulação imobiliária ou para alojamento local.
Também
ouvi, presencialmente, a Amália a cantar a sua versão, mas aprecio mais a
adaptação cantada pela Gisela João – com o seu vozeirão e alegria em palco –,
creio que escrita pela Capicua (que acha estranhamente acha que hoje “as vacas
são lingrinhas”):
“Foi
numa rua escura que encontrei
a
tal casa de fado ‘A Mariquinhas’
que
de Alfredo Marceneiro
veio
ao nosso cancioneiro
como
sendo uma casa de meninas.
(…)
Mas
foi sol de pouca dura
que
mesmo sem ditadura
hoje
em dia até as vacas são lingrinhas,
agora
veem meus olhos
que
nem amor, nem penhor,
esta
casa está mais velha que as vizinhas
(…)
por
fora toda riscada,
e
encostada na fachada, uma menina[6],
mas
esta não canta o fado
só
sabe fumar cigarro
(…)
E
aqui estou eu à porta desgostosa
vendo
a casa que está morta em ruínas
por
causa deste senhores
até
já nem tem penhores
porque
já ninguém tem ouro nas voltinhas
mas
se eu fechar os olhos
e
imaginar as farras
(…)
vou
cantar toda a vida.
Na
verdade, tanta gente preocupada com o fecho da casa da Mariquinhas! E a
pastelaria Suíça, símbolo do Rossio e da baixa pombalina de Lisboa – que teve o
mesmo destino, com todo o quarteirão a ser comprado por um fundo de
investimento estrangeiro – não teve direito a indignação, nem nenhuma cantiga!
Intrigante…
Não
pretendo fazer a apologia da casa de meninas, mas não haverá maior
promiscuidade e prostituição nos negócios imobiliários, sempre que se
movimentam muitos milhões nos centros históricos das grandes cidades?
Obs.:
Prometo voltar, para abordar outras cantigas…
© Jorge Nuno (2018)
[1] Controlo
sanitário.
[2]
Prevenção Rodoviária Portuguesa.
[3]
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgénero.
[4]
Sociedade Portuguesa de Autores.
[5]
Autoridade de Segurança Alimentar e Económica.
[6] Que
agora não vai à “examina”.
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