DE JORGE
PARA GEORGE
Pois é, George, sei que partiste cedo, no
Ano Internacional do Sol Calmo, mas tu desconheces que eu nasci no mesmo ano. E
como haverias de saber, se partiste dez meses antes de eu chegar? Bem, deixa-me
já avisar-te: espero não ter de fazer contigo, em Sutton Courtenay, no teu Reino
Unido, como fiz com William Shakespeare, em Stratford-upon-Avon, após ter
escrito o meu romance “As Animadas Tertúlias de Um Homem Inquieto”; que não
seja preciso ir pedir-te desculpa, pois não se deve brincar com génios da
literatura, mesmo que se crie uma personagem, afetada mentalmente, que detesta parte
do conteúdo de Hamlet. Compreendes, se te referir que, naquele caso, foram
sequelas da Guerra Colonial, em África, onde os portugueses estiveram
envolvidos de 1961 a 1974, a tentar defender um império, tal como os britânicos
noutros territórios. Sei que compreendes, pois também ficaste com sequelas ao
levar um tiro na Guerra Civil Espanhola, quando lutavas como voluntário ao lado
dos catalães, com as milícias trotskistas espanholas e contra as forças nacionalistas,
lideradas pelo ditador Franco, quer tinha o apoio da Alemanha nazi e da Itália
fascista.
As minhas intenções são boas, George. Podes
acreditar. Admiro-te como ensaísta político, jornalista, mas especialmente como
romancista. Não como militar, ao serviço do exército do império britânico, mas
tu também não gostaste do que viste fazer na Índia, onde nasceste, e cedo
abandonaste a carreira, para desagrado do teu pai, também militar. Sabes bem
que essas experiências acumuladas fortaleceram o teu caráter, fomentaram um
olhar crítico, e deram-te força para avançar para obras como “A Quinta dos
Animais” e “1984”, entre outras. Os tempos não eram fáceis… Havia pouca
disponibilidade por parte dos editores para editar estas tuas obras de ficção,
acabando por ocorrer em 1945 e 1949, não por falta de qualidade, mas pelo
cuidado em não afrontar a União Soviética, uma estranha aliada do Reino Unido
contra as tropas de Hitler.
Não é qualquer um que não sendo um
privilegiado na sociedade e fazendo uso da bolsa de estudo concedida, estudou
em Eton e teve aulas com Aldous Huxley, o autor de “Admirável Mundo Novo”.
Alguma coisa te ficou, mas virias a adquirir experiência de vida e uma personalidade
própria, bem vincada. E como gostavas de contestar o poder, particularmente
quando se tratava de práticas sociais autoritárias ou totalitárias!
Foste fantástico em “A Revolução dos
Bichos”! Descreves “um grupo de animais revolucionários que toma o poder dos
donos humanos de uma quinta e organiza um regime igualitário e justo, no local”,
mas apressaste-te a arranjar uma dupla de porcos totalitários, para ameaçar o
equilíbrio obtido. Sabia-se
que era uma sátira às práticas do ditador Estaline e da União Soviética. A
propósito, no filme “A Morte de Estaline” – igualmente uma sátira –, realço a
cena quando ele foi encontrado caído no salão, sem se saber se era resultado de
doença súbita ou efeito de vodka, e assim ficou bastante tempo estendido no
chão; para chamar um médico era preciso reunir o Comité; entretanto,
perfilavam-se os vários candidatos ao cargo, em jogos de poder e execuções sumárias,
sob a acusação de traição, mostrando o lado pior do ser humano para chegar ao
topo da hierarquia, numa sociedade em que era suposto ser igualitária, como
queriam os animais da ficção que criaste.
Acho espantoso o teu lado visionário em
“1984”. Nele, criaste um superestado, num mundo em guerra permanente, com
apertada vigilância governamental, manipulação pública através de “propaganda”
e “revisionismo histórico”, onde o Partido Interno – com culto de personalidade
do líder – persegue o individualismo e a liberdade de expressão. Este partido
tudo faz de modo a perpetuar o poder e permite a existência de elites
privilegiadas, a quem não interessa o bem-estar dos outros. Foste tu que
criaste o conceito de Big Brother e “Polícia do Pensamento”. George, poderia
afirmar-se que é ficção científica, mas uma realidade, precisamente 70 anos
depois da publicação deste teu livro, e falarei com exemplos concretos, dos
mais elementares que existem.
A empresa que me fornece eletricidade,
sabe, em tempo real, quando estou em casa e estou fora. Também a de segurança,
sabe quando armo e desarmo o alarme, logo, quando estou em casa e saio; se
houver desonestidade por alguém da empresa, até é possível ver à distância o
que se passa no interior. A de telecomunicações, sabe ao pormenor quando falo e
com quem falo e quais as minhas preferências televisivas e, a localização
ativada no telemóvel, permite saber onde estou em determinado momento. Uma
empresa, líder em soluções auditivas, até sabe a que horas vejo televisão. Uma
outra, nipónica, à distância, monitoriza a minha qualidade do sono, se me
levanto durante a noite e o número de horas que durmo. O ginásio que frequento sabe
a que horas entro e saio, o meu ritmo cardíaco, as calorias queimadas e a
potência média exercida por mim em cada exercício. Na base de dados do hospital
onde sou assistido consta vasta informação pertinente sobre as minhas
fragilidades físicas. Com a via verde, a empresa sabe o dia, hora e local
exatos em que entro e saio com a minha viatura nas autoestradas ou parques de
estacionamento. A marca do meu automóvel tem acesso a informação sobre a
localização da minha viatura, sempre que tenha o GPS ligado, pelo que sabe os
itinerários efetuados por mim. O meu banco tem informação importante sobre a
minha pessoa, enquanto cliente, pois tem acesso a dados pormenorizados de
consumos ou se levanto ou deposito quantias que saem fora do habitual,
informando o Banco de Portugal. A Autoridade Tributária, através da criação da
e-fatura, fica a saber quais os valores e tipos de produtos que eu adquiro e
empresas envolvidas, tal como um conjunto de informação pessoal que pode
cruzar. As câmaras de videovigilância proliferam por todo o lado. Tribunais já
têm acesso a bases de dados de crianças e jovens em idade escolar. A empresa
multinacional americana Google sabe quais as pesquisas que faço na
internet e, porque vive de publicidade, tem o meu perfil, que usa como entende.
O mesmo acontece com a maior rede social virtual do mundo – o Facebook –
que traçou o meu perfil com base nas minhas publicações, na forma como comunico
e por onde ando, fazendo-me chegar, sem eu pedir, publicidade supostamente
adequadas ao meu perfil de consumidor. Talvez não seja por acaso que as visitas
americanas aos meus blogues sejam quatro vezes maiores provenientes dos Estados
Unidos da América [EUA] do que de Portugal, estando a Rússia em terceiro e a
China incluída no top 10. Já agora, George, a pretexto de segurança interna, os
três superestados que referi têm procurado fazer o controlo que referes no
livro, pelo não me espantei com: a criação da “Polícia da Internet” na China, que
conduz a repressão até à criação de “campos de reeducação” para que as pessoas
“transformem os seus pensamentos”; as pressões exercidas pela Administração dos
EUA sobre a Google e Facebook para o controlo de dados da
população mundial e a guerra contra a Huawei, por esta marca chinesa
deter grande parte desse controlo; a forma como é silenciada a oposição até à
influência da Rússia nos resultados das eleições de outros países. Por cá, em
Portugal, sob a capa da democracia, criou-se a Comissão Nacional de Proteção de
Dados, mas que acaba por ser uma proteção-faz-de-conta. Perdeu-se a
individualidade e privacidade.
Talvez não saibas, George, mas a tua
obra “1984” liderou as vendas na Amazon em janeiro de 2017, após a tomada de
posse de Donald Trump, fazendo disparar as vendas em cerca de 10000 %. Ouviste
bem? Dez mil por cento! Já tinha acontecido o mesmo em 2013, após Edward
Snowden ter revelado dados dos EUA. Os editores consideram mesmo que este é um
dos “100 livros para ler antes de morrer”. Deves estar orgulhoso. Só não sabes
para quem vão os lucros das vendas das tuas obras. Mas custa-me saber que
viveste com dificuldades entre pessoas sem-abrigo, em Paris, e agora…
De Jorge para George, quero-te dizer ainda
o seguinte: atendendo às circunstâncias, fizeste bem em usar George Orwell como
pseudónimo, mas o teu nome verdadeiro – Eric Blair – também soaria bem na capa
de um livro; sendo tu um ateu confesso, e porque sabias da inevitabilidade,
fiquei admirado por acautelares uma cerimónia fúnebre religiosa, na igreja
anglicana. Já não fiquei admirado por pretenderes ser sepultado em campa rasa e
escolheres para a lápide:
Here Lies
Eric Arthur
Blair
Born June
25’ 1903
Died January
21’1950
Simples “Aqui jaz”, nome atribuído à
nascença, data de nascimento e da morte. Simples, como sempre quiseste ser,
ignorando o pseudónimo que te tornou conhecido.
P.S.: Sei que também foste poeta, mas
não li os teus poemas. Desculpa. Mas ficas a saber que fiquei fascinado com o
teu lado de romancista, corajoso, visionário e acima, de tudo, por teres lutado
por um mundo melhor. Até sempre!
© Jorge Nuno (2019)
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