30/01/2020

Crónicas Leves - MÁSCARAS E TRANSPARÊNCIAS


MÁSCARAS E TRANSPARÊNCIAS

Cleptocracia, operações fraudulentas e branqueamento de capitais, evasão com transações financeiras para paraísos fiscais, fuga aos impostos, entidades de supervisão da treta, com laxismo ou, pior, conivência com ilícitos criminais – muito ruído, mas tudo aparentemente sem consequências…

Em dezembro de 2019, Portugal encontrava-se em 7.º lugar no ranking da FIFA, tendo atrás países europeus como: Suíça – 12.º; Holanda – 14.º; Alemanha – 15.º; Dinamarca –
16.º; Suécia – 17.º; Noruega – 44.º; Finlândia – 58.º … Não é inocente destacar estes países, pois o site da Transparência e Integridade (Transparency International Portugal), no Índice de Perceção da Corrupção [CPI] 2019, dá-nos conta do seguinte ranking: Dinamarca – 1.º lugar (ex aequo com a Nova Zelândia); Finlândia – 3.º; Suíça – 4.º; Suécia – 5.º; Noruega – 7.º; Holanda – 8.º e Alemanha – 9.º. Portugal, desde 2012 – em que obteve 63 pontos –, não variou mais do que 2 pontos nos últimos oito anos, estando atualmente com 62 pontos. Neste mesmo site – onde se analisam os níveis de corrupção no setor público de 180 países, de 0 (percecionado como altamente corrupto) a 100 (muito transparente) – é referido que “é urgente implementar uma verdadeira estratégia nacional [em Portugal] contra a corrupção”, indicando que “os resultados demonstram que os países mais bem classificados no CPI são os que têm políticas de transparência proativas, designadamente no que se refere ao financiamento político, à regulação do lóbi e de conflitos de interesses, e a mecanismos eficientes de consulta pública”. Confirma-se, assim, a perceção que os portugueses têm da estagnação de Portugal no combate à corrupção, o que configura uma das maiores fragilidades da democracia portuguesa.

O relatório da FIFA, de dezembro de 2019, dá conta que, nesse ano, os clubes de futebol em todo o mundo gastaram 6630 milhões de euros [M€] em transferências de jogadores, o que constitui um novo recorde, com um aumento de 5,8% face a 2018. O saldo líquido, entre compras e vendas dos passes de jogadores, foi positivo para os clubes portugueses, e atingiram os 346 M€.

O hacker português Rui Pinto andou a “bisbilhotar” a promiscuidade no mundo do futebol, pois há muito que se sabia da existência de negócios obscuros. Informação vinda a lume fez com que a Suíça, França e Alemanha pedissem a colaboração de Rui Pinto. Mais célere, o fisco de Espanha conseguiu recuperar muitos milhões de euros, com base nos segredos desvendados por esta e outras vias. Os crimes fiscais viriam a ser julgados em tribunal, envolvendo conhecidos jogadores de futebol, treinadores e empresários, deixando intocáveis os clubes; se não houve pena de prisão efetiva, mas suspensa, deveu-se à assunção da culpa pelos infratores e à inexistência de antecedentes criminais.

Este pirata informático criou o Football Leakes e contribuiu com conteúdos para o Malta Files e Luanda Leaks. Dos 147 crimes de que estava acusado em Portugal, está agora pronunciado por 90 crimes, pelo Ministério Público, onde consta: “acesso ilegítimo”; “violação de correspondência”; “acesso indevido”; “sabotagem informática” e, o mais grave, “extorsão na forma tentada”.

Que fique claro, não devemos estimular ou aplaudir a pirataria informática! Mas há um dever de cidadania na denúncia de irregularidades e, particularmente, corrupção. Em outubro de 2019, a União Europeia [EU] aprovou uma diretiva para proteção de denunciantes de crimes cometidos no espaço da EU. Portugal terá até 2021 para transpor estas regras para a legislação portuguesa. O presidente da Transparência e Integridade referiu que “a proteção de denunciantes é uma das principais falhas do combate à corrupção em Portugal”. Rui Pinto expôs criminalidade organizada no futebol e, por arrastamento, chegou à criminalidade organizada no meio económico. Envolveu a mulher mais rica de África, com investimento em Portugal, difundindo muitos milhares de ficheiros, com informação relevante, na Plataforma de Proteção de Denunciantes de África, que a partilhou com o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação.  

Uns países aproveitam esta divulgação para investigar e instaurar processos, como crime fiscal ou económico, procurando chegar rapidamente a um veredito e, assim, fazer justiça. Por cá, há alguma agitação e desconforto, sobressaindo algum desnorte quanto ao rumo dos acontecimentos, escudando-se na “lei” para não a fazer cumprir; ou seja, não será possível incriminar quando a prova for obtida ilicitamente. Fica a rir quem comete os ilícitos, e ainda processa judicialmente quem divulga as notícias que põem em causa o seu “bom nome”.

Durante as entrevistas rápidas, no final de cada jogo da Primeira Liga de Futebol, pode ler-se no painel: “A Pirataria Mata o Futebol”, numa alusão à frequente pirataria do canal que detém os direitos televisivos. Também será verdade se se afirmar: “A falta de verdade desportiva, o chico-espertismo e a violência matam o futebol”. Ainda é mais verdade ao constatar-se: “A inoperância de quem tem responsabilidades mata o futebol”, sempre com a evidente tendência para se sacudir a água do capote e imputar responsabilidades a outrem. Há pouca transparência: nas comissões pagas a intermediários aquando das transferências de passes de jogadores; nos valores declarados dos negócios efetuados; nas verbas movimentadas com a publicidade; em algumas decisões do Tribunal Arbitral do Desporto, com decisores a pender clubisticamente para um dos lados; quando um Tribunal da Relação indefere o pedido de escusa de um juiz sorteado para julgar um clube, de que é assumidamente fervoroso adepto… É incompreensível que agentes da autoridade, mesmo à civil, por mais legítimas que sejam as suas reivindicações, se manifestem no seio das claques dos quatro clubes de futebol que disputaram, em Braga, o título de “Campeão de Inverno”. Exibiam uma tarja – “A Polícia Exige Respeito” –, junto das mesmas claques que também exigiam respeito e que fizeram estragos, arrancaram cerca de mil cadeiras, entoaram cânticos contra a Liga e contra um presidente, detonaram petardos, lançaram tochas para o relvado, e exibiam tarjas como: “Estão a matar o Futebol”; “País de corrupção, as claques são um problema para os donos do sistema” ou “No Pyro, No Party” [sem pirotecnia não há festa],  não reconhecendo que muitos dos próprios membros das claques estão a matar o futebol, ao tornarem as bancadas inseguras mas, fundamentalmente, por não haver coragem política para os irradiar dos campos de futebol.

A investigação jornalística, pegando nalgumas “pontas soltas”, leva a uma enorme pressão da comunicação junto dos infratores, governantes, Ministério Público, Banco de Portugal, CMVM – Comissão do Mercado de Valores Mobiliários… A consciência cívica dos cidadãos poderá fazer a diferença. É certo que o futebol move paixões e, como portugueses, apreciamos estar entre os melhores do mundo. Mas devemos exigir a adoção de políticas de transparência proativa e outras práticas que façam subir Portugal no ranking, juntando-nos aos países mais transparentes do norte da Europa.

Entretanto, algumas máscaras vão caindo.

  ©Jorge Nuno (2020)        

16/01/2020

Crónicas Leves - VAI UMA APOSTA?


VAI UMA APOSTA?

Poderia dar-se início ao texto com a seguinte pergunta (que só não soaria estranha pelo tema em título): “Vai uma aposta em como é extremamente fácil abordar a questão do jogo, apostas e afins?”. Não que seja perito na matéria – que decididamente não sou, nem pretendo ser, apesar de ter estudado estatística e probabilidades – mas por se tratar de um assunto que pode estar na ordem do dia, sem que haja uma verdadeira consciência disso.

Na qualidade de cinéfilo, escolheria o emblemático filme “A Última Cartada”, realizado por Robert Luketic e produzido por Kevin Spacey, que também interpretava o papel de “Micky Rosa” – um genial professor de estatística, viciado em jogo –. Este professor criou uma equipa com jovens estudantes do MIT, de mente brilhante e elevada inteligência emocional, escolhidos pelos seus conhecimentos de matemática, particularmente de sistemas progressivos de equações lineares, sempre atentos à alteração da variável e às condições de convergência de uma série infinita; faziam contagens mentais e procuravam manter o controlo do baralho no jogo de azar Blackjack. Claro, deixaram-se envolver pela vontade de chegar facilmente a grandes quantias de dinheiro. O argumento é baseado em factos reais, com frequência de casinos em Las Vegas e, em equipa, ganharam muitas centenas de milhares de dólares cada um e, ao serem descobertos, perderam tudo, apesar de não ser ilegal a memorização das cartas.

Em idêntica qualidade, poderia abordar o personagem “Frank”, por Jason Mantzoukas, e o casal amigo, interpretados por Will Ferrel e Amy Poehler no filme “Casa da Sorte”, escrito e realizado por Andrew Jay Cohen. Até haveria bons motivos para o fazer, pois falamos de um indivíduo que se separa da esposa por ser viciado em jogo, que tem a casa penhorada por dívidas contraídas no jogo, não conseguindo cumprir compromissos assumidos. É isto que o leva a juntar o útil ao agradável – criar um casino ilegal, com os dois amigos como sócios, na expetativa de reaver a casa e a esposa –. Naquele local, qualquer pretexto servia para apostar, inclusive a criação de um ringue improvisado de pugilismo para dois jogadores quezilentos que armaram confusão, ou para duas mulheres duronas, que se pegam numa desavença. No fundo, há sempre a ilusão do dinheiro fácil.

Não irei recuar ao século XIX e abordar o magnífico romance “O Jogador”, de Fiodor Dostoievski – que li quando tinha apenas 16 anos – onde este extraordinário romancista retrata jogadores compulsivos que denotam falta de controlo sobre os impulsos, alteram radicalmente comportamentos, acabam arruinados financeiramente e destroem as suas vidas e a dos que os cercam. Aqui, Alexis Ivanovitch, trabalhador de hotel, relata, na primeira pessoa, como iniciou o vício do jogo na roleta a pedido da sua apaixonada, desesperada por dinheiro. Mais uma vez, o complexo comportamento humano e a patetice da ilusão do dinheiro caído do céu, tão bem descrito por este génio da literatura russa.

Fica assente que não haverá aqui abordagens ao vício do jogo, causas e consequências negativas ou mesmo à cura através da psicoterapia ou outras técnicas. Não haverá análise filosófica desta realidade, nem se irá procurar traçar o perfil psicológico do jogador, esmiunçando a autoestima, problemas de relacionamento, inquietude, disfunções ou atitudes irracionais do jogador, com perda de controlo progressivo.

Então falemos um pouco da realidade no presente.

Por cá, constata-se o seguinte no relatório do 3.º trimestre[1] referente a atividades do jogo online em Portugal, comparando este trimestre de 2019 com o homólogo de 2018:
– Foram 15 as licenças atribuídas em 2018 e 18 em 2019, passando de 7 para 8 em apostas desportivas e de 8 para 10 em jogos de fortuna ou azar;
– As receitas brutas, passaram de 38,9 para 54 milhões de euros [M€], verificando-se um aumento de 39,1%, sendo que esse aumento foi de 33% nas apostas desportivas e de 45% nos jogos de fortuna ou azar;
– Quanto a novos registos de jogadores, passou de 83,3 para 149 milhares, um aumento de 78,8%; o número de jogadores, com prática de jogo, passou de 260,1 para 354,1 milhares, o que significa um aumento de 36,1%.
Vai uma aposta em como a afluência ao jogo online [legal] continua a ter uma subida ascendente nos próximos anos, mesmo com elevado número de apostadores a pedir ajuda para resolver problemas de insolvência ou para tratamento do vício?   

O Jornal Económico online[2] noticiou que as receitas dos jogos da Santa Casa da Misericórdia – raspadinha, euromilhões, totoloto e placard – atingiram o valor correspondente a 1,5% do PIB. Para se ficar com uma ideia mais precisa, os portugueses gastaram, nestes jogos, 8,5 milhões de euros por dia, ou cerca de 3,1 mil M€ anuais, tratando-se de um crescimento de 2,3% face ao ano anterior. Vai uma aposta em como os governantes, quaisquer que sejam, continuam entusiasmados com o desenvolvimento desta atividade, já que é garantia de significativa receita para a Autoridade Tributária?

Os jogadores, incluindo os compulsivos, irão continuar a existir. Se repararmos, são inúmeros os programas televisivos em que apresentadores “massacram” os telespetadores para telefonar, com chamadas de valor acrescentado, para que possa ser “hoje o seu dia de sorte e ganhar este magnífico automóvel” ou “já sabe o que vai fazer estes 15000 euros que lhe vão dar tanto jeito?”… ou pior, a troco de nada e com o pretexto de escolha dos concorrentes preferidos, esmifrar pessoas influenciáveis e totós que caem na esparrela. Vai uma aposta em como esta praga está para durar?

Temos os jogos políticos de bastidores para aprovação do Orçamento de Estado [OE], apresentado por um governo sem a maioria no parlamento para o aprovar sozinho e os jogos políticos dos partidos da oposição para deixarem passar o OE e não ficarem com o ónus de contribuírem para o derrube de um governo e, com isso, virem a ser futuramente penalizados pelo eleitorado, que não quer mais crises políticas. Vai uma aposta em como com “geringonça”, ou sem ela, cumprir-se-á a legislatura de 4 anos?     

Foi recentemente divulgado[3] que o investimento no Serviço Nacional de Saúde [SNS] teve as seguintes taxas de execução: 68,2% em 2015; 53,9% em 2016; 48,6% em 2017 e 44% em 2018. Significa uma diminuição progressiva das taxas de execução e que nos dois últimos anos referidos nem chegou a ser aplicado metade do valor que estava orçamentado. Apesar de ser anunciado no OE para 2020 um substancial reforço da verba para o SNS, vai uma aposta em como a tendência decrescente da execução vai continuar?

O ano começou com um aumento dos combustíveis, em cerca de sete cêntimos por litro, a pretexto da necessidade de agravamento da taxa de carbono [CO2], que faz parte do imposto sobre produtos petrolíferos [ISP]. Na União Europeia, Portugal fica em terceiro no preço mais elevado da gasolina, a seguir à Holanda e Grécia. Na ânsia de obter receitas, o Estado arrecada, assim, mais 606 mil euros por dia. Vai uma aposta em como continuará a tendência de subida do valor dos impostos sobre os combustíveis?

Na cerimónia de abertura do ano judicial 2020 – que há muito se acha completamente desprovida de sentido – desfilam e discursam as mais altas figuras do Estado e da Justiça, sem consequências. A palavra mais ouvida foi “corrupção”! O Presidente da República defendeu uma atuação judicial mais rápida, pois “os processos judiciais não devem arrastar-se durante anos nos tribunais (…)” e disse ter apreciado “o aceno de renovada atenção à corrupção” querendo que o combate à corrupção seja uma prioridade para a Justiça. Vai uma aposta em como não serão registados progressos e fica tudo na mesma?

© Jorge Nuno (2020)


[1] Fonte: Turismo de Portugal
[2] De 09-07-2019
[3] Fonte: Contas Gerais do Estado (2015 a 2017) e Execução Orçamental da UTAO (2018)