17/06/2020

Crónicas Leves: LEMBRANÇA - MUDANÇA - ESPERANÇA - Parte II


LEMBRANÇA – MUDANÇA – ESPERANÇA

Parte II

Por ocasião da inauguração do túnel do Marão, fiz uma abordagem às caraterísticas únicas do território transmontano, às suas gentes e à importância deste projeto e da autoestrada A4, tão necessários ao desenvolvimento da região. Decorridos quatro anos, em plena pandemia, foi estranho e confrangedor observar a falta de tráfego no túnel e autoestrada, fronteiras fechadas e a paralisação da vida económica e social. Sem estar centrado na pandemia, no nordeste transmontano, este texto não deixa de refletir essa estranheza, finalizando, nesta segunda parte, com uma abordagem ao que se intui serem as caraterísticas da população transmontana mais esclarecida e resiliente.        

Foi por esta fronteira [Quintanilha] que saí pela primeira vez do país, ainda sem a democracia institucional a fazer parte da vida de ambos os povos. O controlo fronteiriço era muito apertado, de um lado e de outro. A viagem foi de apenas um dia e reentrei pelo mesmo sítio. Poucos metros decorridos, já em Portugal, iniciei o caminho sinuoso para Bragança. Precisamente em frente à capela da Senhora da Ribeira, rejubilei de satisfação e alívio, pois estranhamente… custava a acreditar que, tendo mandado abrir a mala do carro, acabassem por não ver, ou dar importância, à nova guitarra acústica que tinha adquirido e que se encontrava sobre a tampa da mala.   

Bastantes anos mais tarde, rejubilei quando finalmente foi aprovado o Acordo (ou tratado) de Schengen, que levou à política de abertura de fronteiras, agilizando a livre circulação de pessoas, bens e capitais entre os trinta países europeus que o subscreveram. Rejubilei, com a construção de uma nova ponte sobre o rio Maçãs, sem necessidade de controlo aduaneiro, e com a abertura do troço de autoestrada a ligar Quintanilha a Bragança, reduzindo-se a viagem para cerca de 10 minutos. 

O mediatismo da fronteira de Quintanilha foi grande, recentemente, aparecendo com maior frequência nos meios de comunicação, quando nada o fazia prever. Parece de difícil entendimento que, num curto espaço de tempo, sejam as próprias populações – que tão bem sabem ser hospitaleiras – assim como autarcas desta região, a pedir encarecida e insistentemente que fechem as fronteiras. Também esta autoestrada, tão importante para o desenvolvimento da região, ficou confinada a tráfego muito reduzido e controlado. O acesso à ponte sobre o rio Maçãs foi cortado, deixando de ser utilizada, e o trânsito desviado, de modo a confiná-lo à estreita passagem, junto ao antigo posto fronteiriço.  A própria União Europeia acabou por tomar a decisão drástica de fechar, temporariamente, todas as fronteiras, sendo impedidos cidadãos europeus de circular no próprio espaço europeu.

Escavando mais fundo no citado texto de Torga, perante factos recentes, fixo-me na frase “Que terror respeitoso se apodera de nós?” e interrogo-me: como se sentirá cada um, tendo de trancar-se dentro de casa e ficar ainda mais isolado? E o impedimento de assistir a rituais religiosos, incluindo acompanhar amigos à sua última morada? E o impedimento de ser visitado por familiares distantes, que tradicionalmente estavam presentes no período festivo da Páscoa? Que sequelas ficam, mesmo sem contaminação viral? Que aprendizagens ficam após esta pandemia?

Do meu poema “O Reparador Beijo Invisível”, de 2012, extraí o seguinte:
“Um planeta em expiação / espera demorada para se redimir / Ambiências conturbadas, eternas lutas intestinas / por coisas grandes e pequenas / Muita gente à deriva… / num contágio virulento (…)”.

De um outro meu poema, também truncado “Dor que Dói”: “Se a dor é dor que dói / e faz desabar o mundo… / se isso alivia / há que subir à montanha / e gritar a dor / Gritar, gritar bem alto! / Enquanto não nos reencontrarmos / o grito será apenas um escape / Conseguido o reencontro / podemos voltar à montanha / para agradecer / para contemplar / mas já não será preciso gritar!”.

E neste meu recente poema, inacabado, mas suficiente…
Por que temo sem razão?
Não trouxe nada comigo
pois cheguei de mãos vazias
nem o corpo me pertence
e quando um dia partir
tenho à espera outra vida.

Pensando no durante e pós pandemia, é dado aqui realce às caraterísticas da população transmontana mais esclarecida, forte emocionalmente, resiliente e ousada q. b.:
– Confia no porvir;
– Sabe que a perda enfraquece, mas não dita o fracasso;
– Aceita os desafios que têm pela frente, antevendo um antes e um depois;
– Está consciente que nada ficará como anteriormente e a realidade será outra;
– Encontra a energia e saber necessários para encontrar novas soluções;
– Acredita que o sonho é maior do que o medo;
– Não duvida que há vida para lá dos ciclos que se fecham;
– Conhece o valor da compaixão e da solidariedade, abre o coração e puxa pelos que a cercam;
– Aposta na capacidade de regeneração, confiante num recomeço, mesmo envolto em incertezas;
– Sabe que “a semente desperdiçada é aquela que fica por lançar à terra” e não deixa que fique por semear a esperança e que, só pensar nisso, já desperta agradáveis sensações;
– Sabe que a mudança ocorre quando o coração quiser e que, cada um, contribuirá para a mola impulsionadora da mudança da consciência coletiva, tão necessária para constituir um ponto de viragem na humanidade.

Apenas anseia a ocasião para experienciar, de novo, o poder físico de múltiplos abraços afetivos.

© Jorge Nuno (2020)

03/06/2020

Crónicas Leves: LEMBRANÇA - MUDANÇA – ESPERANÇA Parte I



LEMBRANÇA - MUDANÇA – ESPERANÇA

Parte I


Todos sabemos que este território transmontano foi apelidado de “Reino Maravilhoso”, pela mão e genialidade de Miguel Torga, que referiu nos seus escritos “(…) De repente, rasga a crosta de silêncio uma voz de franqueza desembainhada: Para cá do Marão, mandam os que cá estão!... Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?
Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico porque o nume invisível ordena: - Entre!
A gente entra e já está no Reino Maravilhoso.”

O dito popular “Para lá do Marão, mandam os que lá estão” [na ótica de quem vive no litoral] poderá ter alimentado a ideia generalizada – e o ego de alguns transmontanos, com toda a carga simbológica que representa –, que devido ao seu isolamento de longos séculos, com difíceis acessos, isso remetia-os para uma sensação de poder e de “independência”, sendo implícita a rejeição do poder centralizado da muito afastada capital do país. E foi esse poder centralizado que, por demasiado tempo, pareceu desconhecer a realidade e as necessidades “para lá do Marão”, agudizando o fosso entre o litoral e esta região do interior.

A região transmontana foi galvanizada com a criação da autoestrada A4 e com abertura do túnel do Marão – que fura, durante cerca de seis quilómetros, o “oceano megalítico”. Eu chamar-lhe-ia “encrespado e tortuoso oceano megalítico”, ao centrar a atenção na conhecida Estrada Nacional 15, quando tinha necessidade de a percorrer, acompanhando aquele serpentear na Serra do Marão. É certo que perdeu a importância estratégica que deteve durante imensos anos, e que deixarei de ver, lá bem no alto, aquela panorâmica inesquecível de cortar a respiração. Mas é incontornável que o túnel do Marão passou a ter um importante papel na aproximação entre o litoral e o interior transmontano, mesmo com a decisão das portagens definidas por quem está “para lá do Marão” [na ótica de um transmontano]. Sempre que entro no túnel, no sentido Porto – Vila Real, sinto que estou a entrar no Reino Maravilhoso e de lembro-me de Torga: “Esta terra é a própria generosidade ao natural. Como um paraíso, basta estender a mão”.
Quanto ao “nume invisível”, poderá entender-se como uma entidade superior, um ser divino, que inspira e/ou protege o homem [ao longo de séculos]. Aquele “Entre!”, pela voz celestial ou pela mão do poeta, representará a intenção de realçar a forma franca e hospitaleira do povo desta região. Creio que é esse “nume invisível” que o povo continua a aceitar, elevando as mãos e o pensamento ao Alto.

Tem sido assim desde há muitos séculos. Lembremo-nos da capela que o povo de Quintanilha ergueu, por volta de 1258, para venerar a Senhora da Ribeira. Segundo a crença popular, passada de boca em boca, uma rapariga pastora, muda, terá sido visitada por Nossa Senhora – que a deixou a falar –, para que pedisse à população que construísse uma ermida naquele local da aparição. Passadas cerca de três décadas, foi precisamente por aquele local que deu entrada em Portugal a jovem infanta Isabel de Aragão – mais tarde aclamada pelo povo como Rainha Santa Isabel e, por fim, beatificada, pelo papa Leão X e canonizada pelo papa Urbano XVIII.

Não consigo imaginar o sentimento com que esta jovem, filha do rei de Aragão, entrou neste Reino Maravilhoso, que também passou a ser seu. Esperava-a em Bragança o infante D. Afonso e, em comitiva, seguiram para Trancoso, onde se realizou a cerimónia de casamento com o rei D. Dinis, apesar de já ter havido, em Barcelona, o casamento [até então, inédito] por procuração. Pelos feitos corajosos, como pacificadora no reino, e por ter exercido tanta influência benéfica junto de pobres e necessitados – a que não foi alheio ser seguidora e devota de São Francisco de Assis – foi apelidada de Rainha da Bondade e da Paz. Terá sido ela própria a dar ordem para a reconstrução da ermida da Senhora da Ribeira.

Frei Agostinho de Santa Maria (séc. XVII) terá afirmado que este templo religioso era [à época] o de maior peregrinação em Trás-os-Montes.

Foi no princípio da década de setenta, do século passado, que eu soube da existência dos concorridos festejos dedicados à Nossa Senhora da Ribeira, que acabaram por se fixar no último domingo de maio. Durante vários anos, assisti a uma grande afluência de gente vinda das várias aldeias e cidades mais próximas e também de Espanha. Na cerimónia religiosa, fazem-se representar todas as paróquias das redondezas, onde surgem as imagens dos respetivos santos protetores, que desfilam em procissão. É agradável de observar aquela humilde crença inabalável, facto que tenho retido na memória. Regista-se, igualmente como agradável que, embora existindo, a poucos metros do local, uma “fronteira” entre os dois países, há uma missa em castelhano e outra em português, mas acima de tudo um convívio salutar e harmonioso entre estes dois povos irmãos.  

(Continua na Parte II)