LEMBRANÇA
- MUDANÇA – ESPERANÇA
Parte
I
Todos sabemos que este
território transmontano foi apelidado de “Reino Maravilhoso”, pela mão e
genialidade de Miguel Torga, que referiu nos seus escritos “(…) De repente,
rasga a crosta de silêncio uma voz de franqueza desembainhada: Para cá do
Marão, mandam os que cá estão!... Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de
ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror
respeitoso se apodera de nós?
A gente entra e já está
no Reino Maravilhoso.”
O dito popular “Para lá
do Marão, mandam os que lá estão” [na ótica de quem vive no litoral] poderá ter
alimentado a ideia generalizada – e o ego de alguns transmontanos, com toda a
carga simbológica que representa –, que devido ao seu isolamento de longos
séculos, com difíceis acessos, isso remetia-os para uma sensação de poder e de
“independência”, sendo implícita a rejeição do poder centralizado da muito
afastada capital do país. E foi esse poder centralizado que, por demasiado tempo,
pareceu desconhecer a realidade e as necessidades “para lá do Marão”,
agudizando o fosso entre o litoral e esta região do interior.
A região transmontana foi
galvanizada com a criação da autoestrada A4 e com abertura do túnel do Marão – que
fura, durante cerca de seis quilómetros, o “oceano megalítico”. Eu
chamar-lhe-ia “encrespado e tortuoso oceano megalítico”, ao centrar a atenção
na conhecida Estrada Nacional 15, quando tinha necessidade de a percorrer,
acompanhando aquele serpentear na Serra do Marão. É certo que perdeu a
importância estratégica que deteve durante imensos anos, e que deixarei de ver,
lá bem no alto, aquela panorâmica inesquecível de cortar a respiração. Mas é
incontornável que o túnel do Marão passou a ter um importante papel na
aproximação entre o litoral e o interior transmontano, mesmo com a decisão das
portagens definidas por quem está “para lá do Marão” [na ótica de um
transmontano]. Sempre que entro no túnel, no sentido Porto – Vila Real, sinto que
estou a entrar no Reino Maravilhoso e de lembro-me de Torga: “Esta terra é a
própria generosidade ao natural. Como um paraíso, basta estender a mão”.
Quanto ao “nume
invisível”, poderá entender-se como uma entidade superior, um ser divino, que
inspira e/ou protege o homem [ao longo de séculos]. Aquele “Entre!”, pela voz
celestial ou pela mão do poeta, representará a intenção de realçar a forma
franca e hospitaleira do povo desta região. Creio que é esse “nume invisível”
que o povo continua a aceitar, elevando as mãos e o pensamento ao Alto.
Tem sido assim desde há
muitos séculos. Lembremo-nos da capela que o povo de Quintanilha ergueu, por
volta de 1258, para venerar a Senhora da Ribeira. Segundo a crença popular,
passada de boca em boca, uma rapariga pastora, muda, terá sido visitada por
Nossa Senhora – que a deixou a falar –, para que pedisse à população que
construísse uma ermida naquele local da aparição. Passadas cerca de três
décadas, foi precisamente por aquele local que deu entrada em Portugal a jovem infanta
Isabel de Aragão – mais tarde aclamada pelo povo como Rainha Santa Isabel e, por
fim, beatificada, pelo papa Leão X e canonizada pelo papa Urbano XVIII.
Não consigo imaginar o
sentimento com que esta jovem, filha do rei de Aragão, entrou neste Reino
Maravilhoso, que também passou a ser seu. Esperava-a em Bragança o infante D.
Afonso e, em comitiva, seguiram para Trancoso, onde se realizou a cerimónia de
casamento com o rei D. Dinis, apesar de já ter havido, em Barcelona, o
casamento [até então, inédito] por procuração. Pelos feitos corajosos, como
pacificadora no reino, e por ter exercido tanta influência benéfica junto de
pobres e necessitados – a que não foi alheio ser seguidora e devota de São
Francisco de Assis – foi apelidada de Rainha da Bondade e da Paz. Terá sido ela
própria a dar ordem para a reconstrução da ermida da Senhora da Ribeira.
Frei Agostinho de Santa
Maria (séc. XVII) terá afirmado que este templo religioso era [à época] o de
maior peregrinação em Trás-os-Montes.
Foi no princípio da
década de setenta, do século passado, que eu soube da existência dos
concorridos festejos dedicados à Nossa Senhora da Ribeira, que acabaram por se
fixar no último domingo de maio. Durante vários anos, assisti a uma grande
afluência de gente vinda das várias aldeias e cidades mais próximas e também de
Espanha. Na cerimónia religiosa, fazem-se representar todas as paróquias das
redondezas, onde surgem as imagens dos respetivos santos protetores, que
desfilam em procissão. É agradável de observar aquela humilde crença inabalável,
facto que tenho retido na memória. Regista-se, igualmente como agradável que,
embora existindo, a poucos metros do local, uma “fronteira” entre os dois
países, há uma missa em castelhano e outra em português, mas acima de tudo um
convívio salutar e harmonioso entre estes dois povos irmãos.
(Continua na Parte II)
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