05/11/2020

Crónicas Leves: DINHEIRO E COUVES DE BRUXELAS

DINHEIRO E COUVES DE BRUXELAS

 

Os portugueses andam preocupados, naturalmente, com as consequências da segunda vaga da pandemia que se instalou no país e no mundo, e que parece ter vindo para ficar. São empregos que se perdem e, em imensos casos, redução de rendimentos das famílias; dispara o número de pedidos de ajuda alimentar; aumenta sistematicamente o número de infetados, tal como o número de internamentos hospitalares e nas unidades de cuidados intensivos, com os serviços do SNS a ficar em rutura; incerteza quanto ao resultado das estratégias de ziguezague adotadas para o combate à pandemia, com falta de lógica e incoerência à mistura, o que agrava a situação pelo “baixar da guarda”, originada pela falta de credibilidade nas diretrizes e em quem as emite.  

 

Há demasiada incerteza quanto a um futuro próximo. São factos que abalam a estabilidade emocional e física do cidadão. A saúde mental dos portugueses está a ficar preocupante e talvez não se esteja a dar a devida atenção ao assunto, tal como não se dá a outras patologias. Chega-nos a ideia que o foco do governo estará na pandemia e na minimização dos estragos. O Orçamento de Estado para 2021 reflete preocupações sociais, sabendo que haverá inevitavelmente decréscimo da produção, com diminuição do PIB, sendo que os mais recentes indicadores económicos refletem uma estranha ligeira subida das exportações e uma diminuição bem maior das importações, fruto da evidente falta de poder de compra dos portugueses.

 

A Comissão Europeia, consciente das dificuldades que os Estados-membros irão atravessar nos anos que se seguem, fez o que lhe competia – delinear um plano de recuperação económica – mas que esbarra com a burocracia instalada no Parlamento Europeu, própria da regulamentação e das necessárias consultas e negociações com todos governos dos 27 países que compõem a União Europeia. Até chegar à aprovação final e chegada do dinheiro a cada um desses países, serão demasiados longos meses para um cidadão que não tem dinheiro para colocar na mesa algo para comer, nem espera que alguma vez lhe chegue aos bolsos qualquer importância para adquirir, sequer, simples couves de Bruxelas.

Mas esse dinheiro, vindo de Bruxelas, irá chegar ao país. Já foram noticiadas verbas distintas; há quem aponte para mais de 58 mil milhões de euros [MM€], durante dez anos, a um ritmo de cerca de 6 MM€ / ano.  Poderão ser 45 MM€ de fundos europeus, a fundo perdido, e mais de 12 MM€ por empréstimo. Estas importâncias aguçam o apetite e já se aprontam os comilões do costume para chegar ao pote, que vai ser posto ao lume. Com a população adormecida e dócil – quando se fala da perda de direitos, liberdades e garantias, que deviam ser asseguradas pela Constituição da República Portuguesa, esquecida na gaveta – parece mais fácil meter-se a mão na massa.

Devemos estar preocupados com a boa aplicação e controlo do dinheiro europeu, pois espera-se que essas elevadíssimas quantias sirvam para a recuperação económica do país. Lembra-se o Índice de Perceção da Corrupção (CPI) em Portugal, disponível através do relatório anual de 2019, elaborado pela Transparência Internacional e divulgado no site da Transparência e Integridade, onde se lê na capa deste: «É urgente implementar uma verdadeira estratégia nacional contra a corrupção». É que Portugal tem 62 pontos, numa escala de 0 a 100 – fica abaixo da média da Europa Ocidental (66) e abaixo da média da União Europeia (64), ocupando a posição 30 num grupo de 180 países. Nesse relatório também se pode ler: “Os resultados demonstram que os países mais bem classificados no CPI são os que têm políticas de transparência proativas, designadamente no que se refere ao financiamento político, à regulação do lóbi e de conflitos de interesses, e a mecanismos eficientes de consulta pública”. Em Portugal não está a funcionar a entidade da transparência, que era suposto fiscalizar os rendimentos dos políticos e titulares de cargos públicos; não são recrutados os recursos humanos necessários, particularmente técnicos informáticos; nem estará pronta a funcionar a plataforma que irá analisar as declarações apresentadas.

O jornalismo de investigação tem feito um trabalho incómodo, onde todas as semanas surgem novos casos de corrupção, fuga ao fisco, branqueamento de capitais… mas as suspeições fundamentadas ocasionam ruído no momento e acabam por “cair em saco roto”. Recentemente, o Diretor Nacional da Polícia Judiciária (PJ) disse que Portugal não é um país corrupto, mas precisa de mais inspetores. A verdade é que o número de inspetores da PJ é bastante menor do que há uns anos, o que será mais impeditivo de mais ação no combate à corrupção. No papel, será um pacote legislativo com bons princípios, mas sem meios de combate à corrupção, transformando-se num processo de intenções para fazer crer que há interesse no combate à corrupção e enriquecimento ilícito. As estratégias são moldadas em gabinetes, sem consulta prévia. A Comissão de Ética da Assembleia da República não mostra trabalho, quando se aborda a corrupção. Os megaprocessos jurídicos acabam por atrasar demasiado a aplicação da justiça, permitindo que os infratores se passeiem impunemente, continuando a atividade criminosa. A antever a chegada do dinheiro de Bruxelas, regista-se a “coincidência” do afastamento da anterior Procuradora-Geral da República e do Presidente do Tribunal de Contas, não renovando a sua continuidade – que pode ser um mau indicador – e as presidências das Comissões de Coordenação Regional (CCDR) a negociadas entre os dois maiores partidos políticos que mostram, neste caso, convergências de interesses. Lembra-se que as CCDR, como serviços descentralizados da administração central, são «dotadas de autonomia administrativa e financeira, incumbidas de executar medidas proveitosas para o desenvolvimento das respetivas regiões (…)», o que faz pressupor que, entrado o dinheiro, é gerido autonomamente em que, pelo passado recente, deixa dúvidas (ou pior, certezas) quanto a “códigos de conduta”.

 

Escreveu George Orwell: «É preciso uma luta constante para ver aquilo que está mesmo à frente dos nossos olhos». Neste caso, acrescenta-se: e se aquilo não é eticamente bonito de ver, haja coragem, fazendo uso de proatividade, para exigir a criação dos meios adequados, pois espera-se, em prol de todos, a devida aplicação do dinheiro vindo de Bruxelas, e ainda mais pelo empréstimo vir a ser liquidado com dinheiro dos contribuintes.  

  

© Jorge Nuno (2020)

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