DINHEIRO E COUVES DE BRUXELAS
Os
portugueses andam preocupados, naturalmente, com as consequências da segunda
vaga da pandemia que se instalou no país e no mundo, e que parece ter vindo para
ficar. São empregos que se perdem e, em imensos casos, redução de rendimentos
das famílias; dispara o número de pedidos de ajuda alimentar; aumenta
sistematicamente o número de infetados, tal como o número de internamentos
hospitalares e nas unidades de cuidados intensivos, com os serviços do SNS a
ficar em rutura; incerteza quanto ao resultado das estratégias de ziguezague
adotadas para o combate à pandemia, com falta de lógica e incoerência à mistura,
o que agrava a situação pelo “baixar da guarda”, originada pela falta de
credibilidade nas diretrizes e em quem as emite.
Há
demasiada incerteza quanto a um futuro próximo. São factos que abalam a
estabilidade emocional e física do cidadão. A saúde mental dos portugueses está
a ficar preocupante e talvez não se esteja a dar a devida atenção ao assunto,
tal como não se dá a outras patologias. Chega-nos a ideia que o foco do governo
estará na pandemia e na minimização dos estragos. O Orçamento de Estado para
2021 reflete preocupações sociais, sabendo que haverá inevitavelmente decréscimo
da produção, com diminuição do PIB, sendo que os mais recentes indicadores
económicos refletem uma estranha ligeira subida das exportações e uma
diminuição bem maior das importações, fruto da evidente falta de poder de
compra dos portugueses.
A Comissão Europeia,
consciente das dificuldades que os Estados-membros irão atravessar nos anos que
se seguem, fez o que lhe competia – delinear um plano de recuperação económica
– mas que esbarra com a burocracia instalada no Parlamento Europeu, própria da
regulamentação e das necessárias consultas e negociações com todos governos dos
27 países que compõem a União Europeia. Até chegar à aprovação final e chegada
do dinheiro a cada um desses países, serão demasiados longos meses para um
cidadão que não tem dinheiro para colocar na mesa algo para comer, nem espera
que alguma vez lhe chegue aos bolsos qualquer importância para adquirir,
sequer, simples couves de Bruxelas.
Mas esse dinheiro, vindo
de Bruxelas, irá chegar ao país. Já foram noticiadas verbas distintas; há quem
aponte para mais de 58 mil milhões de euros [MM€], durante dez anos, a um ritmo
de cerca de 6 MM€ / ano. Poderão ser 45
MM€ de fundos europeus, a fundo perdido, e mais de 12 MM€ por empréstimo. Estas
importâncias aguçam o apetite e já se aprontam os comilões do costume para
chegar ao pote, que vai ser posto ao lume. Com a população adormecida e dócil –
quando se fala da perda de direitos, liberdades e garantias, que deviam ser
asseguradas pela Constituição da República Portuguesa, esquecida na gaveta –
parece mais fácil meter-se a mão na massa.
Devemos estar preocupados
com a boa aplicação e controlo do dinheiro europeu, pois espera-se que essas
elevadíssimas quantias sirvam para a recuperação económica do país. Lembra-se o
Índice de Perceção da Corrupção (CPI) em Portugal, disponível através do
relatório anual de 2019, elaborado pela Transparência Internacional e divulgado
no site da Transparência e Integridade, onde se lê na capa deste: «É urgente
implementar uma verdadeira estratégia nacional contra a corrupção». É que
Portugal tem 62 pontos, numa escala de 0 a 100 – fica abaixo da média da Europa
Ocidental (66) e abaixo da média da União Europeia (64), ocupando a posição 30
num grupo de 180 países. Nesse relatório também se pode ler: “Os resultados
demonstram que os países mais bem classificados no CPI são os que têm políticas
de transparência proativas, designadamente no que se refere ao financiamento
político, à regulação do lóbi e de conflitos de interesses, e a mecanismos
eficientes de consulta pública”. Em Portugal não está a funcionar a entidade da
transparência, que era suposto fiscalizar os rendimentos dos políticos e
titulares de cargos públicos; não são recrutados os recursos humanos
necessários, particularmente técnicos informáticos; nem estará pronta a
funcionar a plataforma que irá analisar as declarações apresentadas.
O
jornalismo de investigação tem feito um trabalho incómodo, onde todas as
semanas surgem novos casos de corrupção, fuga ao fisco, branqueamento de
capitais… mas as suspeições fundamentadas ocasionam ruído no momento e acabam
por “cair em saco roto”. Recentemente, o Diretor Nacional da Polícia Judiciária
(PJ) disse que Portugal não é um país corrupto, mas precisa de mais inspetores.
A verdade é que o número de inspetores da PJ é bastante menor do que há uns
anos, o que será mais impeditivo de mais ação no combate à corrupção. No papel,
será um pacote legislativo com bons princípios, mas sem meios de combate à
corrupção, transformando-se num processo de intenções para fazer crer que há
interesse no combate à corrupção e enriquecimento ilícito. As estratégias são
moldadas em gabinetes, sem consulta prévia. A Comissão de Ética da Assembleia
da República não mostra trabalho, quando se aborda a corrupção. Os
megaprocessos jurídicos acabam por atrasar demasiado a aplicação da justiça,
permitindo que os infratores se passeiem impunemente, continuando a atividade
criminosa. A antever a chegada do dinheiro de Bruxelas, regista-se a
“coincidência” do afastamento da anterior Procuradora-Geral da República e do Presidente
do Tribunal de Contas, não renovando a sua continuidade – que pode ser um mau
indicador – e as presidências das Comissões de Coordenação Regional (CCDR) a negociadas
entre os dois maiores partidos políticos que mostram, neste caso, convergências
de interesses. Lembra-se que as CCDR, como serviços descentralizados da
administração central, são «dotadas de autonomia administrativa e financeira,
incumbidas de executar medidas proveitosas para o desenvolvimento das
respetivas regiões (…)», o que faz pressupor que, entrado o dinheiro, é gerido
autonomamente em que, pelo passado recente, deixa dúvidas (ou pior, certezas)
quanto a “códigos de conduta”.
Escreveu
George Orwell: «É preciso uma luta constante para ver aquilo que está mesmo à
frente dos nossos olhos». Neste caso, acrescenta-se: e se aquilo não é
eticamente bonito de ver, haja coragem, fazendo uso de proatividade, para
exigir a criação dos meios adequados, pois espera-se, em prol de todos, a
devida aplicação do dinheiro vindo de Bruxelas, e ainda mais pelo empréstimo
vir a ser liquidado com dinheiro dos contribuintes.
© Jorge Nuno
(2020)
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