PURIFICAR VALORES DA NOSSA
SOCIEDADE?
(englobada numa crónica
com quatro partes)
Continua
a assistir-se – por vezes de forma extremada –, a uma polarização entre a visão
glorificadora de um império que se esfumou e que tinha sido preservado durante
cinco séculos, sentindo-se desalento, frustração, até mesmo raiva, com necessidade
de apontar o dedo acusador e, por outro lado, uma tentativa de criminalização
do nosso passado, como nada tendo de glorioso, achando-se que estará na hora de
purificar os valores da sociedade atual, mesmo que implique igual apontar de
dedo acusador e, mais do que isso, uma necessidade urgente de fazer um
revisionismo histórico, com contestação cultural da história, passando por querer
esconder ou destruir os símbolos dessa mesma história.
Uns
e outros, certamente esquecem que a história vive de memórias e não prescreve;
que nem sempre temos consciência da complexidade da história, de aspetos que
levam a que, por exemplo, a história narrada aos alunos, durante o regime do
Estado Novo, seja uma, e que, pós-25 de abril de 1974, seja inevitavelmente
diferente. E falamos de um pequeníssimo período de tempo, comparativamente aos
mais de 800 anos deste país, em que muito de bom e mau aconteceu!
Trazer
para os dias de hoje só os aspetos negativos da nossa história e pretender
fazer operações plásticas ao passado, fazendo uso de radicalismos exacerbados,
em nada favorece o desejado encontro de culturas, a descriminação racial, a
convivência sadia entre povos, perante a realidade – factual – deste pequeno
país ter criado o primeiro império global da história, iniciado no final do séc.
XV, com possessões em África, América do Sul, Ásia e Oceânia.
Lendo
Conquistadores - Como Portugal criou o primeiro império global, obra do
historiador Roger Crowley, especializado em história marítima e mediterrânea,
fica-se com uma ideia, nua e crua, da dimensão do tráfego de escravos, da
brutalidade da destruição de vidas, particularmente na costa oriental africana
e na ásia, da própria destruição do comércio a oriente, a envolver muçulmanos –
por quem, na época, se cultivava um ódio de estimação e eram vítimas, aquando
dos implacáveis abates de embarcações carregados de pessoas e bens –. Sim, tudo
isso não foi abordado nas escolas portuguesas, apenas os feitos gloriosos.
Por
alguma razão, em 1998, a Índia não se associou a Portugal nas comemorações dos
500 anos da chegada de Vasco da Gama àquele país! E, pelo que se pode constatar,
durante a leitura do referido livro, com estes capítulos da história, tiveram
toda a legitimidade e é compreensível – ao preservarem essa memória histórica –
que os indianos não estivessem minimamente satisfeitos com os portugueses
daquela época, nem com os portugueses, de há um quarto de século atrás, que
organizaram essas comemorações. Aliás, as relações diplomáticas entre Índia e
Portugal só foram normalizadas após 25 de abril de 1974.
Mas
vejamos como se chega a esse primeiro império global, criado em nome da fé, com
um rei a julgar-se “messiânico”, firme na intenção de “destruição do bloco
islâmico”. Falamos do rei D. Manuel I, que assumia, pomposamente, o título de
“rei de Portugal e dos Algarves, Senhor do Comércio, da Conquista e da
Navegação da Arábia, Pérsia e Índia”, quando para outros reis da Europa era
visto como o “rei merceeiro”, por comercializar especiarias. É que além da
bênção do Papa Júlio II, com direito à «posse perpétua das terras conquistadas
aos infiéis, onde outros reis cristãos não tivessem reivindicações», chegou a
ser-lhe concedido, pelo mesmo Papa, em julho de 1505, «um imposto de cruzada
que poderia ser cobrado durante dois anos e remissão de todos os pecados para
quem nele participasse». Convenhamos, seria reconfortante e uma atenuante para
quem participasse nestes ferozes combates, saber que todo o mal causado a
outrem ficaria livre de condenação divina, embora a bravura de muitos dos
marinheiros resultasse do facto de serem prisioneiros, a quem lhes era dado
oportunidade de sair da prisão e ir à aventura, conhecer “outros mundos”, em
liberdade.
Há
quem avance, agora, com a ideia de se destruir o Padrão dos Descobrimentos,
localizado na zona Belém, junto ao rio Tejo, em Lisboa. O monumento original foi
criado em 1940, com materiais perecíveis, em pleno regime salazarista, por
ocasião da Exposição do Mundo Português. Com esta exposição, pretendia-se
comemorar a fundação de Portugal [1140] e a restauração de Portugal [1640], e este
monumento seria “para homenagear as figuras históricas envolvidas nos
descobrimentos portugueses”, mas poderia funcionar como propaganda do Estado
Novo, para exacerbar nacionalismos e fortalecer o regime ditatorial. Em 1960, no mesmo local, foi criada uma
réplica, em betão e em pedra, onde podem ser apreciadas as enormes esculturas
de Leopoldo de Almeida. Estas, são representativas de várias figuras de
notáveis da história deste país, muitas delas baseadas nos seis “painéis de São
Vicente de Fora”, criados por Nuno Gonçalves, pintor régio de D. Afonso V.
Naquele espaço, funciona o Centro Cultural das Descobertas, tem um auditório,
duas salas de exposições e um miradouro.
Podemos
não gostar das atrocidades cometidas durante as Descobertas, tal como podemos
não gostar das atrocidades cometidas pela polícia política do regime do Estado
Novo, mas ocultar ou escamotear essa realidade, ou, pior, aceitar esta onda de
intolerância e de preconceitos com a história, que leva a querer destruir monumentos
evocativos dessa mesma realidade histórica, é outra atrocidade que não se deve
permitir. Nem que as peças escultóricas funcionem como interesse museológico,
já que há muito deixaram de funcionar como propaganda do regime. Será deste
modo que se purificam, na atualidade, os valores da nossa sociedade?
(Continua
na Parte II, de IV)
©
Jorge Nuno (2021)
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