PURIFICAR VALORES DA NOSSA SOCIEDADE?
(englobada numa crónica com quatro partes)
Em
Portugal, há ondas de intolerância e de preconceitos com a história, que chocam,
por exemplo, com a [ainda] visão glorificadora e saudosista de um império que
se esfumou e que tinha sido preservado durante cinco séculos. Esta parte II da
crónica, aborda um tema que tem sido tabu – a descolonização.
Sente-se
que são muitos os portugueses, ao longo de mais de 47 anos, a apontar o dedo
acusador, particularmente dirigido a Mário Soares – tido como o grande
responsável pela entrega das “possessões ultramarinas”. Alguns desses, tinham
uma vida desafogada em África e não perdoam ter sido forçados a regressar a
Portugal, de um momento para o outro, ao perderem o direito aos seus bens e
chegarem com pouco mais do que a roupa que tinham no corpo.
Seria
bom conhecer-se a realidade do Portugal de 1974/75 e enquadramento com o
programa do MFA[1],
que restituiu a liberdade ao portugueses, envolvendo, necessariamente, a
questão da Guerra Colonial e a conjuntura na época, com fortes pressões
internacionais e a força das armas, que já tinham conduzido: em 1961, à integração
dos enclaves de Goa, Damão e Diu pela União Indiana; em 1973, à autoproclamada
independência da Guiné [Portuguesa]; e, ao longo de seis décadas, à
independência dos territórios africanos sob alçada do Reino Unido, França,
Itália, Bélgica e Espanha.
Para se ficar com uma ideia da extensão
desses territórios africanos colonizados ou com protetorado… era todo o
continente africano! Não recuando muito no tempo, fiquemo-nos pelo período de
1910 a 1974 – ano em que nos queremos situar – e poderemos
observar a vastidão de países, só neste continente, que se tornaram independentes:
– do Reino Unido: África do Sul, Egito,
Sudão, Gana, Somália Britânica, Nigéria, Serra Leoa, Uganda, Tanganica e
Zanzibar [formaram a Suazilândia], Malauí, Zâmbia, Gâmbia, Rodésia [Zimbábue],
Botsuana, Lesotho, Maurícia;
– da Itália: Etiópia, Líbia, Somália
Italiana;
– da França: Marrocos, Tunísia, Guiné
[Guiné–Conacri], Camarões, Togo, Senegal, Madagáscar, Benim, Níger, Burkina
Faso [ex-Alto Volta], Costa do marfim, Chade, Congo, Gabão, Mali, Mauritânia,
Argélia;
– da Bélgica: República Democrática do
Congo [ex-Zaire], Burundi, Ruanda;
–
da Espanha: Guiné Equatorial.
Registe-se
a experiência traumatizante de militares e marinheiros que fizeram comissões de
serviço no Estado Português da Índia, logo após as primeiras iniciativas de
luta armada em Angola. A União Indiana, no final de 1961, fez investidas por
terra, mar e ar, sobre os enclaves de Goa, Damão e Diu. Perante a evidência
desses ataques, o então presidente do Conselho de Ministros – António de
Oliveira Salazar – que sempre se tinha oposto à entrega desses territórios, fez
chegar esta mensagem: «Não prevejo possibilidades de tréguas nem prisioneiros
portugueses, como não haverá rendição, pois sinto que apenas pode haver
soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos». O general Vassalo e Silva,
governador daquele território, reconhecendo a anormal diferença de meios
bélicos e humanos entre portugueses e indianos, não obedeceu a Salazar. Ficou
conhecido como “Vacila e Salva”. Na verdade, morreram cerca de 30 militares
portugueses, mas salvou a vida a cerca de 3.000 que faziam parte da guarnição,
ao assinar a rendição incondicional. Seis meses depois do cativeiro, deu-se o
regresso dos militares a Portugal, sem glória, humilhados e muitos deles
castigados. O próprio general viria a ser julgado em tribunal militar e expulso
do exército.
Em
Portugal, lia-se o slogan repetidamente pintado nas paredes: “Nem mais
um soldado para as colónias!”. Logo após a revolução de 25 de abril de 1974,
militares portugueses, presentes na Guerra Colonial, identificados com o MFA, chegaram
a confraternizar no terreno com os guerrilheiros, antecipando-se à diplomacia e
às decisões políticas. A Lei n.º 7/74, de 27 de julho, saída do Conselho de
Estado, refere no art.º 1.º “o princípio de que a solução das guerras no
ultramar é política e não militar, consagrado no n.º 8 alínea a) do capítulo B
do Programa do Movimento das Forças Armadas, implica, de acordo com a Carta das
Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito dos povos à
autodeterminação. O reconhecimento do direito à autodeterminação, com todas as
suas consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios
ultramarinos e a derrogação da parte correspondente do art.º 1.º da
Constituição Política [Portuguesa] de 1933».
Mário
Soares, político oposicionista ao regime totalitário, regressado do exílio em
França, era o ministro dos Negócios Estrangeiros no primeiro governo provisório
pós-25 de abril, e fortemente acusado de “traição à Pátria”, quando se desenrolaram
as tentativas de negociação para autodeterminação ou independência daqueles
territórios (uma ideia que ainda paira no ar, passados 47 anos!). É sabido que o
simples facto de passar a designar os “Territórios Ultramarinos” por
“Colónias”, teve um imediato impacto negativo junto de larga franja dos
militares de elevada patente e na opinião pública.
António
de Spínola, tinha sido vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas durante
dois meses, entre janeiro e março de 1974, e afastado após ter publicado Portugal
e o Futuro, onde evidenciava que a solução das colónias passava pela não
continuação da guerra. No mês seguinte, convidado para presidir à Junta de
Salvação Nacional, foi escolhido, entre pares, para as funções de primeiro
presidente da República pós-25 de abril, cargo que exerceu durante quatro
meses. Nesse espaço de tempo, Spínola enviou Mário
Soares a Dakar para “negociar” com Aristides Pereira, que representava o PAIGC[2], na qualidade de secretário-geral.
No
livro “Mário Soares – Uma Vida[3]”, onde condensa vários
testemunhos na primeira pessoa, o autor refere que Spínola queria que esse
primeiro encontro representasse um gesto de boa vontade e não passasse de “chá
e simpatia”, mesmo sabendo do reconhecimento da independência da Guiné, pela ONU
e por mais 79 países.
(Continua
na Parte III, de IV)
©
Jorge Nuno (2021)
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