A
CIGARRA ALEGRE E A FORMIGA PREGUIÇOSA
Vem-me
à memória a fábula da cigarra e da formiga, cuja criação é atribuída a Esopo, e
que teve relançamento e notoriedade pela mão de La Fontaine, que nos aparece
como sendo o verdadeiro autor. Esta fábula era-nos apregoada desde pequenos,
mostrando uma cigarra mandriona e uma formiga trabalhadora, tendo em vista
apontar-nos o caminho dos valores do trabalho dedicado e da necessidade de
poupança, a pensar nos dias menos bons, tudo isto em oposição ao “dolce fare niente”,
com consequências desagradáveis para quem escolhe esta segunda via. O meu lado
nobre, ou ingénuo, tinha dificuldade em encaixar a ideia de uma formiga
castigadora e pouco solidária, perante o pedido de abrigo – com o significado
de um pedido de ajuda –, por parte da cigarra, quando chegou o inverno
rigoroso.
Já
neste milénio, o livro de Luísa Ducla Soares e Pedro Nogueira Ramos, precisamente
com o mesmo título mas com um “remake” da história nossa conhecida, viria a ser
recomendado pelo Plano Nacional de Leitura para a Educação Pré-Escolar, 1.º e
2.º anos de escolaridade. Só que a versão desta dupla alterou a visão da
cigarra foliona, com pouca vontade de trabalhar e mais predisposta a gozar a
vida, e apresentou-a como “uma grande artista, que não trabalha porque só
consegue olhar e sentir a Natureza que a rodeia”, deixando no ar esta interrogação
às crianças leitoras: “Achas que merece ser castigada por isso?”.
Sem
dúvida que eu, muito novo, senti na pele a necessidade de encontrar um sentido
para a primeira versão da história. Sentia uma admiração enorme ao ver o
carreiro incessante de formigas, sempre carregadas, a transportar alimentos. Também
não me incomodava nada o “cantar” da cigarra, quando, no verão, me deslocava de
bicicleta pelos campos; aliás, até gostava, e só conseguia identificar a
presença da cigarra pelo “cantar”. Em tempos de ditadura, tempos difíceis… apercebi-me
que a remuneração, como “formiga”, era escassa para quem tinha trabalhos
sazonais, seja a retirar areia do rio, na apanha do tomate, ou como aprendiz ocasional
numa qualquer oficina de mecânica. Depressa me apercebi que, no papel de
“cigarra” – ainda mais por saber que esta só poderia ser cigarra-macho, já que
a fêmea não “canta” –, iria recriar-me com a música, teria mais liberdade de
movimentos, possibilidade de desfrutar de novos horizontes e de uma maior
independência financeira, fazendo-o com muita satisfação pessoal, podendo
enveredar por outros voos, com destaque para o prosseguimento dos estudos.
A
nossa mente foi sendo formatada, pelo que é fácil aceitarmos como válido aquilo
que existe há gerações e é aceite como verdade, mesmo que sejam “histórias da
carochinha” e, neste caso, histórias de cigarras e de formigas. Temos, também,
uma tendência para atrair tudo o que é negativo – “é o nosso fado”, diz-se e
aceita-se candidamente – e, paradoxalmente, até parece que nos sentimos bem
assim, como se fosse essa a nossa zona de conforto. Deste modo, desde muito
cedo aprendemos a ter limitações, sentindo como natural a escassez de bens, de afetos,
de inteligência e de uma visão mais aprofundada dos valores da vida, factos que
nos impedem de ir mais longe. Assim, ficamos pela mediania e superficialidade,
e quando surge algo diferente do que admitimos com válido, seguindo a cultura e
os nossos padrões de pensamento [limitado, como é evidente], simplesmente
rejeitamos.
Na
Bíblia King James atualizada (Novo
Testamento) é referido, algures: “Vai ter com a formiga, ó preguiçoso; olha
para os seus caminhos [ou reflete sobre o trabalho que ela realiza] e sê
sábio”, numa tentativa, com este exemplo, de promover uma melhor orientação
para a espécie humana, que eventualmente tenha tendência para a preguiça.
Talvez influenciado por isso, o ex-ministro Miguel Macedo, logo após a
gigantesca manifestação de 2012, organizada pelo movimento “Que se lixe a troika”,
assumindo as funções de pedagogo afirmou que Portugal não pode ser “um país de
cigarras e poucas formigas”, o que levou à indignação dos mais atentos e que trabalham
arduamente, sendo que alguém não resistiu à tentação de escrever, sob forma de
resposta: “é fácil ser formiga-rainha na hora de receber € 1400 de subsídio de
deslocação, quando efetivamente não se vive deslocado do formigueiro”.
E
se lhe dissessem que o mito da formiga trabalhadora caiu por terra? Que se
comprovou que cerca de metade de várias colónias de formigas são preguiçosas? A
fonte é a revista R&D [Research & Development], que publicou um artigo
que dava conta de um estudo efetuado por um grupo de investigadores da Universidade
de Tucson, Arizona, EUA, tendo Daniel Charbonneau como responsável da
investigação. Fazendo aqui uma descrição sumária, este estudo baseia-se na
identificação e observação de 225 formigas “distribuídas por cinco colónias
artificiais diferentes, num habitat simulado, com comida e ‘material de
construção’ para as formigas usarem”, tendo, naturalmente, um sistema para as
filmar. Ao divulgar as conclusões do estudo, afirmou o chefe desta equipa:
“Quando começamos a investigar as sociedades compostas por insetos, percebemos
que estas [as formigas] também têm os seus problemas: metade delas estão apenas
a andar de um lado para o outro enquanto as outras fazem todo o trabalho”.
Arrisca uma possível explicação, apontando, numa semelhança com os humanos, que “as formigas
servem para substituir outras que entretanto morrem ou então só começam a
trabalhar quando o volume dentro da colónia aumenta”, acrescentando que “é
também possível que as formigas inativas estejam a ser egoístas e evitem as
tarefas mais perigosas enquanto usam os recursos da colónia para investir na
sua reprodução”. Para se ser mais preciso, o estudo indica que 34 formigas
fizeram o trabalho doméstico, 26 fizeram trabalhos externos, 62 eram
generalistas e 103 eram “completamente ociosas”, ficando ainda a hipótese no ar
que este último grupo poderia “constituir uma reserva quando fosse necessário
atacar ou defender o formigueiro” ou que “algumas formigas poderiam não estar a
par das tarefas e ficam a circular para evitar o trabalho”.
Também
na Europa, a entomologista Danielle Mersch, da Universidade de Lausanne, Suíça,
chefiou uma equipa de investigação relacionada com a atividade das formigas,
concluindo que estas “organizam-se segundo as necessidades coletivas” e que
“quando se encontram isoladas são na verdade, preguiçosas”, dando conta dessas
conclusões na revista “Science”.
Tal
como foi deixada a interrogação às crianças leitoras, também eu, como autor
desta crónica, pergunto ao leitor que a lê: “Acha que a formiga-operária, ao esquivar-se
de transportar até 50 vezes o seu peso merece ser castigada por isso?”; “Não
deveria servir de exemplo aos humanos, quando numa civilização moderna,
incompreensivelmente, estão a ser espoliados dos seus direitos, obrigados a
mais tempo de trabalho e a redução das condições de trabalho e de salário?
Como
é bom ter-se uma atividade que permita contribuir para o bem comum, mas dando
uma manifesta satisfação pessoal no papel de “formiga-operária”,
desenvolvendo-a com a descontração e alegria de uma “cigarra-macho” no verão!
© Jorge Nuno (2015)
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