27/02/2020

Crónicas Leves: GENTE QUE NÃO VAI À BOLA

GENTE QUE NÃO VAI À BOLA

Sinto-me tentado a recuar vinte anos, quando monitorizava “Formação Pessoal e Social”. Num dos módulos, criei a atividade “As profissões que admiro”, tendo como objetivo “refletir sobre os valores pessoais e conhecer os valores do grupo, relativamente ao prestígio atribuído a determinada profissão”. No fim, comentava-se o que é o prestígio e que valores lhes era atribuído, para depois estimular a autoestima, caso necessário. Para o efeito, criei uma lista com 15 profissões[1] para hierarquizar, deixando um campo aberto para inclusão de outra profissão, anotada livremente. Com uma amostra superior a 150 formandos adultos, a primeira escolha recaiu quase na totalidade sobre a profissão de “juiz”.

Em duas décadas muito tem mudado, incluindo os valores éticos e deontológicos, tal como a perceção do prestígio dos juízes. Reconheço que seria interessante “medir” o desvio verificado, já que há, cada vez mais, estupefação em relação a despachos, sentenças e acórdãos proferidos por juízes, deixando-nos um sentimento de que a justiça não funciona, ou só funciona para alguns, deixando-a fragilizada.

Uma notícia do JN[2] dá-nos conta de que o “Modelo de Braga no combate à violência [no desporto] alarga-se ao país – juízes e procuradores andam nos estádios a conhecer a realidade do desporto. Projeto já sancionou 60 adeptos”. Os referidos adeptos estarão proibidos, pela via judicial, de aceder a recintos desportivos, de várias modalidades. Tal, resulta “de um projeto-piloto [na comarca de Braga] desde a Liga das Nações, no verão de 2019]”. O coordenador do Ministério Público do Distrito Judicial de Braga, terá referido: “Temos vindo com este pleno de ação a aplicar mecanismos legais com magistrados a seguir todas as fases dos policiamentos, antes, durante e após os jogos, para avaliarem a complexidade do fenómeno. Ao conhecer melhor o meio em que se desenvolvem as situações terão, pelo menos, decisões mais adequadas aos casos concretos, tendo resultado na interdição judicial de adeptos, aplicada ao fim de poucas horas dos casos”. Ao que tudo indica, estes juízes e procuradores foram à bola, e terão tomado consciência do flagelo da violência no desporto e da necessidade de agilizar a sua erradicação.

No mesmo jornal[3] pode ler-se: “Juízes recuam na proibição de cargos no futebol”. O líder da Associação Sindical dos Juízes terá estado na origem da proposta de proibição de juízes desempenharem funções em órgãos de clubes desportivos e/ou respetivas Sociedades Anónimas Desportivas [SAD]. Clubes mais relevantes e a própria Federação Portuguesa de Futebol têm juízes nos seus órgãos sociais. Fazem-no, normalmente, na Mesa da Assembleia Geral, Conselho Fiscal e Disciplinar, Conselho de Justiça… muitos são juízes conselheiros, com alguns deles jubilados. O Conselho Superior da Magistratura [CSM] deliberou não proibir, de imediato, a participação de juízes nas estruturas dos clubes e SAD, e permite que quem esteja a exercer funções termine o seu mandato em curso. É de acreditar que estes juízes, com a sua paixão clubística, irão mesmo à bola.

Um artigo do JN[4] lembra: “Megainvestigação do Fisco ao mundo do futebol já decorre há vários anos – Os principais negócios do futebol português começaram a ser escrutinados pela Autoridade Tributária [AT] em 2016, e vários deles levaram à abertura de inquéritos por parte do Ministério Público [MP], mas nenhum foi ainda concluído com acusação, não tendo ocorrido, também, liquidação de impostos em falta (…)”. Trata-se de casos de fraude fiscal e branqueamento e os processos terão sido organizados em cinco megainquéritos. É evidente que a criação de um qualquer megainquérito, por mais bem-intencionado que seja, dificulta as conclusões em tempo útil. Neste caso, não ficará no ar a suspeição se os juízes, ao serviço dos clubes, serão “conselheiros” das respetivas direções e, paralelamente, moverem influências externas, p.e., para deixar prescrever os prazos de processos em curso? Como é possível que tal aconteça? Basta haver o argumento da escassez de meios humanos das equipas de investigação alocadas à investigação, tanto do DCIAP – Departamento Central de Investigação e Ação Penal, do MP e da Direção de Serviços de Investigação de Fraude e Ações Inspetivas, da AT. Ou, como terá afirmado uma fonte da AT, que “a investigação tem sido prejudicada por demasiadas mudanças de magistrados nas equipas (,,,)” o que, atendendo à complexidade, leva a perder o fio à meada, provocando atrasos na sua conclusão. É de prever que muitos dos juízes, que vão em trabalho aos estádios, acabem por também ir à bola.

É conhecida uma lista de 45 magistrados, alegadamente convidados por um glorioso clube português para assistirem aos jogos de futebol no seu estádio. Um deles, desembargador, terá rejeitado um recurso do hacker Rui Pinto, para anular a medida de coação a que ficou sujeito – prisão preventiva. No site da TSF[5] pode ler-se a seguinte afirmação à Lusa, proferida pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça [CSJ], quando soube que a ex-eurodeputada Ana Gomes citou o seu nome, como estando incluído nessa lista: “Repudio, em meu nome pessoal e como presidente do CSJ e do CSM, insinuações gerais de parcialidade da justiça que têm surgido a este propósito [em relação aos clubes]”, assegurando que nunca aceitou convites de qualquer clube de futebol para assistir a jogos. Um conselheiro no Tribunal da Relação de Lisboa [TRL], disse que foi ver um jogo há muitos anos, que pagou o bilhete e até deixou de ser sócio. O próprio presidente do TRL, terá garantido ao JN que já não entra num estádio de futebol há mais de 40 anos; “a última vez que fui ao futebol foi nos anos 70, um jogo de juniores, e como havia pancada nunca mais voltei”, terá afirmado.

Bolas!... Afinal há gente que não vai à bola!

© Jorge Nuno (2020)
   




[1] Adaptado de “Psicologia das Relações Interpessoais”, de M. Odete Fachada (1998)
[2] de 7 de fevereiro de 2020, assinado por Joaquim Gomes.
[3] Idem, assinado por Nuno Miguel Maia.
[4] Idem, assinado por Alexandre Panda e Nelson Morais.
[5] de 03 de fevereiro de 2020.

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