GENTE QUE
NÃO VAI À BOLA
Sinto-me tentado a recuar vinte anos,
quando monitorizava “Formação Pessoal e Social”. Num dos módulos, criei a
atividade “As profissões que admiro”, tendo como objetivo “refletir sobre os
valores pessoais e conhecer os valores do grupo, relativamente ao prestígio
atribuído a determinada profissão”. No fim, comentava-se o que é o prestígio e
que valores lhes era atribuído, para depois estimular a autoestima, caso
necessário. Para o efeito, criei uma lista com 15 profissões[1]
para hierarquizar, deixando um campo aberto para inclusão de outra profissão, anotada
livremente. Com uma amostra superior a 150 formandos adultos, a primeira escolha
recaiu quase na totalidade sobre a profissão de “juiz”.
Em duas décadas muito tem mudado,
incluindo os valores éticos e deontológicos, tal como a perceção do prestígio dos
juízes. Reconheço que seria interessante “medir” o desvio verificado, já que
há, cada vez mais, estupefação em relação a despachos, sentenças e acórdãos
proferidos por juízes, deixando-nos um sentimento de que a justiça não
funciona, ou só funciona para alguns, deixando-a fragilizada.
Uma notícia do JN[2]
dá-nos conta de que o “Modelo de Braga no combate à violência [no desporto]
alarga-se ao país – juízes e procuradores andam nos estádios a conhecer a
realidade do desporto. Projeto já sancionou 60 adeptos”. Os referidos adeptos
estarão proibidos, pela via judicial, de aceder a recintos desportivos, de
várias modalidades. Tal, resulta “de um projeto-piloto [na comarca de Braga]
desde a Liga das Nações, no verão de 2019]”. O coordenador do Ministério
Público do Distrito Judicial de Braga, terá referido: “Temos vindo com este
pleno de ação a aplicar mecanismos legais com magistrados a seguir todas as
fases dos policiamentos, antes, durante e após os jogos, para avaliarem a
complexidade do fenómeno. Ao conhecer melhor o meio em que se desenvolvem as
situações terão, pelo menos, decisões mais adequadas aos casos concretos, tendo
resultado na interdição judicial de adeptos, aplicada ao fim de poucas horas
dos casos”. Ao que tudo indica, estes juízes e procuradores foram à bola, e
terão tomado consciência do flagelo da violência no desporto e da necessidade de
agilizar a sua erradicação.
No mesmo jornal[3]
pode ler-se: “Juízes recuam na proibição de cargos no futebol”. O líder da
Associação Sindical dos Juízes terá estado na origem da proposta de proibição
de juízes desempenharem funções em órgãos de clubes desportivos e/ou respetivas
Sociedades Anónimas Desportivas [SAD]. Clubes mais relevantes e a própria
Federação Portuguesa de Futebol têm juízes nos seus órgãos sociais. Fazem-no,
normalmente, na Mesa da Assembleia Geral, Conselho Fiscal e Disciplinar, Conselho
de Justiça… muitos são juízes conselheiros, com alguns deles jubilados. O
Conselho Superior da Magistratura [CSM] deliberou não proibir, de imediato, a
participação de juízes nas estruturas dos clubes e SAD, e permite que quem
esteja a exercer funções termine o seu mandato em curso. É de acreditar que
estes juízes, com a sua paixão clubística, irão mesmo à bola.
Um artigo do JN[4]
lembra: “Megainvestigação do Fisco ao mundo do futebol já decorre há vários
anos – Os principais negócios do futebol português começaram a ser escrutinados
pela Autoridade Tributária [AT] em 2016, e vários deles levaram à abertura de
inquéritos por parte do Ministério Público [MP], mas nenhum foi ainda concluído
com acusação, não tendo ocorrido, também, liquidação de impostos em falta (…)”.
Trata-se de casos de fraude fiscal e branqueamento e os processos terão sido
organizados em cinco megainquéritos. É evidente que a criação de um qualquer
megainquérito, por mais bem-intencionado que seja, dificulta as conclusões em
tempo útil. Neste caso, não ficará no ar a suspeição se os juízes, ao serviço
dos clubes, serão “conselheiros” das respetivas direções e, paralelamente,
moverem influências externas, p.e., para deixar prescrever os prazos de
processos em curso? Como é possível que tal aconteça? Basta haver o argumento da
escassez de meios humanos das equipas de investigação alocadas à investigação,
tanto do DCIAP – Departamento Central de Investigação e Ação Penal, do MP e da
Direção de Serviços de Investigação de Fraude e Ações Inspetivas, da AT. Ou,
como terá afirmado uma fonte da AT, que “a investigação tem sido prejudicada
por demasiadas mudanças de magistrados nas equipas (,,,)” o que, atendendo à
complexidade, leva a perder o fio à meada, provocando atrasos na sua conclusão.
É de prever que muitos dos juízes, que vão em trabalho aos estádios, acabem por
também ir à bola.
É conhecida uma lista de 45
magistrados, alegadamente convidados por um glorioso clube português para
assistirem aos jogos de futebol no seu estádio. Um deles, desembargador, terá
rejeitado um recurso do hacker Rui Pinto, para anular a medida de coação a que
ficou sujeito – prisão preventiva. No site da TSF[5]
pode ler-se a seguinte afirmação à Lusa, proferida pelo presidente do Supremo
Tribunal de Justiça [CSJ], quando soube que a ex-eurodeputada Ana Gomes citou o
seu nome, como estando incluído nessa lista: “Repudio, em meu nome pessoal e
como presidente do CSJ e do CSM, insinuações gerais de parcialidade da justiça
que têm surgido a este propósito [em relação aos clubes]”, assegurando que
nunca aceitou convites de qualquer clube de futebol para assistir a jogos. Um conselheiro
no Tribunal da Relação de Lisboa [TRL], disse que foi ver um jogo há muitos
anos, que pagou o bilhete e até deixou de ser sócio. O próprio presidente do
TRL, terá garantido ao JN que já não entra num estádio de futebol há mais de 40
anos; “a última vez que fui ao futebol foi nos anos 70, um jogo de juniores, e
como havia pancada nunca mais voltei”, terá afirmado.
Bolas!... Afinal há gente que não vai à
bola!
© Jorge Nuno (2020)
[1] Adaptado
de “Psicologia das Relações Interpessoais”, de M. Odete Fachada (1998)
[2] de 7 de
fevereiro de 2020, assinado por Joaquim Gomes.
[3] Idem,
assinado por Nuno Miguel Maia.
[4] Idem,
assinado por Alexandre Panda e Nelson Morais.
[5] de 03 de
fevereiro de 2020.
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