A DONA
PRUDÊNCIA FOI AO ENTERRO
Há várias décadas conheci uma senhora
que, quando falava, tinha a tendência de aproximar a mão da boca, chegando
mesmo a tapá-la com frequência. Desde sempre, com o habitual desejo em tentar
descodificar a linguagem corporal, fiz algumas conjeturas: resquícios da condição
da mulher durante a ditadura do Estado Novo; insegurança pessoal, perante um
interlocutor com quem não tinha um relacionamento de proximidade e pretendia
deixar boa impressão ou, pelo menos, não defraudar expetativas; forma
inconsciente de suprimir palavras enganosas, na tentativa de ocultar uma ou
mais mentiras – o que, honestamente, não me parecia ser esta a situação.
Lembro-me de ter lido algo semelhante
na interessante obra literária ”Conquistadores – Como Portugal criou o primeiro
império global”, de Roger Crowley[1],
sobre Vasco da Gama, capitão-mor da frota portuguesa envolvida na descoberta do
caminho marítimo para a Índia. Aquando da chegada a Calecute, em 1498, em
representação do rei D. Manuel I, Vasco da Gama foi recebido pelo samorim – o
monarca indiano –, e foi previamente instruído: “[deveria] usar os gestos
corretos, não aproximar-se demasiado, e falar com a mão diante da boca”.
Com o desenrolar da leitura, concluí que se tratava simplesmente de uma questão
de educação e um aspeto cultural daquele país, a respeitar. Mas também poderia
resultar de um eventual conhecimento da peste negra na Europa, que terá
vitimado um terço dos europeus[2],
levando o samurai a ser previdente.
De há uns anos para cá, tem-se visto, seja os deputados e membros do governo
na Assembleia da República, ou jogadores de futebol e equipas técnicas em
campo, a falar com a mão à frente da boca. Neste caso, estará longe de
significar educação, embora, pela repetição insistente, este gesto parece ter
deixado de ser censurável; no fundo e mais uma vez, é tudo uma questão de
prudência, face à capacidade de leitura labial através das imagens televisivas.
Ainda em relação às mãos, é ancestral o
tipo de saudação nas culturas indianas e nepalesas. Intitula-se “namastê” e
consta em juntar as palmas mãos, próximas do peito, com os dedos a apontar para
cima, acompanhado de uma ligeira vénia, significativa de respeito. Não há
contacto físico nessa saudação entre duas ou mais pessoas.
Na cultura ocidental, instituiu-se o
aperto de mão, o abraço e beijo, como forma de cumprimento. Lembra-se o
encontro de 2017, entre Donald Trump e Angela Merkel, em que, perante as
câmaras de televisão, ela estendeu-lhe a mão educadamente e ele ignorou,
deixando-a “pendurada” durante uns bons segundos. Este gesto descortês do
presidente americano correu mundo. Três anos depois, uma peça jornalística na
TV mostrou a chanceler alemã a estender a mão a um eurodeputado, em Bruxelas,
com ele a recusar o cumprimento, mas fazendo questão de sorrir e dizer algo não
traduzido. Afinal, era uma forma de prevenir a propagação do surto do novo
coronavírus, ainda em fase inicial na Europa, e não houve lugar a desconforto
nem polémica.
Por cá, a diretora-geral de Saúde, logo
no início da “crise”, fez recomendações para que os portugueses evitassem os
beijos e abraços. Só faltou usar a estratégia de um funcionário auxiliar,
contratado por uma escola secundária da região de Lisboa, nos anos oitenta do
século passado, que vinha dos serviços prisionais e tinha como tarefa
espontânea separar à força os jovens estudantes enamorados, que se beijavam no
recinto escolar.
Até a Federação Portuguesa de Futebol e
a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, que tanto têm apregoado o fair-play
– associado à ética no desporto – fizeram recomendações para que não houvesse
apertos de mão entre agentes desportivos em campo, nem dar as mãos às crianças
que acompanham os jogadores e equipa de arbitragem no início de cada jogo;
sugeriram que jogadores e árbitros se cumprimentassem apenas com um toque de
cotovelo. Num jogo da primeira Liga, viu-se o respeito por essa orientação; no
final do mesmo, acabaram todos aos abraços e apertos de mão, mas antes assim do
que aos murros e empurrões. Ao longo de
anos, após a apreciação de processos disciplinares instaurados por atos
reprováveis de adeptos, os respetivos Conselhos de Disciplina aplicaram o
castigo de jogos à porta fechada. Alguns desses castigos nunca foram cumpridos
pelos clubes, que recorreram até onde foi preciso, ficando os castigos para as
calendas gregas... Ambas as entidades e os clubes, acataram agora, parcialmente,
as recomendações da DGS e da ministra da Saúde, para a suspensão ou adiamento
de eventos com mais de 5 mil pessoas em áreas abertas ou, no caso do futebol,
as várias competições prosseguirem, mas com estádios vazios, tanto na primeira
e segunda Ligas, e também em alguns jogos do Campeonato de Portugal. A
finalidade é evidente: evitar o contágio
de milhares de espetadores no mesmo recinto.
Marcelo Rebelo de Sousa – o presidente
dos afetos – que tanto se desdobrava em abraços e beijos, veio dizer que só passaria
a dar beijos a quem pedisse. Pouco depois, anunciou que, por ter estado em
contacto com estudantes de um concelho do Norte, onde se registaram casos
“positivos” e, embora não tivesse sintomas nem contraído o COVID-19, iria ficar
em casa, de quarentena. Estaria a fazer a apreciação do Orçamento de Estado, e sobra-lhe
algum para tempo para se dedicar à leitura – que, como se sabe, tanto gosta!
Afirmou que este isolamento social voluntário serviria de exemplo para os
portugueses.
Como diz o ditado português: “O seguro
morreu de velho e a dona prudência foi ao enterro”.
© Jorge Nuno (2020)
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