09/04/2020

Crónicas Leves: DE REPENTE...


DE REPENTE…

De repente… os casos fraturantes no país, causadores de polémicas e descontentamento aguerrido, desaparecem como que por magia.

De repente… deixa de se falar:
– na extração de lítio em áreas protegidas, que apresenta consequências nefastas para populações e ambiente;
– no futuro aeroporto internacional do Montijo, a criar na Reserva Natural do Estuário do Tejo, e nos restantes aeroportos do país, que habitualmente nos picos de tráfego, e até em condições normais, “rebentam pelas costuras”;
– nos transportes públicos, como motivo de queixa sistemática, por serem suprimidos, insuficientes, obsoletos ou sem condições para absorver tantos passageiros, após redução dos custos dos passes sociais;
– no preço dos combustíveis, pelas piores razões, que subia paulatinamente e era fruto de receita fiscal abusiva, tornando-o dos mais caros da Europa;
– nas cidades sobrelotadas de veículos automóveis, com custos de estacionamento e fiscalização provocatórios e exagerados, e nos efeitos decorrentes da poluição atmosférica;
– nas cobranças elevadas nas portagens das autoestradas, incluindo aquelas em que era suposto, desde o início, serem “sem custos para o utilizador”, mas que levam milhões de euros diários para os bolsos de alguns, que em nada contribuem para a riqueza do país;
– na construção desordenada junto à orla costeira, com projetos aprovados sob suspeita de corrupção, mesmo sabendo da inevitável subida da água do mar;
– no consumismo desenfreado e a viver-se acima das possibilidades, com um crescente aumento de famílias endividadas;                                                                            
na eutanásia, que tem inflamado a sociedade portuguesa e a vida política num esgrimir de argumentos, ficando agora como que num silêncio de casa mortuária;
– no futebol e violência correlacionada, que arrasta paixões exacerbadas, a ocupar imensas horas de programação diária nos canais de televisão noticiosos e desportivos;
nos lóbis que imperam e comandam nos gabinetes da democracia representativa;
nos preços especulativos na habitação, hotelaria e restauração, entre outros, em boa parte por Portugal ser considerado o melhor destino turístico europeu, pelo terceiro ano consecutivo;
– nos casos mediáticos de políticos, banqueiros, gestores, juízes, militares, agentes desportivos, hacker Rui Pinto (que trouxe à luz do dia negócios escuros)… todos com processos a decorrer na justiça;
– nos muitos milhares de milhões de euros engolidos, pela banca, aos vários Orçamentos de Estado e esses bancos a ser engolidos por tubarões;
(…)

Por enquanto, ainda não se descobriu qual a resposta para as seguintes questões: e agora, banca, qual vai ser o teu papel? entras em cena, pelas melhores razões, és engolida por tubarões ainda maiores, abres insolvência, ou esperas esta oportunidade para continuar a sangria?  

Mas de repente… com alguma incredibilidade, descobre-se que:
já não há atividade cultural e desportiva; hotéis estão às moscas; alguns restaurantes só funcionam em regime de takeaway; comércio, indústria e serviços públicos e privados encontram-se encerrados; adotam-se e criam-se regras para o teletrabalho; suprimem-se transporte públicos, que ficam confinados a um terço da lotação; cancelam-se ligações aéreas; fecham-se fronteiras… em suma: o país para;
– as pessoas “imprescindíveis”, com empregos seguros, afinal ficam na contingência de não o serem, podendo engrossar as listas de desempregados, ou as suas empresas entrarem em situação temporária de lay-off, com redução de horário e perda parcial de vencimento;     
– há fragilidades grosseiras nos serviços públicos de saúde, por falta de investimento e de preparação para lidar com situações epidémicas, negligenciando a saúde e a vida, não só dos cidadãos, como dos próprios profissionais de saúde;
– a valiosa Constituição da República Portuguesa, em parte, é metida na gaveta, passando a considerar-se crime de desobediência quando qualquer pessoa não respeite o isolamento social com caráter obrigatório, logo, quando é metida compulsivamente em casa;
as pessoas, a solidariedade e a família passam a ser o mais importante e, finalmente, já há tempo para a família, pese embora a constatação de dificuldades no relacionamento prolongado dentro de portas e da incompreensão, por parte de crianças, do por quê da falta de beijos e abraços, ou da razão de não poderem ir a casa dos avós;
– apesar da debandada de muitos voluntários, houve acolhimento, mesmo que temporário, em abrigos para os sem-abrigo, continuando a ser-lhes prestado auxílio;
– prolifera o bom-humor nas redes sociais, aligeirando a carga emocional;
é evidente o reconhecimento da população pelo trabalho dos profissionais de saúde;
– a vida é um bem a preservar e cada um de nós tem, igualmente, o dever de preocupar-se com o bem-estar coletivo;
– após o enorme esforço de vários países da União Europeia [UE] que levou à criação do Tratado Schengen, com abolição do controlo de fronteiras internas dos Estados-membros e de outros Estados Associados, é a Comissão Europeia [CE] que se vê obrigada a mandar encerrar todas as fronteiras, perante os efeitos deste inimigo invisível. De repente… quando até há poucas semanas entravam, diariamente no espaço europeu, milhares de migrantes oriundos do Médio-Oriente e África, agora, com perplexidade e aflição, veem-se barrados cidadãos comunitários nas fronteiras dos mesmos Estados-membros a que pertencem; 
 – é nesta ambiência de mar revolto que se descobrem os verdadeiros timoneiros e espera-se que caiam, desmascarados, os líderes mundiais, estúpidos, populistas e inconscientes.

O diretor-executivo do Programa das Nações Unidas para o Ambiente referiu, em 2015, com base em estimativas da OMS, que “todos os anos a poluição do ar causa sete milhões de mortes prematuras no mundo”. Sabe-se que destes, um milhão de mortes prematuras ocorria na China e, em França, cerca de 48.000. É afirmado também que “para limitar o aumento da temperatura global [no planeta] a 1,5 º C acima da era pré-industrial, seria preciso reduzir em 7,6% ao ano as emissões de gases com efeito de estufa”. Os especialistas entendem que em 2020 esse número pode ser atingido, baseado em estudos e imagens de satélite da NASA e da Agência Espacial Europeia. Estas imagens mostram-nos, claramente, quais os efeitos colaterais desta pandemia do Covid-19 e das medidas drásticas adotadas pelos países mais atingidos: a despoluição “forçada” pela inatividade do setor industrial e descida drástica da circulação aérea, marítima e terrestre.

François Gemenne[1] faz uma afirmação que, até certo ponto, parece surpreendente: “Por incrível que pareça, acho que o número de mortes devido ao coronavírus pode acabar por ser um mal menor, dadas as [possíveis] mortes por poluição do ar”.

Anthony William, refere[2]: “No século XX, a medicina fez grandes progressos na área da virologia… mas tudo isso foi varrido para baixo do tapete. Como não havia financiamento para levar essas descobertas até ao nível seguinte, deixaram esses médicos espantosos à deriva quando as suas descobertas acerca de certos vírus foram, em grande medida, ignoradas”.

De repente… a CE, que tudo tem feito para ter um controlo absoluto sobre os orçamentos de cada Estado-membro, fazendo imposições, algumas mesquinhas e inadequadas à realidade do país, agora dá carta branca a cada um desses Estados para gastar o que for preciso no combate ao novo coronavírus. Por antecipação, seria bem mais vantajoso, económica e socialmente, que a estratégia de investimento da UE tivesse abrangido a adequada investigação em virologia.

De repente… a população, apesar de preocupada, tem melhor qualidade do ar; e a mãe natureza agradece.

De repente… questionamo-nos:
– não estaria mesmo a ser necessário este momento de paragem forçada, para pensar?
– não se estará a escrever direito por linhas tortas?

Tudo será diferente pós Covid-19. E a solução passa por cada um de nós. Renasçamos com maior consciência cívica, mais interventivos, mais solidários, mais humanos!

© Jorge Nuno (2020)


[1] Diretor do Observatório Hugo.
[2] In “Médico Médium – Segredos da Cura de Doenças Crónicas e Misteriosas”, Ed. Pergaminho.

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