ESTRANHO MUNDO
Parte I
Meio ambiente muito menos poluído; cidades
desertas e animais selvagens a passear-se nelas; uma vaca no telhado; mortos a
entrar nas contas dos recuperados; libertação de 10% dos reclusos existentes em
Portugal e obrigatoriedade de levantamento de dinheiro no banco com máscara; fraude
de milhões de euros com máscaras de proteção individual que nunca existiram;
Máfia a perfilar-se para substituir o Estado italiano na proteção do setor
empresarial no sul do país; preço do crude com uma descida vertiginosa de 306%[1] nos Estados Unidos da
América [EUA], a ficar em valores negativos, devido ao mundo inundado de
petróleo não consumido, e produtores de petróleo a pagar 37,60 dólares por
barril, que eles próprios vendem… tudo isto, em plena pandemia.
É incrível a rapidez com que as rotinas, hábitos
e aspetos económicos, sociais e culturais enraizados, e até o tão necessário bom
senso, estão a ser alterados. Regista-se, pela positiva, um forte aumento de
genuínos atos solidários, de altruísmo, e alegria em partilhar, sem esperar
nada em troca. Pela negativa, mantêm-se alguns esquemas a pender para o ditatorial,
de pressão, controlo de influência e instrumentalização de instituições e,
outros, fraudulentos, para a obtenção de proveitos à margem da lei e dos mais
elementares princípios éticos, quando se esperavam melhorias na mudança de
atitude.
A principal potência económica e militar –
EUA – pela voz do seu presidente, Donald Trump, pretendeu comprar a
exclusividade da vacina que viesse a tratar ou abrandar a expansão da doença
Covid-19, de modo a tirar vantagens económicas com a mesma. Constatou-se que o
astronómico investimento no seu poder bélico de pouco tem servido para combater
este inimigo invisível; prova disso, é o facto de entre os 4.800 membros da
tripulação do porta-aviões “Theodore Roosevelt” – quando 92% dessa mesma
tripulação já estava testada – surgirem 550 testes positivos, que levou à
demissão do comandante, pelo facto de ter pedido a evacuação de uma parte
significativa dos militares infetados. É o país com maior taxa de mortalidade
mundial, provocada por este vírus, quando era suposto ser o mais bem preparado
para o enfrentar. O seu presidente (talvez a pensar nas próximas eleições
internas), pediu aos militantes do seu partido para se manifestarem a favor do
“regresso da economia”, contra os governadores dos Estados sob influência do
partido opositor, por estes estarem a favor do isolamento social e valorizarem
a vida das pessoas, secundarizando a economia; hostilizou o regime chinês,
abrindo uma “guerra comercial” prejudicial para ambas as partes e para o mundo,
afirmou que esse regime tem vindo a ocultar os dados reais desta pandemia e,
agora, pede-lhes desesperadamente ajuda. Acha que é hora de despedir Anthony S.
Fauci – diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infeciosas, e
principal especialista na matéria ao serviço do governo –, por ter corrigido o
presidente durante conferências de imprensa e fazer recomendações opostas às
intenções do presidente. Como se não bastasse, o presidente atacou a
Organização Mundial de Saúde [OMS], acusando-a de má gestão, por não avaliar o
risco da pandemia, por encobrir falhas e por ter beneficiado a China, e anunciou
a suspensão do financiamento de cerca de 500 milhões de dólares a esta
importante Organização, quando esta mais precisa de apoios.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, afastou
do cargo o seu ministro da Saúde – o médico Luiz Henrique Mandetta –, por este
seguir rigorosamente as orientações da OMS e opor-se à ideia do presidente, que
entende não haver necessidade de isolamento social e não encontra justificação
para que a economia pare. Fala em “histeria” e acha que as medidas adotadas
contra o novo coronavírus representam “extremismo”. A pretexto da política
preconizada pela OMS, atacou, verbalmente, governadores e todos aqueles que
defendem o confinamento e muita prudência no regresso da atividade económica; incentivou
manifestantes contra os respetivos governadores com ideias opostas à sua; fruto
deste incentivo, em seis dessas capitais, viu-se grande quantidade de pessoas
nas ruas a manifestarem-se – com o presidente numa delas – complicando o
controlo sanitário nessas regiões, o que se tornou preocupante, uma vez que só
a cidade de São Paulo tem 11,8 milhões de habitantes, mais do que a população
de Portugal.
O presidente chileno – Miguel Juan
Sebastian Piñera – surpreendeu o mundo, ao anunciar na televisão que os mortos,
pela pandemia, entram nas contas dos doentes recuperados, uma vez que já não
contagiam ninguém. Como se não bastasse, quase em simultâneo, foi referido que
irão ser libertados – supostamente, para conter o avanço da pandemia –, mais de
100 condenados por crimes contra a humanidade, pelo envolvimento em mais de
3.400 casos de desaparecimento, assassinato, tortura ou sequestro, ao tempo,
colaboradores do regime ditatorial de Augusto Pinochet.
Em Portugal, o presidente da República,
sob proposta do Governo, indultou cerca de 1.200 presos – representando cerca
de 10% do total de reclusos existentes – saindo, a pretexto de prevenir o
contágio nas prisões, como se se tratasse de uma extensão, alargada, de
licenças precárias. Serviu de chacota e, também, indignação de grupos de
cidadãos, mas o curioso foi observar que houve reclusos, atingidos por esta
iniciativa, a recusar sair da prisão. Contrariando afirmações recentes do
presidente da República, foi anunciada a saída, com licença precária de 45 dias,
por ato administrativo do Diretor-geral dos Serviços Prisionais (sem
intervenção de um juiz do Tribunal de Execução de Penas), de um conhecido
homicida, condenado a 23 anos de prisão, no processo Noite Branca; criada
estupefação e mal-estar, a licença acabou por ser suspensa in extremis,
devido a um processo pendente por agressão do recluso a guardas prisionais.
Enquanto o primeiro-ministro António Costa
elogiava a capacidade de resiliência, o acatamento das orientações da
Direção-geral de Saúde e a unidade dos portugueses nestes momentos difíceis
para a vida do país e dos próprios cidadãos, ele próprio acabou por dividir os
portugueses.
Creio que os portugueses entenderão, por
exemplo, ver pela primeira vez: o papa Francisco sozinho na praça de São Pedro,
no Vaticano, em pleno domingo de Páscoa ou o recinto de Fátima estar encerrado,
a crentes e não crentes, no dia 13 de maio; não haver quaisquer desfiles oficiais,
promovidos pelas centrais sindicais, e festas no Dia do Trabalhador; comemoração
de simples aniversários em família alargada; funerais sem acompanhantes e pouquíssimos
familiares; ter de ficar em casa, privado do direito constitucional de
liberdade, e não poder sair à rua, com liberdade de escolha do destino… Não
entendem, ou é difícil entender, como é possível anunciar, nesta altura, a
presença de 300 pessoas num espaço fechado – a Assembleia da República – entre
deputados e convidados (a que se juntam 100 funcionários no apoio logístico),
na comemoração oficial do 46.º aniversário do “25 de abril”. Perante a
indignação surgida de imediato – que o presidente da AR diz não entender –,
esse número foi reduzido para 130, e logo passou para 100, quando se esperava
que fosse anunciado o seu cancelamento. Não houve comemoração oficial na AR nesta
data – importante para os portugueses –, nos anos de 1983, devido a marcação de
eleições para esse dia, 1992 e 1993, por opção do ex-presidente Mário Soares e,
em 2011, pela dissolução da AR e calendário eleitoral. As motivações para não
as haver em 2020 são bem maiores, e seria um importante sinal positivo aos
portugueses. Se naqueles quatro anos não havia evidências que a democracia
estivesse em perigo, agora também não; e se estivesse, quem ocupa tão
importantes cargos de Estado e se apregoa “defensor da democracia”, com estas atitudes
irrefletidas, de autista ou de teimosia, acaba por dar força aos populistas e
aos que pretendem um regresso ao passado e, naturalmente, espreitam todas as
escorregadelas, como oportunidades para minar o terreno da democracia e
beneficiar com isso. O presidente da “Associação 25 de Abril” – Vasco Lourenço,
um “capitão de abril” – lamenta o “oportunismo disfarçado” de quem contesta as
comemorações na AR, mas ele próprio contesta o elevado número de pessoas
presentes e diz que não estará presente.
É, no mínimo, estranho ver os portugueses “presos”
em casa e os representantes da nação, e convidados, a comemorar a liberdade.
(Continua em ESTRANHO MUNDO II)
© Jorge Nuno (2020)
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