ESPADACHINS E DEMOCRACIA
Rapidamente, em poucas semanas, nos
esquecemos que:
– na Ilha da Madeira, com o setor
turístico e respetivos trabalhadores a passarem por dificuldades, sem os
habituais navios de cruzeiro nem turistas, o fogo de artifício da passagem de
ano teve brilho por uns breves sete minutos e um custo estimado de um milhão de
euros, literalmente queimando dinheiros públicos da Região Autónoma e causando
ajuntamentos públicos indesejados;
– David Neeleman, um dos principais
acionistas da TAP, exige uma indemnização multimilionária ao Estado por
prejuízos causados pela renacionalização da companhia aérea, a envolver
“biliões de euros”, com processo a poder vir a arrastar-se nos tribunais por
vários anos, ficando a “dívida” para futuras gerações e outros governantes,
mesmo que se tenha dito que a TAP já tinha problemas financeiros antes da
crise, que “estamos a gastar tanto com a TAP [com dinheiro público] como
gastámos com a saúde[1]” e se preverem “perdas de
6,7 mil milhões de euros até 2025”[2];
– houve fortes suspeitas de favorecimento
de consórcios e não respeito pelas áreas protegidas em que se inserem as zonas
definidas para eventual exploração do lítio e, agora, algo idêntico no
“hidrogénio verde”, a envolver governantes;
– o hacker Rui Pinto, foi votar, antecipadamente, na candidata que o apoiou (antes, durante e depois de ser preso), tendo publicado o boletim de voto no Twitter, podendo este gesto – ao dar conhecimento do seu sentido de voto – valer-lhe punição «com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias[3]» e, se calhar… já nem nos lembrávamos que ele assumiu a responsabilidade de ter fornecido, à Plataforma para Proteção de Whistleblowers em África, informação pertinente sobre a fortuna de Isabel dos Santos, cujas revelações aceleraram a “queda do império”, assim como já tinha entregue informação comprometedora de jogadores, agentes e clubes de futebol, a um consórcio de jornalistas independentes, que valeu a recuperação de muitos milhões ao fisco de alguns países, mas não em Portugal.
Podendo ser definido “whistleblowers[4]” como «denunciante que fornece informação sobre um perigo, risco, má conduta ou atividade ilegal de pessoas, grupos ou organizações, expõe publicamente essas informações, esperando iniciar um processo de regulação, controvérsia ou mobilização coletiva». Daí que o trabalho de jornalismo, particularmente o de investigação, tenha uma importância estratégica para apuramento da verdade e, esta, costuma ser incómoda. Daí que se vá tentando silenciar os jornalistas. Em Portugal – país tido como democrático –, fomos surpreendidos pelos diretores de vinte órgãos de comunicação social [OCS], que se uniram pela liberdade de imprensa, numa tomada de posição conjunta, em protesto pela atuação do Ministério Público [MP], ocasionada pela vigilância de dois jornalistas, sem autorização de um magistrado. Subscreveram um documento[5], como alerta, pois poderá estar «em curso um subtil ataque à liberdade de imprensa». Na semana anterior, soube-se que, há dois anos, uma procuradora do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, ordenou à PSP que vigiasse um jornalista da revista “Sábado” e um ex-jornalista do “Correio da Manhã”, que viriam a ser alvo de vigilância policial e fotografados na via pública, para saber com quem contactavam no universo dos tribunais. Escreveu este grupo de diretores de OCS: «A liberdade de expressão, a garantia do sigilo profissional e a garantia de independência dos jornalistas (art.º 6.º do Estatuto dos Jornalistas) bem como a proibição de subordinação da dita liberdade de expressão a qualquer tipo ou forma de censura, são pilares fundamentais da constitucionalmente consagrada liberdade de imprensa (art.º 38.º da CRP) (…) sem direito de sigilo das fontes, não há informação livre, e não havendo informação livre, não há democracia. (…) Não é admissível, a nenhum título, a espionagem privada, também não pode ser admissível o MP investigar fora das regras constitucionais e legais vigentes, travestindo de lícito e admissível o que de raiz é ilícito e inadmissível (…) não podendo ser vistos como meios normais de “policiamento” da sociedade, sob pena de se instalar um clima de medo generalizado por parte de todos os cidadãos, em especial dos responsáveis por informar a sociedade (como o são os jornalistas), o que culmina necessariamente no seu amedrontamento, coação, ou mesmo instrumentalização (…) Por isso, é condição de um Estado de Direito Democrático e Livre, uma imprensa livre e independente».
Quem viu “Cyrano de Bergerac” – sendo Gerard Depardieu o principal protagonista –, poderá ter ficado com a ideia de mais um filme de aventuras ou de espadachins, com um tipo que se destaca por ser narigudo. Mas é muito mais do que isso! Encarnado na personagem principal, poeta muito apreciado entre os pares e população, escrevia e difundia as verdades incómodas, até que foi aconselhado por um homem da sua confiança a deixar de ser desagradável com o poder [numa alusão ao regime do Cardeal Richelieu]. Aí, muito empolgado, pergunta: «O que devo fazer? Procurar um protetor poderoso, aceitar ter um senhor? E como uma hera obscura que trepa tronco acima, e faz dele um tutor, lambendo-lhe a casca?! Subir pela astúcia em vez de me elevar pela força? Não, obrigado! Dedicar, como todos fazem, versos aos financeiros? Transformar-me num palhaço, na esperança vil de ver, nos lábios de um ministro, nascer um sorriso que não seja sinistro? Não, obrigado! Almoçar todos os dias um sapo? Ter a barriga gasta de tanto rastejar? Dobrar-me até abaixo para os pés beijar? Não, obrigado! Só encontrar talento em gente frouxa? Ser aterrorizado por certos bisbilhoteiros e dizer sem cessar: “Desde que o meu nome apareça nas páginas do Mercure François!” Calcular, ter medo, empalidecer! Redigir placets, fazer-se apresentar? Não, obrigado. Não, obrigado!». Já sozinho, divagava… «Mas cantar, sonhar…, rir, passear, estar sozinho…, ser livre… ter um olho que sabe olhar bem, uma voz que vibra… Colocar, quando se quer, o chapéu ao contrário, bater-se por isto e por aquilo… o fazer um verso. Trabalhar sem preocupações de glória ou de fortuna e viajar, inclusivamente… até à lua. Triunfante por acaso, conservando o próprio mérito, recusando-se a ser hera parasita, mesmo quando somos o carvalho… ou a tília. Não trepar muito alto, talvez… Mas lá chegar sozinho».
Numa democracia procura-se a verdade e a
transparência, esgrimam-se argumentos, não entram estratégias para silenciar
vozes incómodas. Nesta democracia em concreto – particularmente por ainda há
poucos meses ser considerada um caso de sucesso financeiro e de combate à pandemia
–, não se pode aceitar que:
– tenha o maior número de casos, em todo o
mundo, de infeção e de óbitos por covid-19, em cada 100.000 habitantes;
– candidatos e partidos políticos cantem
vitória, após o mais recente ato eleitoral, quando a adesão do eleitorado representa
uns meros 39,5 %.
©
Jorge Nuno (2021)
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