PURIFICAR
VALORES DA NOSSA SOCIEDADE?
Parte III
(englobada numa crónica
com quatro partes)
No livro “Mário Soares – Uma Vida[1]”, onde condensa vários testemunhos na primeira pessoa, o autor refere que Mário Soares, como ministro dos Negócios Estrangeiros, estava encarregado por Spínola, para “negociar”, no primeiro encontro em Dakar, com Aristides Pereira – que representava o PAIGC[2], na qualidade de secretário-geral –, mas pretendia que representasse apenas um gesto de boa vontade e não passasse de “chá e simpatia”, mesmo sabendo do reconhecimento da independência da Guiné, pela ONU e por mais 79 países, no ano anterior.
Não
confiando em Mário Soares, pediu a um militar da sua confiança – Almeida Bruno
– para o acompanhar. Este mesmo, teria dito a Spínola: «Eu desconfio deste
Soares! (…) é um exilado que não percebe de África e deve estar feito com os
comunistas». Segundo Mário Soares, até o próprio Álvaro Cunhal terá dito que
era “prematuro” falar em independência da Guiné e que se deveria avançar com
prudência, na questão da descolonização. Duas semanas depois, em Londres,
deu-se início à «negociação direta entre o Estado português e o PAIGC», mas com
Spínola a não querer o acordo que levasse à independência e descolonização,
apenas aceitava “falar” em autodeterminação – queria
ganhar tempo, e apostava num referendo sobre o futuro político da Guiné e Cabo
Verde –, enquanto que o PAIGC queria que Portugal reconhecesse de imediato a
independência da Guiné. Em agosto de 1974, aquando da visita do
secretário-geral da ONU – Kurt Waldheim – a Portugal, o então chefe de
Estado-Maior-General das Forças Armadas – Francisco Costa Gomes – ordenou a
retirada das tropas portuguesas na Guiné “o mais rápido possível”, dando um
prazo até final desse ano.
Prosseguiram
as negociações em Argel. Os argumentos, por parte do PAIGC, eram válidos e
fortes: se Portugal não reconhecesse o PAIGC como único interlocutor na
Guiné-Bissau – dado que a sua legitimidade provinha da luta armada, tal como a
legitimidade dos negociadores portugueses vinha do movimento militar, que
originou revolução a 25 de abril – não assinariam a paz e continuariam em guerra,
realçando que já tinham um domínio sobre dois terços do território guineense.
Assinado
o acordo, com tratamento à parte do caso de Cabo Verde, deu-se uma inevitável
precipitação de acontecimentos.
Seguiu-se
Moçambique, com Soares a ser “vigiado” por Otelo Saraiva de Carvalho, numa
conferência realizada em Lusaka, com Keneth Kaunda, presidente da Zâmbia, no
papel de mediador. Como delegado da Frelimo, Joaquim Chissano, mas com a
presença de Samora Machel. A história repetia-se: A Frelimo só admitia «assinar
o cessar-fogo contra o seu reconhecimento como único interlocutor e aceitação
do princípio de independência».
Terá
sido o próprio Otelo a dizer, mais tarde, que «o Mário Soares só queria o
cessar-fogo» – tal como desejava Spínola –, mas com
Otelo a dizer a Soares: «Senhor doutor, não ligue ao que diz o velho, que ele
já não manda nada». Na verdade, terá sido a Comissão Coordenadora do MFA[3] a tomar as iniciativas
pró-independentistas, com Melo Antunes a acompanhar e fomentar a
descolonização, já no papel de ministro de Estado, com competências para a
descolonização.
Bem
mais tarde, Diogo Freitas do Amaral[4] disse ser «(…) uma
injustiça histórica acusar Mário Soares pela forma como decorreu a
descolonização: que poder negocial tem o ministro dos Negócios Estrangeiros de
um país, cujas forças armadas se degradam a ponto de depor e entregar as armas
ao “inimigo”, sem autorização dos comandos militares?»
Logo após o surgimento do programa do MFA
(com foco nos 3 D’s: descolonização; democratização; desenvolvimento), Mário
Soares disse que queria:
– a descolonização possível (para afirmar
mais tarde: «Foi um milagre a descolonização que se fez»);
– a democratização, com a instauração de
uma democracia pluralista (viria a ser o garante dessa pluralidade);
–
o desenvolvimento, com entrada na CEE[5] (tendo sido o grande
impulsionador dessa adesão de Portugal às então chamadas Comunidades
Europeias, cuja assinatura do tratado de adesão se deu em 1985, quando era
primeiro-ministro, oito anos após um processo negocial difícil, e integração
oficial em 1 de janeiro de 1986).
A
história segue o seu rumo. Pode-se adorar, detestar… até mesmo ficar
indiferente. Mas querer entrar por uma via, como se tratasse de uma necessidade
de purificação dos valores da sociedade, tendo por base supostas boas
intenções, com evidente suporte na ignorância e desconhecimento da realidade…
soa a histeria e não dá os resultados esperados.
(continua
na parte IV, de IV)
©
Jorge Nuno (2021)
[1] de
Joaquim Vieira, editado por Esfera do Livros Editora
[2] Partido
Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde
[3]
Movimento das Forças Armadas
[4] Na
altura, professor de Direito e fundador do partido CDS – Centro Democrático e
Social, com ideologia democrata-cristã
[5]
Comunidade Económica Europeia.
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