04/07/2012

O Canal Zen (Pequeno Conto]






O CANAL ZEN

Ela sentou-se no seu sofá, para uma tarde de alcatifa a ver televisão, já que o dinheiro, a sua condição física e a imaginação pareciam não dar para mais. Com a sua “Fantastic Life”, já com canais HD, a custar os olhos da cara, resolveu fazer um “zapping” nos canais, sendo rápida a fugir às notícias. De muito premir o botão + da programação, no comando da box, fixou-se, algum tempo, num canal de imagem quase fixa. Lentamente, foi chegando o tronco à frente e parecia estar a gostar de ver aquela paisagem idílica. Ajeitou os óculos, viu o nome do canal e não se conteve:
– Canal Zen? Ai valha-me Deus! Mas como é que nunca tinha reparado nisto?
– Oh… D. Lulu, não admira!... A senhora está quase sempre a ver os canais portugueses ou brasileiros!... – Disse-lhe a vizinha de há muitos anos, desempregada e já sem idade para arranjar emprego, que aceitava umas gratificações, umas lembranças e até uns produtos da horta que a filha da D. Lulu lhe trazia, por ir lá a casa várias vezes ao dia, para olhar pela mãe.
A D. Lulu, como que não ouvindo ou não fazendo caso do que ouviu, manteve o olhar fixo no ecrã do televisor. A paisagem ainda era a mesma, com uma praia de areia dourada e um vaivém incessante de pequeníssimas ondas que se perdiam para logo surgirem outras com a mesma cadência. A música de fundo parecia indiana, repetitiva, mas suave e agradável. Chega-se atrás, como que decidida, baixa um nadinha o som, pousa o comando e recosta-se decidida a ver o que aquilo ia dar. Aquele marulhar das ondas e aquela música esquisita parecia que a deixava mais esquisita que a música esquisita, deixando-a como que precocemente extasiada, hipnotizada, em transe… à medida que ia visualizando as imagens. A concentração naquele tipo de imagem serena, com câmara fixa, e acompanhada de sons repetitivos, tal como as ondas, bloqueava-lhe as sensações externas. Sem distrações visuais, com sinal forte sem distorção e com o nível de “ruído” lentamente a decrescer, viu reforçados determinados estímulos, em que o ecrã funcionava como desencadeador. Nesta ambiência, sentiu fixar-se num “campo uniforme”, em que descontraídos os músculos do corpo e estimulada a circulação sanguínea, caiu num estado de relaxamento induzido, onde tudo pode acontecer.
Como que em transe, sem ter consciência, logo, sem se preocupar no que pensava ou com o que dizia, dizia, mas dizia mesmo sem pensar, quase em surdina, o que dava para ouvir:
– Faço a minha defesa percetual! Não ouço o que não quero ouvir! Não ouço o que não quero ouvir! – Repetindo-se até à exaustão durante três minutos, com este monólogo estranho! Sossega por uns instantes e recomeça a tendência para falar baixo, ainda com alguma agitação:
– Os meus pensamentos… era eu que os criava! Alguém me roubou os pensamentos! Se calhar os pensamentos nunca foram meus!... Os pensamentos não me pertencem! Os pensamentos chegam-me nos sonhos! Mas agora estão a ir nos sonhos! –Ia repetindo as frases, aleatoriamente, mas acabando sempre em “Mas agora estão a ir nos sonhos!” E de todas as vezes que repetia esta frase, abrandava a agitação, entrando finalmente num relaxamento profundo.
Deixou finalmente de sentir os problemas de incontinência e de intestinos, perturbações do sono e de memória, diabetes, artrite reumática, anemia, hipertensão e espondilose degenerativa lombar que já a acompanhava há uns anos, como uma sombra – já para não falar na parte sexual, própria desta idade! Tudo isto sem comprimidos, supositórios, pomadas ou injeções, receitadas no Posto de Saúde, ou sem chás e outras mezinhas, feitas com desvelo pela filha, quando a visitava, ou até sem a ida ao bruxo nem ao endireita (a D. Lulu acreditava há uns anos, que um dos dois lhe havia de aliviar as dores...)!
Nestes momentos “iluminados”, livre dos males físicos, a mente da D. Lulu vagueia e leva-a aonde entender que deve ir e estar com quem quiser estar!
Vê-se numa festa com carrocéis, primeiro agarrada ao pescoço da girafa, intervalando com uma fartura gordurosa, e depois na montanha russa. Sempre que havia um “looping” ou já na descida veloz… ouvia-se a D. Lulu, no sofá, gemer de excitação, deixando sair um bem prolongado aaaaaaiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! inclinando-se, sem saber para onde, até começar nova subida. Puro divertimento e libertação! Muitas brincadeiras, risos e mais risos, no convívio de muitas pessoas conhecidas e amigas, que a sua cabeça já tinha esquecido, por há muito não as ver. Havia também uma multidão de gente desconhecida. Destaca-se a figura de um homem com boa presença que lhe lançou um olhar fulminante. Quase sem saber como, viu-se numa relação íntima, intensa. A D. Lulu agarrada a uma das almofadas maiores do sofá, estava numa pose nunca vista e gemia…gemia, próxima do êxtase!
A vizinha, aflita, toca-lhe várias vezes no braço:
– D. Lulu!... D. Lulu!... D. Luluuu!... Oh D. Luluuuuuu!... A senhora está bem? Está bem? Ai valha-me Nossa Senhora… como ela está agarrada à almofada… se fosse o gato esganava-o! Acorde que está ter pesadelos! Olhe a sua coluna… que dá cabo dela! Ponha-se direita que eu vou fazer-lhe um chazinho! Ande lá que tem que tomar agora o seu comprimido para logo à noite dormir bem! Quem é amiga, quem é?


© Jorge Nuno (2012)

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