O CANAL ZEN
Ela sentou-se no seu sofá, para uma
tarde de alcatifa a ver televisão, já que o dinheiro, a sua condição física e a
imaginação pareciam não dar para mais. Com a sua “Fantastic Life”, já com
canais HD, a custar os olhos da cara, resolveu fazer um “zapping” nos canais,
sendo rápida a fugir às notícias. De muito premir o botão + da programação, no
comando da box, fixou-se, algum tempo, num canal de imagem quase fixa.
Lentamente, foi chegando o tronco à frente e parecia estar a gostar de ver
aquela paisagem idílica. Ajeitou os óculos, viu o nome do canal e não se
conteve:
– Canal Zen? Ai
valha-me Deus! Mas como é que nunca tinha reparado nisto?
–
Oh… D. Lulu, não admira!... A senhora está quase sempre a ver os canais
portugueses ou brasileiros!... – Disse-lhe a vizinha de há muitos anos,
desempregada e já sem idade para arranjar emprego, que aceitava umas
gratificações, umas lembranças e até uns produtos da horta que a filha da D.
Lulu lhe trazia, por ir lá a casa várias vezes ao dia, para olhar pela mãe.
A
D. Lulu, como que não ouvindo ou não fazendo caso do que ouviu, manteve o olhar
fixo no ecrã do televisor. A paisagem ainda era a mesma, com uma praia de areia
dourada e um vaivém incessante de pequeníssimas ondas que se perdiam para logo
surgirem outras com a mesma cadência. A música de fundo parecia indiana,
repetitiva, mas suave e agradável. Chega-se atrás, como que decidida, baixa um
nadinha o som, pousa o comando e recosta-se decidida a ver o que aquilo ia dar.
Aquele marulhar das ondas e aquela música esquisita parecia que a deixava mais
esquisita que a música esquisita, deixando-a como que precocemente extasiada,
hipnotizada, em transe… à medida que ia visualizando as imagens. A concentração
naquele tipo de imagem serena, com câmara fixa, e acompanhada de sons
repetitivos, tal como as ondas, bloqueava-lhe as sensações externas. Sem
distrações visuais, com sinal forte sem distorção e com o nível de “ruído”
lentamente a decrescer, viu reforçados determinados estímulos, em que o ecrã
funcionava como desencadeador. Nesta ambiência, sentiu fixar-se num “campo
uniforme”, em que descontraídos os músculos do corpo e estimulada a circulação
sanguínea, caiu num estado de relaxamento induzido, onde tudo pode acontecer.
Como que em transe, sem ter consciência,
logo, sem se preocupar no que pensava ou com o que dizia, dizia, mas dizia
mesmo sem pensar, quase em surdina, o que dava para ouvir:
– Faço a minha defesa
percetual! Não ouço o que não quero ouvir! Não ouço o que não quero ouvir! – Repetindo-se
até à exaustão durante três minutos, com este monólogo estranho! Sossega por
uns instantes e recomeça a tendência para falar baixo, ainda com alguma
agitação:
–
Os meus pensamentos… era eu que os criava! Alguém me roubou os pensamentos! Se
calhar os pensamentos nunca foram meus!... Os pensamentos não me pertencem! Os
pensamentos chegam-me nos sonhos! Mas agora estão a ir nos sonhos! –Ia
repetindo as frases, aleatoriamente, mas acabando sempre em “Mas agora estão a
ir nos sonhos!” E de todas as vezes que repetia esta frase, abrandava a
agitação, entrando finalmente num relaxamento profundo.
Deixou
finalmente de sentir os problemas de incontinência e de intestinos,
perturbações do sono e de memória, diabetes, artrite reumática, anemia,
hipertensão e espondilose degenerativa lombar que já a acompanhava há uns anos,
como uma sombra – já para não falar na parte sexual, própria desta idade! Tudo
isto sem comprimidos, supositórios, pomadas ou injeções, receitadas no Posto de
Saúde, ou sem chás e outras mezinhas, feitas com desvelo pela filha, quando a
visitava, ou até sem a ida ao bruxo nem ao endireita (a D. Lulu acreditava há
uns anos, que um dos dois lhe havia de aliviar as dores...)!
Nestes
momentos “iluminados”, livre dos males físicos, a mente da D. Lulu vagueia e
leva-a aonde entender que deve ir e estar com quem quiser estar!
Vê-se
numa festa com carrocéis, primeiro agarrada ao pescoço da girafa, intervalando
com uma fartura gordurosa, e depois na montanha russa. Sempre que havia um “looping”
ou já na descida veloz… ouvia-se a D. Lulu, no sofá, gemer de excitação,
deixando sair um bem prolongado aaaaaaiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! inclinando-se, sem
saber para onde, até começar nova subida. Puro divertimento e libertação!
Muitas brincadeiras, risos e mais risos, no convívio de muitas pessoas
conhecidas e amigas, que a sua cabeça já tinha esquecido, por há muito não as
ver. Havia também uma multidão de gente desconhecida. Destaca-se a figura de um
homem com boa presença que lhe lançou um olhar fulminante. Quase sem saber
como, viu-se numa relação íntima, intensa. A D. Lulu agarrada a uma das
almofadas maiores do sofá, estava numa pose nunca vista e gemia…gemia, próxima
do êxtase!
A vizinha, aflita, toca-lhe várias vezes
no braço:
– D. Lulu!... D.
Lulu!... D. Luluuu!... Oh D. Luluuuuuu!... A senhora está bem? Está bem? Ai
valha-me Nossa Senhora… como ela está agarrada à almofada… se fosse o gato
esganava-o! Acorde que está ter pesadelos! Olhe a sua coluna… que dá cabo dela!
Ponha-se direita que eu vou fazer-lhe um chazinho! Ande lá que tem que tomar
agora o seu comprimido para logo à noite dormir bem! Quem é amiga, quem é?
© Jorge
Nuno (2012)
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