22/12/2016

A Viagem

A VIAGEM

“Limita-se uma vida ao seu destino”
Como se um passageiro clandestino,
De fardo, nem ousasse caminhar…
“Pesada cruz de sombras e canseiras”
Por quem comete um chorrilho de asneiras
E, livre, não se deixa condenar.

“As rochas são fantasmas na penumbra”
Para quem na vida pouco vislumbra,
Mas realce “há sempre na noite escura”…
Em que na pura exaltação dos credos
“A madrugada vem despir os medos”
E o teu olhar devolve-me doçura.

“Tremem mãos de comoção no instante”
Como se fosse em viagem errante
“Onde ao lavrar os sonhos me confundo”.
“Ser um menino-velho com ideias”
E partilhar contigo vida a meias
Vem dar alento ao meu pequeno mundo.

Pouco importa ver as frases bordadas,
“O vício das palavras relembradas”…
“P’ra mascarar aquilo que pareço”;
Ou “se a saudade é roxa ou prateada”,
A minha poesia a ser cantada,
Vastos elogios que não mereço…

Quando um dia aquela negra ceifeira
Vier rondar para eu ser poeira,
Sem negociar uns quaisquer critérios
E não retroceder envergonhada,
Nem quiser a viagem adiada…
Irei “subir a rampa dos mistérios”.

“Há retalho do mundo à minha espera”,
Mais além do que se vê nesta esfera,
“Com música astral das noites brancas”.
“Um mundo dos espíritos das horas”
Que no teu relógio já não ignoras
E tudo irá fluir sem alavancas.

Mas “sei que alguém nos becos da memória”
Anotará a verdadeira estória
(Mesmo sem ter que a contar às crianças).
Neste longo amor, que eu tanto bendigo,
“Sei que o meu coração vai ter contigo”,
Ser peregrino de boas lembranças.

Não “esconjuro o feitiço do retorno”
E para obviar todo este transtorno
Irei fazer aquilo que apetece…
Surgir em qualquer noite de luar,
Afável, envolver-me a namorar
“Em loucuras de amor que o amor tece”.

© Jorge Nuno (2016)


Obs.: Baseado em alguns versos ou ideias extraídas da obra poética de Ulisses Duarte, a quem desta forma presto a minha homenagem. Envolve trabalhos da obra póstuma “Palavras com Distância”, os poemas “A Nau do Tempo”, “O Telefonema”, “O Limite”, o “Conto da Morte Anunciada” e parte da compilação de versos de Ulisses Duarte, feita pelo poeta Albertino Galvão. 

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (50) - Crónica: "O Pai Natal Escondeu O Menino Jesus"

O PAI NATAL ESCONDEU O MENINO JESUS

No “Natal dos Hospitais” – programa anual da RTP1 nesta época festiva – o apresentador/entrevistador, agachado, perguntava a uma criança: “Então diz-me lá, porque gostas tanto do Natal?”. Resposta pronta, simples e direta do miúdo, com um sorriso rasgado: “Porque recebo muuuitaaaas preeendaaaas”!
Esta resposta é a confirmação do que qualquer responsável de marketing há muito sabe: “Natal – época de aumento exponencial de vendas”. Aliás, a própria RTP1, no seu “Jornal da Tarde” de 21 de dezembro de 2016, revela um estudo do IPAM, coordenado por Mafalda Ferreira, a indiciar que nesta época de Natal “o consumo com compras de Natal vai ser o mais alto dos últimos seis anos”, havendo a previsão de um aumento de 24% face a 2015. Sendo dito, na reportagem, que se houver falhas é por defeito, ou seja, o consumo poderá ainda ser maior do que o previsto.

No mesmo canal, no programa “DDT - Donos Disto Tudo”, surge um sketch humorístico que se desenrola no setor de brinquedos de um hipermercado e tem três personagens: “Gostosona” [Joana Pais de Brito, a fazer de mascote de Natal, vestida de vermelho]; “Linguadão” [Eduardo Madeira] como alternativa à Gostosona”, e o “diretor de markeking de uma cadeia de hipermercados” [Joaquim Monchique]. Em estilo hip-hop, supostamente pretendia-se cativar a atenção de crianças. O diretor de marketing fazia recomendações aos colaboradores apalhaçados e lembrava: “(…) é uma maneira de sacar a guita aos paizinhos deles”. A dado passo, destacava-se o Linguadão a cantar: “Não aceitem as peúgas. Vocês têm de aprender a ser pedinchões, umas autênticas sanguessugas. Com o Linguadão é só gastar… gastar!...”   

Recebi, do poeta amigo – Henrique Pedro –, um e-mail com votos de Boas Festas e um link com um poema de sua autoria. Coincidência… o título tem algo de semelhante com o que tinha definido para esta minha 50.ª crónica, escrita para a BIRD Magazine. O título do poema é: “Deitaram o Pai Natal na Manjedoura no Lugar de Jesus”. Comecei e ler o poema e achei-o muito oportuno e descrevo apenas uma estrofe:
“(…) Converteram-no [ao Pai Natal] em mito comercial
e deixaram-no na manjedoura
para vender o feno e a palha do berço
e o esterco do estábulo
(…)”.
Porque entendo que o poema merece ser lido na íntegra e o poeta merece maior notoriedade, deixo aqui o link: http://henriquepedro.blogspot.pt/2016/12/deitaram-o-pai-natal-na-manjedoura-no.html

Também no meu romance “As Animadas Tertúlias de Um Homem Inquieto”, o Filó,  personagem central, tem esta estirada, em conversa com o Max: “(…) Antes tinha estado a fazer embrulhos do Natal e fui distribuir as encomendas e só não fiz de Pai Natal porque tinha de ficar horas a fio com criancinhas sentadas ao meu colo, a dizer coisas que elas gostam de ouvir, mas que eu não gosto, porque as mentiras não fazem o meu género. Iludir, por quê? Era melhor terem o presépio, com as figuras e pronto. E até já as ovelhas, a vaquinha e o burrinho estão a mais. E mesmo assim preferia fazer de burrinho do que de Pai Natal. Venderem ilusões a crianças, isso não se faz! Ainda por cima, no Natal é criada uma ambiência de apego material, que é precisamente o oposto do espírito natalício. Não era capaz de ter uma criancinha ao colo a dizer-me: Ó Pai Natal, eu quero uma PlayStation 3 de 320 GB, com comando Dualshock e uma consola Wii, com desportos radicais, um MP4 Player para Windows, um Smartphone Android 2.2 e mais isto e mais aquilo… Não sou mal-educado nem mal-intencionado, mas da maneira que isto está, acho que abria logo as pernas para essa criancinha cair e dizia-lhe logo, enquanto ela chorava baba e ranho “Não queres antes pedir ao Pai Natal para passar depressa o dói-dói?”.

Conheço bem o Filó e garanto das suas boas intenções, sendo incapaz de fazer mal a uma criança. Para quem não leu o livro, garanto também que aquilo era um desabafo de revolta, ao ver o ascendente do Pai Natal – o tal que traz e/ou entrega as prendas – e, igualmente revolta, ao ver tanto consumismo desenfreado (sendo certo que ele – Filó – vivia com muitas dificuldades económicas). E como esse consumismo, representado pelo Pai Natal, está a fazer desaparecer o verdadeiro espírito natalício – que tem como mote o nascimento de Jesus de Nazaré –, celebração que deveria simbolizar humildade, bondade, compaixão, solidariedade…
Por este andar, que ninguém se admire se ouvir perguntar: “Quem é esse? [o tal Menino Jesus]. Daqui, afirmo: “O Pai Natal escondeu o Menino Jesus”.

Votos de um Santo Natal.


© Jorge Nuno (2016) 

10/12/2016

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (49) - Crónica: "Dos Virtuais ao Aluguer de Amigos"

DOS VIRTUAIS AO ALUGUER DE AMIGOS

Falar de amor, ou mesmo de amizade, nem sempre é fácil, ainda mais por parecer que as palavras ficam esvaziadas de sentido. Não foi por acaso que escrevi um poema, que intitulei “Embelezar o que é belo?”, ao pretender escrever sobre o amor, realçando os equívocos em torno da palavra e conceito, a que associei a seguinte frase de Blaise Pascal (1623–1662): Clareza de espírito significa igualmente clareza na sua paixão. É por isso que uma mente superior e clara ama com ardor e vê distintamente aquilo que ama. Identifico-me, claramente, com o conteúdo desta frase. Mas pegando numa outra frase – a de Mário Quintana (1906–1994) –, que diz: A amizade é um amor que nunca morre, vejo-me tentado a abordar a importância da amizade, sob diversas formas.

Longe vão os tempos de brincadeiras na rua, em que as crianças conviviam de forma salutar, com exercício físico natural, mesmo que pelo meio se registassem episódios menos agradáveis. A verdade é que passados os instantes do rebuliço, apenas ficavam temporariamente os sinais, como uma camisa rasgada, um joelho esmurrado, a repreensão de um adulto… e logo se reatava a brincadeira e cimentava a amizade, que se prolongava pela vida fora, caso se continuasse a viver na mesma localidade.

Lembro-me quando atingi a maioridade e frequentava a Escola Náutica, em Lisboa, fiz algumas passagens pelo clube Stella Maris – que faz parte da organização católica internacional que visa “proporcionar bem-estar, hospitalidade e apoio espiritual a todos cujas vidas dependem do mar –. Havia momentos descontraídos, sem “segundas intenções”, que proporcionavam a integração numa cidade desconhecida, o convívio e a criação de laços de amizade, tratando-se de amigos e amigas que nunca mais vi, mas que tiveram muita importância pessoal naquela época.

Não gosto de ficar preso ao passado, pois muita coisa mudou e continua a mudar, a uma velocidade vertiginosa. Sinto que o melhor que temos a fazer é mantermo-nos na crista da onda e aproveitarmos para surfar, gozando o momento atual. E no momento atual, nas nossas vidas, estão os familiares e amigos, que nos acompanham na viagem.

Foi com o aparecimento das redes sociais on-line que muita coisa mudou, ao nível relacional. Encontrámos amigos que julgávamos ter perdido, reativando essa amizade, com redobrada intensidade. Criámos novas amizades e convivemos à distância. Chegámo-nos a encontrar, presencialmente, com alguns desses “amigos virtuais”, descobrindo que, afinal, parece que éramos amigos há uma eternidade! E como o mundo conturbado está a precisar da criação de fortes laços de amizade!

Li algures que a amizade é uma força permanente, que não se compra, não se aluga, não se vende. Nasce e morre com a gente. Sem querer misturar “alhos com bugalhos”, sabe-se que há quem procure acompanhantes de luxo para viagens de negócios, havendo, ao fim de algum tempo, relações de grande cumplicidade e de amizade (para não ir mais longe). Com o surgimento das passagens aéreas, em voos low cost, a partir de € 8 (quando um bilhete de autocarro ronda os € 15, para cobrir uma distância de 220 kms entre duas cidades) é natural haver agora mais pessoas a viajar, a baixos custos, para outros países; tal como é natural o surgimento de uma resposta às necessidades daqueles que se deslocam e não conhecem o local para onde se dirigem. É aqui que entra uma nova atividade económica: alugar amigos! Sim, há algumas plataformas tecnológicas, como a Rent a Local Frend, que permite alugar um amigo, a exemplo das que há como alternativa ao táxi – caso da Uber e Cabify –. Este serviço de aluguer de amigos existe em dezenas de cidades mundiais e permite contratar pessoas comuns, que possam levar o visitante a locais imperdíveis, que saem fora dos circuitos organizados. No fundo, é o mesmo que contratar um amigo a mostrar-lhe os pontos de interesse da sua cidade, no que tem de mais genuíno e caraterístico. Para que se fique com uma ideia dos preços, enquanto em Nova Iorque o acompanhamento diário, por parte de um amigo, pode rondar os 160 USD, em Lisboa oscila entre € 100 e € 120. Há outros serviços idênticos locais, direcionados a pessoas que têm problemas de solidão e gastam quantias significativas em medicamentos para dormir e em antidepressivos, quando, provavelmente, bastaria encontrar alguém disponível para ouvir e acompanhar. Mas atenção, há mesmo serviços de “acasalamento”, procurando o parceiro ideal, bem patente na expressão sorridente daquele sujeito patusco no anúncio da televisão, que dizia: “Estou marabilhado!”

© Jorge Nuno (2016) 

26/11/2016

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (48) - Crónica: "Insólitos Legislativos... Por Cá"

INSÓLITOS LEGISLATIVOS…. POR CÁ.

Foram muitos os comentários, cartoons, anedotas, risota, indignação, e tudo o que possa passar pela cabeça de cada um, quando foi noticiada a intenção de se legislar o valor do IMI associado à exposição solar (que levaria a um agravamento do IMI) ou às vistas para um cemitério ou ETAR[1] (que, supostamente, representaria um desagravamento).

Recuando a 1937, o decreto-lei n.º 28219 – saído em 24 de novembro de esse ano –, criou uma licença de isqueiro. Isso mesmo! Obrigava o cidadão a ter uma licença, denominada “Licença anual para uso de acendedores e isqueiros”. A pedido, era emitida, de forma pessoal e intransmissível, por qualquer Repartição de Finanças. O custo associado a esta licença era significativa para a época, até ser abolida em 1970, altura em que tinha um imposto de selo de 50$00. Havia lugar à apreensão do isqueiro e multa de 250$00, caso fosse apanhado, por um polícia ou “fiscal de isqueiros”, sem a respetiva licença. O infrator era mesmo considerado delinquente e, se fosse funcionário público, a multa seria o dobro e comunicado ao seu serviço, o que faria com que perdesse, de imediato, cerca de metade do que ganhava durante um mês de trabalho. Para que se saiba – nem que seja por curiosidade –, 70% da multa revertia para o Estado e 30% para o autuante ou participante. No caso de haver denunciante, este recebia metade do valor do autuante. É fácil de ver que a legislação, ao penalizar fortemente os funcionários públicos infratores e ao permitir-lhe beneficiar de uma percentagem significativa da multa, caso fossem denunciantes, fazia com que estes se tornassem cúmplices do regime, que tudo fazia para ter controlo sobre tudo e todos.
Tive consciência da necessidade dessa licença em 1968, quando me deslocava na ponte de Santa Clara, em Coimbra. Parou um indivíduo, mesmo à minha frente, e puxou do cigarro e do isqueiro. Nesse momento aproximou-se um outro, que lhe exigiu a licença. De imediato, atirou o isqueiro para a água do rio Mondego e perguntou: “Qual isqueiro?”. Houve algum rebuliço, em que o “fiscal” tentava exercer a sua autoridade, mas, sem prova, desta vez não houve multa.
Porque achei estúpido obrigar uma pessoa a ter licença de isqueiro, tentei procurar uma justificação e foi-me dito que seria para proteger a indústria “nacional” dos fósforos, contra os isqueiros feitos noutros países.  
Como país é pródigo nestas matérias, tudo isso tem acontecido ao longo de décadas, renovado com outras temáticas, embora agora atenuado da prática do denunciante.

No início desta semana, perguntava a uma pessoa que me é querida, de uma forma simplista e com um sorriso enigmático, aquilo que poderia ser a interpretação de um cabeçalho de notícia, num qualquer jornal sensacionalista: “Sabias que agora vão cobrar uma taxa a quem tiver uma garagem com acesso direto a uma estrada nacional?”. Logo após a primeira tentativa para descodificar a minha expressão, a resposta foi imediata: “O dia 1.º de abril ainda está longe! Estás a querer enganar quem?” – tal era o absurdo –. “É verdade!”, insisto. Curta frase que vejo retribuída com: “´Tá bem, abelha!”, ficando o assunto por aqui. Mas como o caso me pareceu insólito, embora neste país já nada será de estranhar – ainda mais quando se trata de aplicar taxas e taxinhas –, fui pesquisar. Fiquei a saber que GNR tem vindo a notificar alguns proprietários, cidadãos comuns e empresas, para pagar licenciamentos à IP – Infraestruturas de Portugal (anteriormente designada Estradas de Portugal). Perante o desagrado dos visados e de autarcas, a IP diz estar a fazer cumprir a legislação em vigor. Trata-se da aplicação de uma portaria conjunta dos ministérios das Finanças e da Economia, datada de 14 de outubro de 2015, direcionada para quem tiver um imóvel com garagem, com uma rampa de acesso direto a uma estrada nacional. Um proprietário, que esteja nestas condições, será obrigado ao pagamento de uma taxa, rotulada de “licenciamento”, que pode chegar aos € 500 + custos do processos a rondar os € 1.250, assim distribuídos: € 500 para informar o processo; € 200 para ser emitido um parecer favorável (ou não); € 250 para uma vistoria extraordinária e € 300 para a reavaliação ou autorização. Fiquei também a saber que um conhecido autarca nortenho, com responsabilidades na respetiva Área Metropolitana, deu o exemplo de uma habitual festividade religiosa, em que haja uma procissão a atravessar a estrada nacional, estará sujeita ao pagamento das taxas.

No regime ditatorial era conhecido, ao pormenor, as percentagens a distribuir entre Estado, polícia, fiscal, autuante, participante e/ou denunciante, bem visível no verso da licença de isqueiro. Após quarenta anos de regime [dito] democrático, continuam as práticas absurdas, agravado pela falta de transparência de se dizer qual a percentagem qua cabe a cada um. Como apologista de uma democracia, no mínimo, acho insólito!

© Jorge Nuno (2016)

Obs.: Publicada na BIRD Magazine (criada na UTAD)





[1] ETAR – Estação de Tratamento de Águas Residuais

23/11/2016

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (47) - Crónica: "A Tentação da Arte, Insensatez, Estupidez e Crime"

A TENTAÇÃO DA ARTE, INSENSATEZ, ESTUPIDEZ E CRIME

Delicio-me quando entro num museu. Adoro absorver, ao máximo, o seu conteúdo, refletir e aprender com o que vejo. É-me indiferente o tipo de museu ou temática abordada, pois em qualquer deles consigo sentir a sua enorme riqueza cultural. É frequente dizer, após cada visita, que saio mais rico, mesmo com a carteira mais leve. Subentende-se, nestas circunstâncias, que o museu terá cumprido a sua missão.

Um dos museus que muito admirei foi o British Museum, uma grande instituição museológica em Londres, com entradas gratuitas. Desde 1759 que delicia quem o visita. Tem peças como a “pedra de roseta”, do Egito Antigo, levada para Londres após a capitulação de Napoleão, quando as suas tropas ocupavam aquele território; ou o conjunto de peças, conhecidas como os “mármores de Elgin”[1], com esculturas da Grécia Antiga, que não deixava de ser um saque a envolver subornos, mesmo que efetuado por um privado e, posteriormente, adquirido pelo governo britânico. Sucessivos governos gregos e egípcios têm feito campanhas para a devolução das obras, mas tudo fica na mesma.

O Museu do Louvre – o mais visitado em todo o mundo – situado em Paris, está cheio de obras riquíssimas, em termos de arte e cultura humana, representando cerca de “oito mil anos da cultura e da civilização, tanto do Oriente como do Ocidente”. Foi muito enriquecido com as peças obtidas nas conquistas napoleónicas. Napoleão sabia bem o que fazia, pois quando preparou a invasão do Egito. Pretensamente, esta teria como objetivo principal exercer maior domínio no Mediterrâneo e cortar a rota usada pelos britânicos para chegarem ao Médio Oriente. No entanto, teve o cuidado de levar consigo aproximadamente 150 cientistas, professores e conhecedores de arte, para fomentar o estudo da antiguidade egípcia e, supostamente, preservar o maior número de peças com valor escultórico e arqueológico. Algumas delas acabariam por ser devolvidas aos países de origem, com a queda do imperador. Certo é que ainda se podem ver várias peças escultóricas assírias, etruscas, egípcias e gregas, entre outras, com vários séculos a.C.

Também Hermann Göring[2], destacado entusiasta do colecionismo, particularmente de arte, foi o impulsionador do plano de Hitler para juntar o maior número possível de obras de arte, que ficariam na posse do estado alemão. Claro, os museus dos países ocupados estiveram nos holofotes do ocupante e do próprio Göring. Este teria acumulado, na sua residência de verão, próximo de Berlim, cerca de 2000 obras de inestimável valor, entre pintura, escultura, peças diversas e tapeçaria, não fosse a guerra ter terminado e ele vir a ser julgado em Nuremberga por “crimes de guerra, onde se incluía a pilhagem e roubo de obras de arte, e outros bens”, além de muitos outros crimes, com inclusão de crimes contra a humanidade. A situação do roubo de obras de arte foi muito bem parodiada na célebre sitcom britânica de sucesso “Allo Allo!”. Retratou a ocupação alemã em França, durante a Segunda Guerra Mundial, em que as tropas invasoras tinham roubado todas as obras de arte da vila de Nouvion, onde o René tinha o café e escondia elementos da resistência. Entre essas obras estava a pintura “A Madonna rendida, com peitos grandes”, que o coronel Von Strohm queria juntar à sua coleção de obras roubadas, apesar de desassossegado pela presença constante do oficial de Gestapo, Herr Flick, que queria encontrar o paradeiro das obras.

Em 2001, Moahmmad Omar, líder do grupo extremista talibã, mandou destruir todas as imagens no Afeganistão, por entender que eram ofensivas. Foram 10 anos, afanosamente, a usar dinamite. Entre essas, estavam duas estátuas gigantes budistas –
Os Budas de Bamiyan –, com cerca de 1500 anos, esculpidas diretamente na rocha de um desfiladeiro. Com 53 e 38 metros de altura, tinham sobrevivo a séculos de guerra.

Em 2003, após a tomada da capital do Iraque pelos militares americanos, que levou à queda do regime de Sadam Hussein, estes não evitaram que iraquianos pilhassem e vandalizassem o Museu Nacional de Bagdad e incendiassem a Biblioteca Nacional, sinal claro de degradação social, económica, moral e até civilizacional de um povo que vivia oprimido. Ainda hoje revivo as imagens obtidas neste museu, relacionadas com a entrada de dezenas de homens e com a directora do museu a tentar afugentar quem pilhava e destruía, com uma coragem a fazer lembrar a freira timorense que afastava os indonésios invasores, esbracejando e gritando “xô… xô…. xô!...”, como se fosse fácil enxotar aquelas “galinhas”. Imagino o sofrimento daquela directora do museu, guardiã de um espólio com vários milhares de anos.   

Quando em 2004 visitei o Museu Nacional de Praga (República Checa), foi-me dito que em agosto de 1968, aquando da invasão por tropas soviéticas para deter a chamada Primavera de Praga, a fachada do belíssimo edifício em estilo neorrenascentista, situado na praça Venceslau, foi bombardeada por tanques, supondo tratar-se do parlamento da ex-Checoslováquia. Recuperada grande parte dos estragos e desconhecendo [eu] o que ficou irremediavelmente perdido, foi outro dos museus que me deliciei a ver, contendo desde objetos pré-históricos a mineralogia, zoologia, antropologia, história, ciências naturais…  

Os protestos contra o presidente e o regime de Hosni Mubarak, em 2011, mesmo perante as armas dos militares, levaram à destruição e vandalização de peças milenárias no Museu Egípcio do Cairo (com decapitação de múmias, como exemplo), mas grupos operacionais sabiam o que lhes interessava e onde estava, tendo efectuado pilhagens, com o intuito de obter lucros, através de marchands e traficantes de arte, o que viria também a acontecer nas estações arqueológicas de Mênfis e Abusir.

Mais recentemente, com a ocupação de um vasto território na Síria e no Iraque, por parte de grupos extremistas do autoproclamado Estado Islâmico, continuou a destruição de preciosidades históricas, com inestimável valor. Aconteceu por todo o lado, particularmente em zonas em que era suposto proteger-se esse património. Foi evidente no Museu de Mossul (Iraque), com a destruição de antiguidades de relevo. Assim como o foi a destruição das ruínas greco-romanas de Palmira (Síria), até aí preservadas e classificada, pela UNESCO, como Património Mundial da Humanidade, tal como outros cinco locais que figuram na lista da UNESCO. Ainda se deram ao cuidado de deixar um vídeo para a posteridade, deixando bem claro o seu fanatismo, através da destruição de estátuas e múmias, assim como da afirmação legendada no vídeo: “Destruímos os ídolos seja onde for, onde quer que os vejamos, destruímo-los, não há mais deus que Alá nesta terra”.

Um olhar histórico, face aos acontecimentos mais recentes, não impede a polémica: as peças preciosas à guarda dos grandes museus mundiais deveriam manter-se, ou ser devolvidos aos respetivos governos e colocados nos seus locais de origem?

Quanto a lucidez, não é preciso fazer um grande esforço, pois sabemos que os símbolos iconográficos destruídos são, tão só, o património arqueológico mais antigo da humanidade. Assim como os bens materiais – incluindo os alheios, mesmo que gostemos muito de arte – não vão connosco para a cova! Como admiro o pensamento lúcido de Alberto Einstein, que afirmou: “Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, no que respeita ao universo, ainda não adquiri a certeza absoluta”.

© Jorge Nuno (2016) 





[1] Alusivo a Lord Elgin, de nome Thomas Bruce, embaixador britânico em Constantinopla [Império Otomano], que em 1801 fomentou as escavações em Atenas e “recolheu” várias esculturas, com o intuito de as preservar (alegando que os otomanos mostravam indiferença pela cultura grega) e terá mandado partir muitas dessas esculturas para as fazer chegar a Inglaterra.
[2] Membro do Partido Nazi e militar de alta patente, a quem Hitler terá dito que seria o seu substituto, caso lhe “acontecesse alguma coisa”.

30/10/2016

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (46) - Crónica: "Sou Escorpião" E daí?"

SOU ESCORPIÃO! E DAÍ?

Pois bem, sou escorpião! Talvez seja melhor soletrar: es-cor-pi-ão… es-cor-pi-ão!... (no mínimo, alguém dirá logo: “Ui!...”). Já nem sei é obstinação, pura falácia, ou suja predição de ineficácia… isto de ver o signo como sina malfadada, deixando à partida, encurralados todos os que têm um signo de “má-fama”. Nunca gostei de generalizações abusivas, pois sei que cada ser é único. Sinceramente, apesar de falar no assunto, é algo que não me perturba, pois se me entregar a algo apaixonadamente, tiver algumas capacidades ou talento para o efeito e souber aproveitar a conjuntura e as oportunidades surgidas, sei, por antecipação, que tudo se resolverá em conformidade e não tenho com que me preocupar.

Apesar disso e tendo como pano de fundo o zodíaco, fiquei recentemente a saber que este é um ano de liberdade, que se deve entender como de libertação. Haverá novas ideias, movimento, impulsividade por instinto ou intuição, encontro com sentimentos profundos… Também há muito que sei que é nesse encontro com sentimentos profundos que me fico a conhecer melhor.

Com suavidade, deixo escapar o que se encontra escondido na caixa do “politicamente não correto”, tendo presente que a minha casa cármica mostra-me o que quero esconder e não mostrarei a ninguém. Também sei que tudo o que é negativo em mim tem um tempo de vida limitado e, como tal, simplesmente, desvalorizo-o, procurando manter na mente, de forma permanente, imagens positivas.

Assim, conheço-me como homem capaz de:
– Procurar o contacto com a natureza e apreciar as coisas simples da vida;
– Relacionamentos com bases sólidas, apesar de alguns constituírem-se como desafios permanentes;
– Criar empatias (algumas hipnotizantes) e, facilmente, desenvolver novas amizades;
– Nunca se deixar acomodar ou cristalizar, estando sempre disponível para avaliar a renovação, com as inerentes mudanças a operar, depois de ouvir o coração;
– Saber aproveitar (com garra) novas oportunidades, convicto de que não deve abraçar todos os desafios, mas aqueles que abraça, irá desenvolvê-los com paixão, mesmo mantendo a produtividade sem ordem de prioridade;
– Ser um abridor de caminhos e lançador de sementes, que tenham desenvolvimento e continuidade em novos ciclos (mesmo que outros fiquem com os louros);
– Idealizar, programar e liderar projetos em que acredita, com envolvimento, persistência, dedicação e exemplo (bem ao estilo do “follow me”);
– Enfoque no essencial, em detrimento do acessório, imprimindo uma marca pessoal nos esforços;
– Sentir-se carregado de energia positiva e muita luz e, na contrariedade, saber arranjar forças para erguer a cabeça e subir para a garupa do cavalo, desfrutando, de novo, a caminhada;
– Acreditar e envolver-se em causas, olhando serenamente para a vida, mas sempre com denotado entusiasmo;
– Atravessar períodos de grande sensibilidade, com tudo o que isso implica, mas procurando agir com alguma dose de inteligência emocional;
– Gostar de ser fiel à sua essência, pelo que evita tudo o que seja facilitismo e que esteja fora dos princípios éticos, que há muito interiorizou e não abdica;
– Sentir-se abençoado pela coragem de resolver a maior parte das questões, e se outras não consegue… é porque a solução não depende de si.

Aproveito alguns momentos da noite para uma profunda reflexão. É curioso: enquanto lá fora está escuro, eu fico com uma perspetiva mais clara das coisas! Tal, permite redefinir o percurso, para orientação futura, embora, na maior parte das vezes, simplesmente deixe fluir…

Para mim, durante muito tempo e apesar de saber da sua movimentação no espaço, as estrelas sempre estiveram em posição “estável” e pessoalmente favorável, tal como a minha constância em relação às coisas boas da vida, que recebo e agradeço diariamente. Sei que nasci no Ano Internacional do Sol Calmo. Pelo meu mapa astral, sei que sou um nativo com o Sol em escorpião e com a Lua em oposição. Também sei dos indícios “coincidentes” com o meu lado misterioso, emocional, sensível, determinado, capaz de facilmente brilhar (sem usar purpurinas) chamando a atenção por onde vier a passar e no gosto em ser notado pelos seus méritos (e não, certamente, por pendurar abóboras no pescoço).

A verdade é que pouco me importava com tudo isso, e ainda menos com: o ascendente Saturno, na casa 8, a contribuir para ter vontade de mudar os padrões e aprender a ter mais desapego, deixando-me a vontade de alívio progressivo na carga da bagagem, que levo na viagem; o domínio de Plutão, por estar na casa 7, a caraterizar-me de forma determinante ao nível relacional; a hora sideral aquando do meu nascimento, em que Mercúrio, Vénus e Neptuno se encontravam na casa 9 (juntamente com o Sol), tivessem uma enorme influência nas grandes mudanças e/ou se me foi proporcionada uma generosidade a atingir os limites do inconsciente, que me terá levado ao desejo de ensinar/formar/difundir o saber, mas sempre com a vontade insaciável e permanente de aprender e aumentar o conhecimento.

Ai este generoso espelho que me faz ver e realçar o lado bom que há em mim!

Sou como sou. Sou Escorpião! E daí?

© Jorge Nuno (2016)


Obs.: Publicado na BIRD Magazine (criada na UTAD)

28/10/2016

CRÓNICAS DO FIM DO MUNDO (45) - Crónica: "Acreditar no Bibliomóvel"

ACREDITAR NO BIBLIOMÓVEL

Há poucas semanas fiz um passeio por algumas aldeias raianas do concelho de Bragança. Achei curioso, em pleno século XXI, cruzar-me com duas viaturas pesadas, ambas de caixa tapada com toldo e destinadas ao comércio direto com a população. Uma delas, de matrícula espanhola, vendia fruta e uma outra, de matrícula portuguesa, vendia mercearias, onde não podia faltar o bacalhau, além de outros produtos próprios de uma drogaria. Sei que um pouco abaixo deste concelho, uma cabeleireira usa um furgão que serve de salão de cabeleireiro itinerante. Há outros negócios em curso, de modo a tentar a sua sorte, cujos empreendedores veem os problemas da interioridade e do isolamento das populações como uma oportunidade. Sei da existência da Unidade Móvel de Saúde de Bragança, que foi criada através de uma parceria entre o Município, os Centros de Saúde e a Santa Casa da Misericórdia de Bragança, tendo como finalidade as visitas domiciliárias, prestação de cuidados de enfermagem, acompanhamento de utentes em situação de vulnerabilidade, despiste de situações de risco, vacinação, sessões de esclarecimento, etc.

Lembro-me da distribuição de peixe congelado por todo o país e, claro, de o ver chegar ao interior do país, em furgões preparados para o efeito. Por iniciativa estatal, no final dos anos cinquenta do século passado, foi criada, a empresa SAPP – Serviço de Abastecimento de Peixe ao País, que pretendia introduzir um novo conceito de abastecimento e de alimentação. Foi lançada a campanha “Vamos comprar, congelar e cozinhar peixe congelado”, criando mesmo publicidade através de uns desenhos animados, que passavam na TV a preto e branco, como forma de propagandear o peixe congelado. Foram também elaborados uns livros de banda desenhada com a “Menina Pescadinha”, por forma a abranger as crianças, já que não fazia parte do hábito de consumo nas populações, em qualquer estrato social, e era preciso criar incentivos, com reforço nos mais novos.

Não me esqueço da importância das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian – uns furgões cinzentos da marca Citroën, embora também os houvesse em cor avermelhada (mas que nunca vi) –. Já andava na escola primária quando este projeto nacional foi lançado. Ansiava pela chegada da carrinha e era um leitor assíduo, com o número máximo de livros que era permitido a cada um. Apesar das orientações que o condutor e bibliotecário tentava dar aos leitores mais jovens, eu não as respeitava e fazia as minhas escolhas como se pertencesse ao público adulto. Sei que com 14, 15, 16 anos já lia clássicos da literatura, como: “Os Irmãos Karamazov”, de Dostoievski; “Guerra e Paz”, de Leão Tolstoi; “Grandes Esperanças”, de Charles Dickens; “O Vermelho e o Preto”, de Stendhal; “Os Miseráveis”, de Victor Hugo; “O Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz [que li durante uma noite]; “Esplendores e Misérias das Cortesãs”, de Honoré de Balzac; “Doutor Jivago”, de Boris Pasternak, entre muitos outros.

Se o objetivo deste serviço de bibliotecas itinerantes era o de “promover o gosto pela leitura e elevar o nível cultural dos cidadãos, assentando a sua prática no princípio do livre acesso às estantes, empréstimo domiciliário e gratuitidade do serviço”, não tenho dúvidas da influência deste serviço móvel, e da importância dos muitos autores que li, na minha forma de encarar o mundo, de crescer como pessoa e, mais tarde, ao dedicar-me à escrita. Ficou desde sempre, e para sempre, um enorme gosto pela leitura, pelo que deixo o meu testemunho: comigo o objetivo foi atingido!

Por razões várias, este serviço de bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, viria a ser extinto em 2002. Foram muitas as autarquias a acreditar e  tomarem iniciativa semelhante, que promovesse a leitura e elevasse o nível cultural dos cidadãos (por via da leitura). Para o efeito, renovaram as bibliotecas fixas, tornando-as espaços atrativos, em zonas centrais, de fácil acesso, e criaram as chamadas bibliomóvel, para fazer chegar os livros a zonas mais remotas da sua área jurisdicional. Entre essas autarquias, menciono (por ordem alfabética) as de: Arouca, Aveiro, Coimbra, Loulé, Oliveira de Azeméis, Pombal, Porto de Mós, Proença-a-Nova, Santa Marta de Penaguião, São João da Pesqueira, São Pedro do Sul, Valença. Acredito que poderá haver mais autarquias envolvidas em neste tipo de projeto, mas não tenho problemas em admitir que desconheço.

Em abril de 2016, realizou-se na Universidade de Coimbra uma conferência intitulada “Bibliomóvel no Século XXI. Novos desafios”, a provar que é dada importância ao assunto. Felizmente há gente, com visão, a acreditar no bibliomóvel. Pode mesmo parecer uma coisa do passado, ainda mais por nos situarmos na era das tecnologias. Desengane-se quem pensa que nas zonas raianas, e outras zonas do interior, há livre acesso à internet e até mesmo rede móvel, para uso de um simples telemóvel, pois ou não tem ou é deficiente o sinal recebido. A pretexto do acesso fácil à cultura, por via informática/internet, o fomento da leitura não pode abrandar e tem de prosseguir, para fazer chegar os livros [físicos] às populações desfavorecidas do interior, tal como lá chega, de modo ambulante, a cabeleireira, a enfermeira, o comerciante…

© Jorge Nuno (2016)


Obs.: Crónica publicada na BIRD Magazine (UTAD), em 08-10-2016

01/10/2016

A Viagem

A VIAGEM

“Limita-se uma vida ao seu destino”
como se um passageiro clandestino,
de fardo, nem ousasse caminhar…
“pesada cruz de sombras e canseiras”
por quem comete um chorrilho de asneiras
e, livre, não se deixa condenar.

“As rochas são fantasmas na penumbra”
para quem na vida pouco vislumbra,
mas realce “há sempre na noite escura”…
em que na pura exaltação dos credos
“a madrugada vem despir os medos”
e o teu olhar devolve-me doçura.

“Tremem mãos de comoção no instante”
como se fosse em viagem errante
“onde ao lavrar os sonhos me confundo”.
“ser um menino-velho com ideias”
e partilhar contigo vida a meias
vem dar alento ao meu pequeno mundo.

Pouco importa ver as frases bordadas,
“o vício das palavras relembradas”…
“p’ra mascarar aquilo que pareço”;
ou “se a saudade é roxa ou prateada”,
a minha poesia a ser cantada,
vastos elogios que não mereço…

Quando um dia aquela negra ceifeira
vier rondar para eu ser poeira,
sem negociar uns quaisquer critérios
e não retroceder envergonhada,
nem quiser a viagem adiada…
irei “subir a rampa dos mistérios”.

“Há retalho do mundo à minha espera”,
mais além do que se vê nesta esfera,
“com música astral das noites brancas”.
“um mundo dos espíritos das horas”
que no teu relógio já não ignoras
e tudo irá fluir sem alavancas.

Mas “sei que alguém nos becos da memória”
anotará a verdadeira estória
(mesmo sem ter de a contar às crianças).
Neste longo amor, que eu tanto bendigo,
“sei que o meu coração vai ter contigo”,
ser peregrino de boas lembranças.

Não “esconjuro o feitiço do retorno”
e para obviar todo este transtorno
irei fazer aquilo que apetece…
surgir em qualquer noite de luar,
afável, envolver-me a namorar
“em loucuras de amor que o amor tece”.

© Jorge Nuno (2016)


Obs.: Baseado em alguns versos ou ideias extraídas da obra poética de Ulisses Duarte, a quem desta forma presto a minha homenagem. Envolve trabalhos da obra póstuma “Palavras com Distância”, os poemas “A Nau do Tempo”, “O Telefonema”, “O Limite”, o “Conto da Morte Anunciada” e parte da compilação de versos de Ulisses Duarte, feita pelo poeta Albertino Galvão. 

25/09/2016

Impulsos da Alma

IMPULSOS DA ALMA

Num mero estado de ausência da mente,
Sem convergir pensamento e ação,
Planei céus salpicados de evasão
E fluí em trasladada corrente.

À velocidade do meteorito,
Maleável aos impulsos da alma,
Descobri uma verdade que acalma:
A minha morada é o infinito.

Deixei bem longe o saco das querelas
Como a retirar o homem à guerra…
Para tornar as viagens mais belas.

Poderei sentir-me um mortal que erra,
Mas um colaborador das estrelas
Que daqui verá descer Céu à Terra.


© Jorge Nuno (2016)

24/09/2016

CÓNICAS DO FIM DO MUNDO (44) - Crónica: "O Passaporte Biológico"

O PASSAPORTE BIOLÓGICO

Há muito poucos anos, a Agência Mundial Antidopagem (AMA) viu necessidade de criar o passaporte biológico, como estratégia, para lutar contra a dopagem no âmbito desportivo e concretizou esta ideia inovadora. Trata-se de um documento electrónico individual, no qual “são registados todos os resultados dos controlos antidoping que forem efetuados” ao atleta, o que faz com que contenha vários indicadores importantes e permite traçar o perfil hematológico e o perfil dos esteróides, entre outros.

Começou com um projeto-piloto desenvolvido pela União Ciclista Internacional (UCI) já que esta modalidade é uma das que mais requer esforço físico, por parte dos atletas e deve estar mais sujeita a controlo. Se repararmos bem, é praticada a horas pouco recomendáveis, na maior parte das vezes com calor excessivo, em distâncias longas, durante muitas horas por dia e muitos dias seguidos; daí ser expectável a ocorrência frequente de casos de doping, como se veio a confirmar. Nele, viram-se envolvidas algumas figuras de proa do ciclismo mundial – de que é exemplo Lance Armstrong, considerado [por muitos] o maior ciclista de todos os tempos, que acabaria por ser banido do ciclismo, passando de herói a vilão –.

Rapidamente passou do ciclismo para outras modalidades, em variadíssimos países. Em Portugal já haverá 363 atletas com passaporte biológico em meia dúzia de modalidades, como: canoagem, remo, natação, atletismo, triatlo e, claro, ciclismo. A Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP) já confirmou, recentemente, através do seu presidente – Rogério Jóia – que passará a haver o passaporte biológico no futebol nacional, tendo referido que “o número de controlos totais e também específicos para esta ferramenta no combate ao doping aumentaram”, o que terá contribuído para fazer subir significativamente, em 2015, o número de casos de positivos face a período homólogo. Segundo palavras de Rogério Jóia, a própria UEFA entendeu que havia necessidade de o estender ao futebol, pois “não seria ético o futebol não estar inserido no passaporte biológico, até pelo seu mediatismo e poder económico”. Deste modo, não é de estranhar o facto de, p.e., Sport Lisboa e Benfica, Sporting Clube de Portugal, Futebol Clube do Porto e Sporting Clube de Braga, já terem visto jogadores seus a ser alvo deste tipo de controlo para se dar início à introdução do referido passaporte. Também o modo de atuar foi alterado; agora aADoP faz as colheitas de urina e sangue nas competições, e não fora delas. No futebol profissional, está a acontecer com a regularidade de dois jogos por jornada na I Liga e de um jogo na II Liga.

Pode ser difícil de entender o afastamento dos atletas paralímpicos da Federação Russa (FR) aos jogos do Rio 2016, mas quando se tratou de factos comprovados, de forma superiormente organizada, não se podia esperar outra atitude do Comité Paralímpico Internacional (CPI). A FR ainda recorreu, mas o Tribunal Arbitral do Desporto (TAS) indeferiu-o e manteve a decisão de banir toda a comitiva russa.

Imaginemo-nos no lugar de um atleta paralímpico [com qualquer tipo de deficiência] e que treina afincadamente durante quatro anos para conseguir um lugar na comitiva presente nesta competição maior, sem ter cometido nenhum ilícito, e que se vê relegado para posições inferiores na competição, ao ter adversários que usam de meios ilegais, que lhes conferem mais resistência.

Ainda há homens com carácter, como no caso do Comité Paralímpico da Austrália, ao suspenderem preventivamente, por doping, um seu ciclista – bicampeão paralímpico de perseguição individual (para atletas amputados) – e que lhe poderia dar mais uma medalha.

Também o CPI está atento, e aperta o cerco, aos casos de boosting, estratégia que aumenta artificialmente o rendimento dos atletas, com o aumento da pressão arterial e chegada de mais oxigénio aos músculos. É algo difícil de detetar e, ainda mais, em se saber se a prática é intencional. Estranhamente, é usada pela via da autoflagelação e prática de tortura, e comum entre atletas em cadeiras de rodas, entre outros. As consequências desta prática são nefastas para a saúde dos atletas, dando origem a acidente vascular cerebral (AVC) e até à morte.

Há poucos dias chegou a delegação portuguesa, vinda dos Jogos Paralímpicos Rio 2916, evento em que foram vendidos dois milhões de bilhetes e teve vasta cobertura televisiva. Dos 37 atletas portugueses presentes, quatro trouxeram medalhas de bronze e 25 ganharam diplomas paralímpicos, ao ficarem entre os oito melhores do mundo, nas suas modalidades. São atletas que merecem ser acarinhados, e merecem que sejam criadas condições para terem um estatuto idêntico aos olímpicos, com treino como atletas de alta competição. Como todos os outros atletas, também deverão possuir passaporte biológico. Como é bom ver a sua felicidade e a dos seus familiares e amigos, quando chegam ao aeroporto, após o fechar das cortinas da competição! E como cada um se deve sentir bem, ao saborear o mérito dos seus resultados desportivos, fazendo apenas uso da sua coragem, do seu esforço, do seu querer, ajudado pelo empenho, saber e entrega dedicada do seu treinador!

Bem-haja todos aqueles que se entregam devotada e honestamente a algo, como neste caso, trabalhando para que haja verdade desportiva. Gostaria de acreditar que o crime não compensa.

© Jorge Nuno (2016)


Obs.: Crónica publicada à presente data na BIRD Magazine (criada na UTAD)