25/03/2021

Crónicas de Língua Afiada: PURIFICAR VALORES DA NOSSA SOCIEDADE?... Parte II, de IV

 

PURIFICAR VALORES DA NOSSA SOCIEDADE?

Parte II

(englobada numa crónica com quatro partes)

Em Portugal, há ondas de intolerância e de preconceitos com a história, que chocam, por exemplo, com a [ainda] visão glorificadora e saudosista de um império que se esfumou e que tinha sido preservado durante cinco séculos. Esta parte II da crónica, aborda um tema que tem sido tabu – a descolonização.

Sente-se que são muitos os portugueses, ao longo de mais de 47 anos, a apontar o dedo acusador, particularmente dirigido a Mário Soares – tido como o grande responsável pela entrega das “possessões ultramarinas”. Alguns desses, tinham uma vida desafogada em África e não perdoam ter sido forçados a regressar a Portugal, de um momento para o outro, ao perderem o direito aos seus bens e chegarem com pouco mais do que a roupa que tinham no corpo.

Seria bom conhecer-se a realidade do Portugal de 1974/75 e enquadramento com o programa do MFA[1], que restituiu a liberdade ao portugueses, envolvendo, necessariamente, a questão da Guerra Colonial e a conjuntura na época, com fortes pressões internacionais e a força das armas, que já tinham conduzido: em 1961, à integração dos enclaves de Goa, Damão e Diu pela União Indiana; em 1973, à autoproclamada independência da Guiné [Portuguesa]; e, ao longo de seis décadas, à independência dos territórios africanos sob alçada do Reino Unido, França, Itália, Bélgica e Espanha.

Para se ficar com uma ideia da extensão desses territórios africanos colonizados ou com protetorado… era todo o continente africano! Não recuando muito no tempo, fiquemo-nos pelo período de 1910 a 1974 – ano em que nos queremos situar e poderemos observar a vastidão de países, só neste continente, que se tornaram independentes:

– do Reino Unido: África do Sul, Egito, Sudão, Gana, Somália Britânica, Nigéria, Serra Leoa, Uganda, Tanganica e Zanzibar [formaram a Suazilândia], Malauí, Zâmbia, Gâmbia, Rodésia [Zimbábue], Botsuana, Lesotho, Maurícia;

– da Itália: Etiópia, Líbia, Somália Italiana;

– da França: Marrocos, Tunísia, Guiné [Guiné–Conacri], Camarões, Togo, Senegal, Madagáscar, Benim, Níger, Burkina Faso [ex-Alto Volta], Costa do marfim, Chade, Congo, Gabão, Mali, Mauritânia, Argélia;

– da Bélgica: República Democrática do Congo [ex-Zaire], Burundi, Ruanda;

– da Espanha: Guiné Equatorial.

Registe-se a experiência traumatizante de militares e marinheiros que fizeram comissões de serviço no Estado Português da Índia, logo após as primeiras iniciativas de luta armada em Angola. A União Indiana, no final de 1961, fez investidas por terra, mar e ar, sobre os enclaves de Goa, Damão e Diu. Perante a evidência desses ataques, o então presidente do Conselho de Ministros – António de Oliveira Salazar – que sempre se tinha oposto à entrega desses territórios, fez chegar esta mensagem: «Não prevejo possibilidades de tréguas nem prisioneiros portugueses, como não haverá rendição, pois sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos». O general Vassalo e Silva, governador daquele território, reconhecendo a anormal diferença de meios bélicos e humanos entre portugueses e indianos, não obedeceu a Salazar. Ficou conhecido como “Vacila e Salva”. Na verdade, morreram cerca de 30 militares portugueses, mas salvou a vida a cerca de 3.000 que faziam parte da guarnição, ao assinar a rendição incondicional. Seis meses depois do cativeiro, deu-se o regresso dos militares a Portugal, sem glória, humilhados e muitos deles castigados. O próprio general viria a ser julgado em tribunal militar e expulso do exército.

Em Portugal, lia-se o slogan repetidamente pintado nas paredes: “Nem mais um soldado para as colónias!”. Logo após a revolução de 25 de abril de 1974, militares portugueses, presentes na Guerra Colonial, identificados com o MFA, chegaram a confraternizar no terreno com os guerrilheiros, antecipando-se à diplomacia e às decisões políticas. A Lei n.º 7/74, de 27 de julho, saída do Conselho de Estado, refere no art.º 1.º “o princípio de que a solução das guerras no ultramar é política e não militar, consagrado no n.º 8 alínea a) do capítulo B do Programa do Movimento das Forças Armadas, implica, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito dos povos à autodeterminação. O reconhecimento do direito à autodeterminação, com todas as suas consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos e a derrogação da parte correspondente do art.º 1.º da Constituição Política [Portuguesa] de 1933».

Mário Soares, político oposicionista ao regime totalitário, regressado do exílio em França, era o ministro dos Negócios Estrangeiros no primeiro governo provisório pós-25 de abril, e fortemente acusado de “traição à Pátria”, quando se desenrolaram as tentativas de negociação para autodeterminação ou independência daqueles territórios (uma ideia que ainda paira no ar, passados 47 anos!). É sabido que o simples facto de passar a designar os “Territórios Ultramarinos” por “Colónias”, teve um imediato impacto negativo junto de larga franja dos militares de elevada patente e na opinião pública. 

António de Spínola, tinha sido vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas durante dois meses, entre janeiro e março de 1974, e afastado após ter publicado Portugal e o Futuro, onde evidenciava que a solução das colónias passava pela não continuação da guerra. No mês seguinte, convidado para presidir à Junta de Salvação Nacional, foi escolhido, entre pares, para as funções de primeiro presidente da República pós-25 de abril, cargo que exerceu durante quatro meses. Nesse espaço de tempo, Spínola enviou Mário Soares a Dakar para “negociar” com Aristides Pereira, que representava o PAIGC[2], na qualidade de secretário-geral.

No livro “Mário Soares – Uma Vida[3]”, onde condensa vários testemunhos na primeira pessoa, o autor refere que Spínola queria que esse primeiro encontro representasse um gesto de boa vontade e não passasse de “chá e simpatia”, mesmo sabendo do reconhecimento da independência da Guiné, pela ONU e por mais 79 países.

 

(Continua na Parte III, de IV)

© Jorge Nuno (2021)

 



[1] Movimento das Forças Armadas

[2] Partido Africano de Independência da Guiné e Cabo Verde

[3] de Joaquim Vieira, editado por Esfera do Livros Editora

11/03/2021

Crónicas de Língua Afiada: PURIFICAR VALORES DA NOSSA SOCIEDADE? - Parte I, de IV

PURIFICAR VALORES DA NOSSA SOCIEDADE?

 Parte I

(englobada numa crónica com quatro partes)

 

Continua a assistir-se – por vezes de forma extremada –, a uma polarização entre a visão glorificadora de um império que se esfumou e que tinha sido preservado durante cinco séculos, sentindo-se desalento, frustração, até mesmo raiva, com necessidade de apontar o dedo acusador e, por outro lado, uma tentativa de criminalização do nosso passado, como nada tendo de glorioso, achando-se que estará na hora de purificar os valores da sociedade atual, mesmo que implique igual apontar de dedo acusador e, mais do que isso, uma necessidade urgente de fazer um revisionismo histórico, com contestação cultural da história, passando por querer esconder ou destruir os símbolos dessa mesma história.

Uns e outros, certamente esquecem que a história vive de memórias e não prescreve; que nem sempre temos consciência da complexidade da história, de aspetos que levam a que, por exemplo, a história narrada aos alunos, durante o regime do Estado Novo, seja uma, e que, pós-25 de abril de 1974, seja inevitavelmente diferente. E falamos de um pequeníssimo período de tempo, comparativamente aos mais de 800 anos deste país, em que muito de bom e mau aconteceu!

Trazer para os dias de hoje só os aspetos negativos da nossa história e pretender fazer operações plásticas ao passado, fazendo uso de radicalismos exacerbados, em nada favorece o desejado encontro de culturas, a descriminação racial, a convivência sadia entre povos, perante a realidade – factual – deste pequeno país ter criado o primeiro império global da história, iniciado no final do séc. XV, com possessões em África, América do Sul, Ásia e Oceânia.

Lendo Conquistadores - Como Portugal criou o primeiro império global, obra do historiador Roger Crowley, especializado em história marítima e mediterrânea, fica-se com uma ideia, nua e crua, da dimensão do tráfego de escravos, da brutalidade da destruição de vidas, particularmente na costa oriental africana e na ásia, da própria destruição do comércio a oriente, a envolver muçulmanos – por quem, na época, se cultivava um ódio de estimação e eram vítimas, aquando dos implacáveis abates de embarcações carregados de pessoas e bens –. Sim, tudo isso não foi abordado nas escolas portuguesas, apenas os feitos gloriosos.

Por alguma razão, em 1998, a Índia não se associou a Portugal nas comemorações dos 500 anos da chegada de Vasco da Gama àquele país! E, pelo que se pode constatar, durante a leitura do referido livro, com estes capítulos da história, tiveram toda a legitimidade e é compreensível – ao preservarem essa memória histórica – que os indianos não estivessem minimamente satisfeitos com os portugueses daquela época, nem com os portugueses, de há um quarto de século atrás, que organizaram essas comemorações. Aliás, as relações diplomáticas entre Índia e Portugal só foram normalizadas após 25 de abril de 1974.

Mas vejamos como se chega a esse primeiro império global, criado em nome da fé, com um rei a julgar-se “messiânico”, firme na intenção de “destruição do bloco islâmico”. Falamos do rei D. Manuel I, que assumia, pomposamente, o título de “rei de Portugal e dos Algarves, Senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia e Índia”, quando para outros reis da Europa era visto como o “rei merceeiro”, por comercializar especiarias. É que além da bênção do Papa Júlio II, com direito à «posse perpétua das terras conquistadas aos infiéis, onde outros reis cristãos não tivessem reivindicações», chegou a ser-lhe concedido, pelo mesmo Papa, em julho de 1505, «um imposto de cruzada que poderia ser cobrado durante dois anos e remissão de todos os pecados para quem nele participasse». Convenhamos, seria reconfortante e uma atenuante para quem participasse nestes ferozes combates, saber que todo o mal causado a outrem ficaria livre de condenação divina, embora a bravura de muitos dos marinheiros resultasse do facto de serem prisioneiros, a quem lhes era dado oportunidade de sair da prisão e ir à aventura, conhecer “outros mundos”, em liberdade.

Há quem avance, agora, com a ideia de se destruir o Padrão dos Descobrimentos, localizado na zona Belém, junto ao rio Tejo, em Lisboa. O monumento original foi criado em 1940, com materiais perecíveis, em pleno regime salazarista, por ocasião da Exposição do Mundo Português. Com esta exposição, pretendia-se comemorar a fundação de Portugal [1140] e a restauração de Portugal [1640], e este monumento seria “para homenagear as figuras históricas envolvidas nos descobrimentos portugueses”, mas poderia funcionar como propaganda do Estado Novo, para exacerbar nacionalismos e fortalecer o regime ditatorial.  Em 1960, no mesmo local, foi criada uma réplica, em betão e em pedra, onde podem ser apreciadas as enormes esculturas de Leopoldo de Almeida. Estas, são representativas de várias figuras de notáveis da história deste país, muitas delas baseadas nos seis “painéis de São Vicente de Fora”, criados por Nuno Gonçalves, pintor régio de D. Afonso V. Naquele espaço, funciona o Centro Cultural das Descobertas, tem um auditório, duas salas de exposições e um miradouro.

Podemos não gostar das atrocidades cometidas durante as Descobertas, tal como podemos não gostar das atrocidades cometidas pela polícia política do regime do Estado Novo, mas ocultar ou escamotear essa realidade, ou, pior, aceitar esta onda de intolerância e de preconceitos com a história, que leva a querer destruir monumentos evocativos dessa mesma realidade histórica, é outra atrocidade que não se deve permitir. Nem que as peças escultóricas funcionem como interesse museológico, já que há muito deixaram de funcionar como propaganda do regime. Será deste modo que se purificam, na atualidade, os valores da nossa sociedade?

(Continua na Parte II, de IV)

© Jorge Nuno (2021)