28/09/2018

CRÓNICAS DO CORAÇÃO DO MINHO (25) - Casa de Meninas


CASA DE MENINAS

Neste mês tive o privilégio de assistir a dois espetáculos, um com a Gisela João e outro com a Ana Moura, ambas excelentes fadistas e fãs da diva Amália Rodrigues. Assim sendo, não será de estranhar que ambas tivessem cantado a conhecidíssima “Casa da Mariquinhas”. Foi sempre uma canção que me intrigou, tanto pelas dúvidas quanto aos verdadeiros autores da música e letra, como pela aparente saudade da Amália por uma casa de meninas, em tempo de ditadura. Pronto, cantava-se lá o fado e pode ser a explicação. Quanto ao autores… surgem Carlos Ramos, Silva Tavares, Alfredo Marceneiro, Amália Rodrigues, Alberto Janes, Capicua (mas esta será de excluir de imediato da versão inicial, pois nessa altura, se calhar, a mãe ainda nem tinha nascido). Uma primeira versão, atribuída a Silva Tavares e Alfredo Marceneiro, dizia o seguinte:
“(…)
Vive com muitas amigas
aquela de quem vos falo
e não há maior regalo
que a vida das raparigas
(…)
Pretendida, desejada
altiva como as rainhas
ri das muitas coitadinhas
que a censuram rudemente
por verem cheia de gente
a casa da Mariquinhas”.
Os autores não precisaram de incentivar ao consumo de ginjinhas e entendiam haver “regalo da vida das raparigas”, em tempos difíceis, mas em que elas eram obrigadas a ir à “examina”[1], e realçaram o perfil da dona do bordel. Oh… desculpem, da casa de fados.

O Carlos Ramos também terá dado voz a este tema. Sei que Fernando Maurício cantou “O leilão da casa da Mariquinhas”, não havendo dúvidas, pelos relatos escritos, que muitos ficaram desolados com o desaparecimento desta casa e da proprietária:
“(…)
Aprendiam-lhe as cantigas,
as mais ternas, coitadinhas,
formosas como andorinhas,
olhos e peitos em brasa…
que pena eu tenho
da formosa Mariquinhas”.

Mas foi a Amália a dar-lhe notoriedade, como em quase tudo que cantava. Ao que tudo indica, houve mão de Alberto Janes, com quem fazia uma parceria muito criativa, e surgiu este “remake” com o nome “Vou dar de beber à dor”:
“Foi no domingo passado que passei
à casa onde vivia a Mariquinhas
mas está tudo tão mudado
(…)
Entrei e onde era a sala agora está
à secretária um lingrinhas
(…)
E lá para dentro quem passa
hoje é para ir aos penhores
entregar ao usurário umas coisinhas
pois chega a esta desgraça toda a graça
da casa da Mariquinhas.
(…)
Recordações de calor
e das saudades o gosto eu vou procurar esquecer
numas ginjinhas
pois dar de beber à dor é o melhor
já dizia a Mariquinhas.

Se a Amália vivesse na época atual, teria de mudar… talvez fazer ainda uma nova versão, já que a canção incentiva à fuga à realidade e ao consumo de álcool, numa altura em que há campanhas para a sua redução, pela PRP[2]; a simples palavra “lingrinhas” seria denegrir a imagem de alguém que assume a sua sexualidade como entender, e teria à pega a comunidade LGBGT[3]; a SPA[4] a acusá-la de plágio e a exigir direitos autorais na música; por ser do domínio público, levaria a ASAE[5] a atuar, verificando o negócio da casa de penhores, e seria fechada à mesma, por negócio ilícito com ouro, logo aproveitado por fundos de investimento para especulação imobiliária ou para alojamento local. 

Também ouvi, presencialmente, a Amália a cantar a sua versão, mas aprecio mais a adaptação cantada pela Gisela João – com o seu vozeirão e alegria em palco –, creio que escrita pela Capicua (que acha estranhamente acha que hoje “as vacas são lingrinhas”):
“Foi numa rua escura que encontrei
a tal casa de fado ‘A Mariquinhas’
que de Alfredo Marceneiro
veio ao nosso cancioneiro
como sendo uma casa de meninas.
(…)
Mas foi sol de pouca dura
que mesmo sem ditadura
hoje em dia até as vacas são lingrinhas,
agora veem meus olhos
que nem amor, nem penhor,
esta casa está mais velha que as vizinhas
(…)
por fora toda riscada,
e encostada na fachada, uma menina[6],
mas esta não canta o fado
só sabe fumar cigarro
(…)
E aqui estou eu à porta desgostosa
vendo a casa que está morta em ruínas
por causa deste senhores
até já nem tem penhores
porque já ninguém tem ouro nas voltinhas
mas se eu fechar os olhos
e imaginar as farras
(…)
vou cantar toda a vida.   
    
Na verdade, tanta gente preocupada com o fecho da casa da Mariquinhas! E a pastelaria Suíça, símbolo do Rossio e da baixa pombalina de Lisboa – que teve o mesmo destino, com todo o quarteirão a ser comprado por um fundo de investimento estrangeiro – não teve direito a indignação, nem nenhuma cantiga! Intrigante… 

Não pretendo fazer a apologia da casa de meninas, mas não haverá maior promiscuidade e prostituição nos negócios imobiliários, sempre que se movimentam muitos milhões nos centros históricos das grandes cidades?   

Obs.: Prometo voltar, para abordar outras cantigas…

© Jorge Nuno (2018)  



[1] Controlo sanitário.
[2] Prevenção Rodoviária Portuguesa.
[3] Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgénero.
[4] Sociedade Portuguesa de Autores.
[5] Autoridade de Segurança Alimentar e Económica.
[6] Que agora não vai à “examina”.

15/09/2018

CRÓNICAS DO CORAÇÃO DO MINHO (24) - Afinal, Muda a Hora?

AFINAL, MUDA A HORA?

Afinal, muda a hora?
Pouco importa à patusca da minha vizinha; vizinha que se deita cedo com as galinhas; galinhas que dão uma saborosa canja; canja que há quem diga ser boa para a alma; alma francamente despreocupada com o inferno; inferno que estará a abarrotar de bem-intencionados; bem-intencionados que persistem em mudar a hora; hora de inverno, hora de verão, porque desde 1916 que é assim; assim, a pensar num esforço de guerra, pretendia-se poupar combustível; combustível atualmente com injustas sobretaxas por corrigir; corrigir estúpidos erros de um passado bélico, quando ainda se lia à luz da vela.  

Afinal, muda a hora?
É irrelevante para a minha gata; gata que é um regalo vê-la dormir; dormir bem não é para muitos; muitos acham mesmo que as insónias são um inferno; inferno que é somente aqui na Terra; terra que nos dá o pão; pão que não há em todas as mesas; mesas onde se tomam decisões; decisões nem sempre as mais acertadas; acertadas as horas, teimosamente, duas vezes por ano; ano que devia contemplar esta simples mudança; mudança que dizem ter implicações - esforço inútil no argumentar; argumentar tosco, simulando preocupação com as alterações na rotina dos animais, e de humanos com problemas cardiovasculares e perturbações de sono.

Afinal, muda a hora?
Quer lá saber a criança, ao ver desenhos animados; animados são os dias de quem tem entusiasmo pela vida; vida que deve ser vivida no presente; presente, disseram e responderam à consulta pública 4,6 milhões de europeus, que não querem a mudança da hora; hora é problema e chatice para o presidente da Comissão Europeia (CE), deixando-o agoniado; agoniado, fica todo e qualquer eurodeputado se tiver de debater o assunto à sexta-feira; sexta-feira é bom dia para os membros do Conselho Europeu reunirem e prolongar a estadia de férias num dos 27 estados-membros; estados-membros, CE, PE[1] e portugueses que não reagem ao saber que, entre 2006 e 2018, os consumidores portugueses desembolsaram 22,6 mil milhões de euros de rendas excessivas à produção de energia elétrica[2], sob a forma de enormes impostos indiretos, sem discussão nem transparência.    

Afinal, muda a hora?
Irra! Há cem anos que se anda a discutir a mudança de hora, quase sempre em torno da energia. Já não há paciência, nem para encadear mais acontecimentos. Não leio nem escrevo à luz da vela, embora reconheça que possa ter o seu encanto, numa perspetiva romântica. Eu faço a minha parte: com preocupações ambientais e de poupança nas finanças pessoais, uso as vulgarizadas lâmpadas LED e equipamentos elétricos e eletrónicos, classificados com A e alguns + + +. Vá, meus senhores, deixem-se de pruridos, despachem-se na formalização da decisão e deixem-nos à nossa sorte com o horário de verão o ano inteiro! Cá nos havemos de desenrascar, e não há outro povo como os portugueses para o desenrascanço; nisso somos mesmo bons. Quero pressa neste assunto, pois não achei graça nenhuma ter gozado o meu aniversário num dia com apenas 23 horas! Certamente a gata pressentiu a minha indignação e ficou com o sono alterado – só por isso. Quanto à minha vizinha, que continue a deitar-se cedo com as galinhas, que não é da minha conta. Quanto à criança, custa-me vê-la tantas horas a olhar para os desenhos animados no televisor ou no smartphone, quando se pode desenvolver harmoniosamente com tanta coisa agradável para fazer/mexer. A menos que, até lá, seja preciso esperar pela aprovação de dossiês legislativos pelo PE, para uniformizar o modo como todas as criancinhas devem brincar no espaço europeu. E se for um ato legislativo abrangido pela codecisão e o Conselho Europeu estiver em discordância? Ou a CE meter, dissimuladamente, a colherada onde não lhe compete, e revirar o processo, que nos obriga a repensar a apregoada democracia. A ser assim, as criancinhas bem podem ficar à espera… mas também, ao fim de poucas horas, caem para o lado carregadas de sono; ah… e sem preocupações com a mudança de hora.

Afinal, muda a hora?

© Jorge Nuno (2018)




[1] Parlamento Europeu.
[2] Divulgação feita por Abel Mateus (antigo presidente da Autoridade da Concorrência), na comissão parlamentar de inquérito às rendas excessivas da energia, em 11-09-2018. 

01/09/2018

CRÓNICAS DO CORAÇÃO DO MINHO (23) - Com a Mentira Me Enganas


COM A MENTIRA ME ENGANAS

“Notícia de última hora: desapareceu a estátua da Liberdade. Ah… ela sente-se cansada e sem energia; não lhe apetece trabalhar. Felizmente existe (…) magnésio e potássio. Agora sim, sente-se com energia para desfrutar da vida”.

“Para comemorarmos o 25.º aniversário, apresentamos-lhe o cadeirão elevador de pele autêntica que cuida da sua saúde, alivia as dores, e combate as insónias. (…) Tudo em suaves mensalidades, sem juros.”

“Apresento-vos a pulseira da felicidade (…) é uma jóia, símbolo do amor, prosperidade e sorte (…)”. É composta por: “elefante, com uma safira, que é o símbolo da proteção; trevo, com uma esmeralda, para que a sorte guie os seus passos; coração, com um rubi, para que brilhe sempre com a força do amor”.

“Agora pode perder 78% da gordura abdominal, em três meses, através das cápsulas (…)”.

“É importante mantermos os níveis de cálcio (…) dê mais vida àqueles que ama” e faz-se um apelo à compra de embalagens de um suplemento alimentar para “fortalecer os ossos” e para oferecer, incluindo até como presente de Natal.

“Apresento-vos a última novidade em frigideiras, feitas em partículas de cobre [aparece no ecrã “cobre a 100%”] e com revestimento de cerâmica. Comida fácil e saudável, sem truques e limpá-la é facílimo [aparece no ecrã “limpa com uma só passagem (…) é resistente para toda a vida”].

“Sente zumbidos nos ouvidos? Peça o seu guia dos zumbidos grátis”. “Precisa de ouvir melhor mas ainda não encontrou uma solução? É garantido! Diga adeus às pilhas (…) é totalmente recarregável. Se ligar já, recebe inteiramente grátis este cachecol para apoiar Portugal em todos os momentos”. “Amplificador auditivo por € 4,99. Agora pode ouvir a televisão agradavelmente com toda a família. Com quatro adaptadores de ouvidos e útil ferramenta de limpeza. Ouça mais, pague menos”. “Peça já o seu aparelho auditivo amostra grátis, sem compromisso”. “Conhece alguém que põe o som da TV demasiado alto? Já viu uma situação em que um familiar seu atravessa uma rua sem ouvir os carros que se aproximam? Você esforça-se para ouvir as conversas nos seus encontros e festas?”. “É a solução de baixo preço para ouvir os sons mais altos. Não se esforce para ouvir (…) receba o seu amplificador auditivo por € 4,99”. “Gostaria de melhorar drasticamente a sua audição? Temos 500 amostras grátis de aparelhos auditivos para oferecer. Ainda há 500.000 portugueses com dificuldades em ouvir e nada fazem. Ligue agora para receber a sua amostra grátis”. Este parágrafo reporta-se a anúncios de seis marcas diferentes de aparelhos, na TV, num curtíssimo espaço de tempo.
   
Imagine-se os seniores, em casa, sentados no sofá, durante o dia e num apreciável número de horas frente ao televisor e a serem bombardeados com todo este tipo de publicidade, a cada 20 minutos, se não mudarem de canal ou não desligarem o televisor.

Na ótica do investidor, é conhecida a importância da estratégia da comunicação e uma elaboração adequada de conteúdos publicitários, particularmente quando se pretende segmentar e atingir um determinado público-alvo. Focando-nos no mercado audiovisual, aqui apontado como exemplo, o objetivo é persuadir a aceitar a ideia e “convencer” esse público-alvo a adquirir o produto apresentado. A Igreja Católica Apostólica Romana, que tem denotado vontade e ousadia de dar orientações, e até querer regular a atividade em muitas áreas, fora da religião, também a publicidade não escapou. Ela reconhece a importância da publicidade, e pode ler-se na “Introdução” do documento intitulado “Ética da Publicidade”[1], que se constitui como «uma poderosa força de persuasão que modela as atitudes e comportamentos no mundo contemporâneo». Mais à frente, em “Algumas medidas a ser adotadas”, ponto 18, refere: «Os indispensáveis garantes dum comportamento ético correto da indústria publicitária são, antes de tudo, as consciências bem formadas e responsabilizadas dos profissionais da publicidade: consciências sensíveis ao próprio dever, não só de satisfazer os interesses dos que encomendam ou financiam o seu trabalho, mas também de respeitar e velar pelos direitos e interesses do seu público e de servir o bem comum (…). Torna-se, portanto, necessário prever estruturas externas e regras que apoiem e encorajem um exercício responsável da publicidade e desanimem os irresponsáveis» e, no ponto 20, «As normas governativas deveriam interessar-se (…) sobretudo nos programas de TV, (…) pelos conteúdos publicitários que se destinam a categorias fáceis de explorar, tais como crianças e pessoas idosas». É evidente que essas “normas governativas” existem na maior parte dos países, assim como há organismos que defendem os consumidores e alertam para práticas incorretas.

Se a pulseira não protege, nem dá sorte, nem faz a pessoa brilhar “com a força do amor”… Se o cadeirão não combate as insónias… Se o prejuízo nos aparelhos auditivos é de um valor quase simbólico, a que acresce o custo da chamada e dos portes de envio [mas com um par, na realidade, a custar 3 mil euros, já com desconto igual à idade]… Se o desaparecimento da estátua da Liberdade apenas consegue despertar a atenção… Se a frigideira não cumpre e deixa agarrar um simples ovo estrelado… Tudo isto parece inócuo, mas merece reflexão e atuação firme das entidades responsáveis.

Depois de imensas queixas, a DECO[2] testou a tal frigideira 100% de cobre, anunciada insistentemente na TV, e os técnicos da Proteste concluíram tratar-se de uma «frigideira de alumínio com um revestimento antiaderente» e afirmaram tratar-se de «publicidade enganosa». É que, para comparar, testaram mais duas frigideiras de outras marcas, e apontam precisamente uma (vendida numa grande superfície comercial, de origem sueca) como sendo mais eficaz e que tem um custo de € 3 – dez vezes mais barata!

O bastonário da Ordem dos Farmacêuticos[3] afirmou ter interposto uma providência cautelar para suspender a venda do produto destinado, supostamente, a “fortalecer os ossos”. Disse que se «ultrapassou tudo o que é minimamente aceitável» e alertou para o risco de lesões graves, originado pelo consumo indiscriminado deste tipo de produtos e que, por não serem considerados medicamentos, não têm controlo por parte do Infarmed[4]. «É uma situação que configura publicidade enganosa, abusiva, que cria falsas expetativas nos consumidores. Não está demonstrado que o suplemento de cálcio possa diminuir as fraturas ósseas. Pelo contrário, está demonstrado que as pessoas ficam expostas a riscos elevados de acidentes cardiovasculares, de problemas renais, até de problemas gastrointestinais e obstipação». Quem esteve na mais recente feira do livro de Braga e assistiu a uma sessão animada com Simone de Oliveira[5], viu-a gracejar, e bem, “desacreditando” este produto, pelo qual “deu a cara”. Quem conhece esta senhora, sabe da sua verticalidade e como se devia sentir desconfortável.

Nesta semana, enquanto nos intervalos passavam anúncios de automóveis ligeiros, com letras pequenas a indicar os consumos e emissões poluentes, nos vários canais noticiosos de TV surgiam os títulos: “Indústria automóvel enganou os automobilistas portugueses em 1,6 mil milhões de euros desde 2000, manipulando o real consumo dos veículos” [e as emissões poluentes], baseado num estudo encomendado pela Federação Europeia de Transportes e Ambiente. Já em 2012, um estudo, elaborado pelo Instituto Superior Técnico, indicava que os carros vendidos em Portugal tinham emissões poluentes, em estrada, que chegavam a ser seis vezes superiores ao que é garantido pelas marcas, em laboratório. A indústria automóvel refuta a ideia de “fraude”.

Até aos ajustes há quem cante, como os “Diabo na Cruz”: «(…) Quem viu corda ao pescoço / Se é safado se se safou (…) / Quem tem vala de bandido / Leva a frade luva branca (…) / Siga, siga a rusga agora / Siga a rusga, foi bem boa a nossa hora (…)».
© Jorge Nuno (2018)






  




[1] Elaborado pelo Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, datado de 22 de fevereiro de 1997.
[2] Defesa do Consumidor.
[3] Numa entrevista concedida à Rádio Renascença.
[4] Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos da Saúde.
[5] Cantora e atriz.

18/08/2018

CRÓNICAS DO CORAÇÃO DO MINHO (22) - Flagrantes... Em Noites Frescas de Verão


FLAGRANTES... EM NOITES FRESCAS DE VERÃO

Tal como o crescimento económico tem vindo a arrefecer, o mesmo acontece com as noites de verão, ficando o registo que julho de 2018 foi o mês mais frio em Portugal nos últimos trinta anos. Mesmo que se diga, e sinta, que as noites de verão já não são o que eram, sabe sempre bem relaxar perante espetáculos ao ar livre e gratuitos; se uns serão de puro entretenimento, outros possibilitam um autêntico “banho” de cultura e dão mais cor à nossa existência.

As festividades do 308.º aniversário do Regimento de Cavalaria N.º 6 encerraram na avenida Central, em Braga, com um concerto da Orquestra Ligeira do Exército, que brindou e encantou o numeroso público presente. Tendo a basílica dos Congregados mesmo ao lado, não se evitou o badalar dos sinos em pleno concerto, pelas 22 e 23 horas. Foi um facto desagradável a merecer um reparo, pois bastar-se-ia pedir previamente para se desligar o som ou reduzir o volume do toque eletrónico dos sinos, mas de difícil aplicabilidade, uma vez que aquela avenida está quase permanentemente em festa. Centrando-nos nas coisas boas, sobrepôs-se a já esperada qualidade do espetáculo.

Cinco dias depois, realizou-se um “Concerto de Verão” pela Orquestra Filarmónica de Braga, agora noutro local da cidade – o Rossio da Sé – mesmo ao lado da Sé de Braga. No alinhamento do programa surgiu a peça “1812”, de Tchaikovsky. Antes de se iniciar esta peça – superiormente escrita para comemoração da vitória das tropas russas sobre as de Napoleão –, o maestro Filipe Cunha fez uso do microfone para fazer o enquadramento e informar que os sinos da Sé iriam estar sincronizados com a música da orquestra; seria uma forma de dar ênfase ao sentimento de júbilo pelo fim da ameaça francesa. E os sinos tocaram mesmo, durante uns minutos, enquanto era executada esta peça! Parece ter sido pregada uma partida a quem antes do início do concerto afirmou: “Espero que os sinos da Sé não toquem durante o concerto”. Mais uma vez, com foco no lado positivo… foi um concerto de repertório bem seleccionado para a época e que cumpriu, visível pelos fortes e prolongados aplausos.

Pouco depois, e durante três dias, a avenida Central voltou a ser palco de novos festejos, desta vez em simultâneo: o Vinho Verde Fest e o Festival Internacional de Folclore. Enquanto esperava pelo início deste último, após ligar um canal noticioso de televisão no smartphone, deparei-me com o ministro da Administração Interna, no Algarve, rodeado de “autoridades”, a tentar chamar a atenção para os efeitos nefastos do elevado consumo de álcool e a necessidade de moderação no consumo. Olhando à volta do palco, nas bancadas e na própria avenida, era impressionante o número de pessoas com copos de vidro na mão, já vazios ou contendo bebidas. É que decorria a iniciativa a estimular a “prova de 200 vinhos [verdes da região] e harmonizações gastronómicas e vínicas, ‘showcookings’, animação com DJ’s…”. Não deixou de ser irónico!...

No Festival Internacional de Folclore, os espetadores mais atentos conseguiam observar algumas curiosidades e recortes de um passado longínquo ao recente, a evidenciar as inúmeras diferenças culturais entre povos de regiões distintas, mas, nalguns casos, com denominadores comuns. Continuando na ordem do dia a problemática da igualdade de género – conducente a “guerra de sexos” – e a violência, inclusive a doméstica, estas pareciam estar ali estranhamente representadas. Havia a presença de grupos do Minho (Portugal), Índia, Peru, Sérvia, Espanha, Eslovénia, Eslováquia, Itália, Polónia e Madeira (Portugal). O grupo indiano denotou performances distintas, mas em quase todas via-se claramente a separação por sexos – mulheres para um lado e homens para outro –, mas em que pairava no ar a magia da sedução, sem toque físico, tanto na dança mais clássica como ao estilo “bollywoodesco”. Do Peru, através de uma dança executada por um casal, ficou realçada novamente a sedução, a fazer lembrar um ritual de acasalamento entre aves sul-americanas. Ele rodeava-a, de lenço na mão, a tentar tocar-lhe e ela furtava-se ao toque; quando finalmente acedeu, ele pegou nela às costas e saiu de palco. O grupo da Sicília iniciou com os homens de cajado a ver as mulheres dançar. Aos poucos foram-se metendo, formando pares, até que estalou o desentendimento – a eterna luta de dois ou mais homens por uma mulher –, levando a parar o baile, afastamento das mulheres e simulação de uma tremenda luta com cajados; logo que reposta a serenidade, o baile prosseguiu, com o efeito tranquilizador da música. Da Eslovénia, surgiu um casal de noivos a brigar verbalmente em palco; descarregada a tensão, surge a reconciliação, o casamento e o animado baile com os noivos e os muitos convidados; numa das danças, surgem dois homens juntos, a dançar agarrados, o que leva a refletir sobre esta realidade – os sinais do tempo parecem acenar-nos com outras opções e mais tolerância –. Da Sérvia, verificava-se um início da dança a tender para a separação por mulheres e homens, e performances a ritmos vertiginosos, com graciosidade das mulheres, sempre sorridentes, e postura musculada dos homens, de cordoamento na mão, como se tratasse de um chicote, fazendo-o tocar com estrondo no chão, para intimidar e submeter. Os homens, com esse “chicote”, iam supostamente “eliminando os adversários” até ficar só um deles com uma mulher. Ironicamente, no fim, o homem saiu de palco amarrado pelo seu “chicote”, puxado pela mulher, deixando a ideia que, afinal, o homem machão, musculado, pode ser subjugado pela beleza e inteligência feminina.

Uns dias depois, quando uma massa de ar quente levou a que se tivessem vivido os dias mais quentes de sempre no interior e sul de Portugal, estava-se de volta à avenida Central para se viver “Do Bira ao Samba” e um carnaval fora do tempo. Um animado programa, a interligar Portugal e Brasil, incluiu a presença dos caretos de Ousilhão, de Trás-os-Montes (Portugal). Estes, com as suas travessuras e achocalhar, fizeram a ronda entre o público e criaram o “caos” junto das mulheres. A dado passo, vê-se um careto a agarrar uma jovem, colocá-la aos ombros e simular afastar-se do recinto com ela.

Não tem necessariamente de haver “moral da história”, mas daqui resultam evidências: as mudanças bruscas e extremas de temperatura, resultantes das alterações climáticas; o interesse da animação cultural na vida das pessoas; a complexidade do relacionamento humano, mesmo que visto sobre o prisma do folclore; o por quê de Braga ter a cidade com mais qualidade de vida[1] e a população com maior índice de felicidade em Portugal[2].

© Jorge Nuno (2018)



  


 





 





[1] Fonte: Eurobarómetro – Percepção da qualidade de vida nas cidades europeias [75 cidades].
[2] Idem.

21/07/2018

CRÓNICAS DO CORAÇÃO DO MINHO (21) - Evolução - Entre Cemitérios e Corridas


EVOLUÇÃO – ENTRE CEMITÉRIOS E CORRIDAS

Normalmente, quando alguém, ou algo, chega ao fim de vida, torna-se inevitável falar em cemitério, quer se goste ou não da palavra ou da ideia. Comecemos pela ilusão dos “carros de sonho”. Sim, tal como as pessoas muito ricas, com um estatuto privilegiado na sociedade, também as viaturas mais fiáveis e apelativas no mercado, por mais caras que sejam e que dão status, vão parar ao cemitério e deixam-nos a certeza de que nada é eterno. Exemplo disso é o “estranho” cemitério com Ferraris, em Sacramento, E.U.A.

Entretanto, parece “normal” o cemitério quando se trata de viaturas clássicas / antigas. Tanto existe no Alabama, E.U.A., como em inúmeros locais do mundo, e que tem vindo a despoletar questões ambientais, pelos verdadeiros atentados à natureza. O maior cemitério de carros clássicos da Europa está situado num país impensável – a Suécia! Aconteceu a partir de 1967, ano em que se fez um referendo e foi aprovada a condução com o volante à esquerda, o que provocou a substituição, em massa, de viaturas com o volante à direita. Em 2017, a marca sueca Volvo anunciou que só iria produzir veículos elétricos. Prevê-se, num futuro próximo, um novo incremento de carros usados, movidos a gasóleo e gasolina, abandonados em cemitérios naquele país.    

No final de 2015, rebentou o escândalo, rotulado como o Dieselgate, após a descoberta que uma conceituada marca alemã – a Volkswagen (VW) – manipulou o software de mais de onze milhões de viaturas movidas a gasóleo e produzidas nas suas fábricas, para contornar os testes de emissões poluentes, que evidenciavam emissões bem superiores ao anunciado. Pressionada pelos E.U.A., a VW readquiriu, aos proprietários e concessionários, cerca de 350.000 veículos, gastando 7,4 mil milhões de dólares americanos e depositou-os em vários lotes de terreno espalhados pelo território norte-americano, com um total de 37 cemitérios. Nestes, inclui-se os cemitérios gigantes de Victorville, no deserto californiano, e em Detroit, sendo surpreendente e chocante a vista aérea com uma imensidão de automóveis novos e seminovos, alinhados, à espera de ser demolidos [e já o foram cerca de 20.000, segundo a agência Reuters]. Enquanto executivos da VW aguardam julgamento, outros responsáveis da marca admitem que, apesar dos elevados custos, as viaturas possam vir a ser reparadas e devolvidas aos clientes, prevendo-se que algumas outras possam ser “recondicionadas”.

Observa-se uma produção na indústria automóvel superior à procura, que provoca o armazenamento dos stocks excedentes a céu aberto, em muitos pontos do mundo. Entre outros, são muito conhecidos os casos de viaturas novas não escoadas e em elevado número nos seguintes locais: porto de Sheerness, Corby e Avonmouth, Inglaterra; São Petersburgo, Rússia; porto de Civitavecchia, Itália e porto de Valência, Espanha.

Contrariamente ao exposto, em Portugal, as vendas de viaturas novas tem vindo a disparar. O Diário de Noticias on-line, de 17 de julho de 2018, divulgou que «em maio de 2018 foram batidos recordes [na concessão de crédito automóvel, neste país]», sendo que nos primeiros cinco meses do ano registaram-se mais de 89.000 financiamentos concedidos[1], a «um ritmo de quase 600 por dia», levando a empréstimos de «mais de 1,26 mil milhões de euros nesse período». As novas regras de concessão de crédito recomendadas pelo Banco de Portugal vêm colocar travão nas vendas. A par desta iniciativa, a Comissão Europeia quer que os estados-membros apliquem o novo método WLTP (worldwide harmonized light vehicles test procedure), mais realista quanto a consumos e emissões poluentes, transitoriamente, a partir de 1 de setembro, que levará a aumentos significativos do custo de aquisição das viaturas convencionais novas, e definitivamente em janeiro de 2019, que conduzirá a novo aumento.    

Quanto aos muitos milhares de automóveis elétricos, produzidos inicialmente como um produto inovador, mas com um risco mal calculado, foram apodrecendo em grandes cemitérios, devido a lóbis da indústria petrolífera e da indústria automóvel convencional, além da falta de autonomia das viaturas elétricas e da inexistência de pontos de abastecimento elétrico, confinando-os a pequenos circuitos locais.

«Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades / muda-se o ser, muda-se a confiança: / todo o mundo é composto de mudança / tomando sempre novas qualidades (…)»[2]. Em Portugal, a venda de carros elétricos também disparou, registando-se um aumento de 130% em julho de 2017, face a período homólogo. Com os incentivos fiscais, decorrentes da ausência de emissões poluentes, a tendência é para continuar a aumentar as vendas de veículo com esta tecnologia amiga do ambiente, reforçado pelo novo ajuste que faz disparar o preço das viaturas a gasolina e gasóleo.

Atenta à evolução, a FIA[3] criou a série Fórmula E, com carros elétricos e que, além da competição, promovem o desenvolvimento deste tipo de viatura, ao nível da potência, aerodinâmica, eficiência…

Em junho de 2018, realizou-se em Portugal o 1.º Eco Rally, com carros exclusivamente elétricos, integrado no FIA Electric and New Energy Championship 2018. Teve classificativas nas serras da Arrábida e de Sintra. Segundo a UVE[4], que esteve na organização, «pretende-se medir a regularidade, não a velocidade pura».

No cemitério do Gethsêmani Morumbi, São Paulo, Brasil, que tem uma área de 135.000 metros quadrados, está disponível uma significativa frota de veículos elétricos para facilitar o acesso das pessoas às campas distantes da portaria, e também para transporte dos defuntos à sua última morada. 

Até lá… bons passeios, sem pressa e, preferivelmente, sem poluição.
© Jorge Nuno (2018)

       




[1] Fonte: Banco de Portugal.
[2] Luís Vaz de Camões, num soneto escrito em pleno século XVI.
[3] Federação Internacional do Automobilismo.
[4] Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos.