06/06/2019

Poderá Ser Saudade...


PODERÁ SER SAUDADE… *

Após uma mudança radical, impensável há cerca de três anos atrás, vejo-me numa caminhada diferente da que sonhei em abril de 2004 e que reproduzo. Tratava-se de uma caminhada a pé, muito morosa, cansativa, embora fosse apreciando esta aventura, cheia de peripécias rocambolescas. Ficava a sensação de saber qual o destino, mas sem ter presente o nome da localidade, o que se poderia tornar confuso para um qualquer incauto viajante. Acordado, sempre tive presente o provérbio do povo berbere:
Se não sabes para onde queres ir, vais demorar muito tempo a lá chegar.
Neste caso, a sonhar, mesmo sem smartphone, dados móveis e GPS, acreditava ir no caminho certo. Não posso afirmar que se tratava de algo semelhante a um peregrino que se dirigia a Santiago de Compostela mas, se o fosse, não havia itinerário original do caminho português de Santiago, com as habituais sinaléticas da concha amarela. Cada vez mais se consolidava a ideia de haver um desígnio superior nesta viagem. Finalmente, vejo-me chegar a uma povoação que não identifiquei de imediato, por haver terrenos barrentos remexidos, como quem anda a fazer terraplanagens e a abrir uma estrada mais larga do que o habitual. Estremeci quando o meu olhar alcançou, ao longe, por cima de arvoredo, algo que conhecia bem: o castelo e o monte de São Bartolomeu. Tinha chegado a Bragança, pela entrada do Portelo e encontrava-me na zona da Quinta da Braguinha. Senti uma alegria imensa por estar numa cidade de onde não queria sair há três décadas, mas que outros condicionalismos acabaram por me empurrar para a capital do país. Quando acordei, anotei o sonho e tentei decifrá-lo. Tudo se precipitou e quatro meses depois fazia um contrato de promessa de compra-venda para a minha nova residência, em construção na zona da… Braguinha. Quando fiquei aí instalado, perpetuei, em 2006, o referido sonho, executando a obra de pintura a óleo “Névoa sobre Bragança”, que tem um significado especial para mim.

À presente data, a viver noutra cidade, após um upgrade ao meu computador pessoal, personalizei o fundo do ambiente de trabalho, utilizando uma foto tirada por mim em 2016, com uma vista parcial de Bragança. A partir do monte de São Bartolomeu podia ver-se, ao longe as serranias de Espanha e do Parque Natural de Montezinho e, na cidade, com algum realce: as zonas do Campo Redondo e da Mãe d’Água; os novos bairros do Sol e da Rica Fé; o antigo Liceu (agora requalificado); as torres de iluminação do estádio municipal; os edifícios da autarquia; a nova catedral; o centro histórico; a torre da antiga sé; o castelo; e distinguia, perfeitamente, a minha anterior residência. A “minha” residência!… Fiquei por longo tempo a olhar para esta “nova” imagem no monitor. Surgiu um turbilhão de ideias, estranhamente com tendência para o nostálgico, esboçando uns sorrisos quando entrecortava com a lembrança de algumas loucuras ou casos insólitos. Este “estranhamente” é porque não me considero saudosista; acredito que “para a frente é que é o caminho”, desbravando novos caminhos – como fiz toda a vida –. Mas, poderá chamar-se a isto saudade?

Ao fixar-me nos edifícios da autarquia, relembrei episódios ocorridos aí há 45 anos, onde estava instalado o Batalhão de Caçadores N.º 3, e a loucura e irreverência da juventude, com os militares mais ousados ou esclarecidos, a quebrar ou a contornar os protocolos do rigor militar, num camuflado desafio à autoridade, que tinham dificuldade em reconhecer ou aceitar.

Poucos meses depois do 25 de abril de 1974, em pleno verão, não sendo apreciador da monotonia de tarefas semelhantes à de amanuense, prontifiquei-me, voluntariamente, para ir com sapadores fazer rebentamento de explosivos. Fizemo-lo num dos morros desertos, apenas com vegetação rasteira, para os lados da aldeia de França, já muito próximo da fronteira com Espanha. Refletindo agora, não sei como se pode ter prazer em ouvir aqueles estrondos e ver uma imensidão de cascalho ser projetado em todas as direções. Igual prazer, foi ver, através de binóculos, os carabineiros que observavam a movimentação dos militares em território português, numa altura em que nuestros hermanos ainda não tinham resgatado a liberdade e a democracia, enquanto por cá essa sensação recente estava em alta. Já no inverno anterior, igualmente rigoroso ao de todos os anos na Terra Fria, relembro o espanto e a “patinagem” de jovens militares em exercícios militares, em pleno rio Sabor gelado, poucos quilómetros a norte da cidade. Estes, tentavam levianamente explorar e desafiar as leis da física, levando ao limite o esforço para quebrar aquela massa gelada, até descobrirem o desagradável sabor de um banho naquelas condições, perante as estridentes e contagiantes gargalhadas dos menos ousados. Pouco antes, já se tinha testado o trabalho em equipa, forçosamente e com sucesso, segurando e arrastando, com cordas, a primeira viatura militar em que seguia – uma viatura pesada Berliet – prestes a despenhar-se numa ravina sobranceira ao rio Sabor, antes de uma curva acentuada da N 103-7, cujo asfalto encontrava-se com gelo. Poderia ter sido fatal para mais de 30 militares mas, felizmente, acabou por não ser notícia.    

Repentinamente, vem-me à mente a pequena rua Dr. António Cagigal, contígua à rua Alexandre Herculano, recordando a venda de leite à porta, de manhã cedo, e logo fervido, acompanhado de trigo, comido ainda morno – sabor que, apesar dos tempos longínquos, ainda não se extinguiu totalmente do meu paladar. Na mesma rua, relembro o amigo Humberto da Silva Queiroz, um conhecidíssimo empresário alto-duriense radicado em Bragança, já falecido. Construiu, à época, a mais conceituada casa de pronto-a-vestir da cidade. Era um homem austero, por vezes irritante, particularmente quando se aproximava a hora de fechar o estabelecimento, ao fim do dia; pegava numa vassoura e, para espanto daqueles que não o conheciam assim tão bem, começava a varrer junto dos pés dos clientes; o seu silêncio e este gesto, era a forma pouco ou nada agradável que encontrava para dizer: “Amanhã é outro dia, venham com mais tempo!”. Vejo-o subir essa pequena rua íngreme, sozinho, pausadamente, sem pressa, com o seu “gasparinho” numa das mãos. Tratava-se do cofre com o dinheiro vivo das vendas diárias, numa altura em que nem se sonhava, sequer, na via eletrónica, tanto para transferências bancárias ou pagamentos automáticos com cartões de débito ou de crédito, ou sistema de compras e transferências imediatas com smartphone ou tablet, conhecido como “MB WAY”; também, numa altura em que as pessoas se sentiam em segurança na rua, na posse de bens de valor, sem necessidade de dissimular ou ir acompanhado de guarda-costas. Mas esta figura austera quebrou, completamente, num dia de aniversário. Adaptei a letra da canção “Y Viva España” – um pasodoble de grande sucesso em 1972 e anos seguintes – e escrevi à mão essa “nova” letra em várias folhas, que entreguei aos seus empregados. Ao fim daquele dia de trabalho, reuniu-se os empregados daquela casa, em combinação com a própria esposa – D. Mariazinha Queiroz –, uma doçura de senhora e a verdadeira “alma” daquele estabelecimento comercial, ficando um lugarzinho reservado para ela no meu coração, esteja onde estiver noutra dimensão. Quando o Queiroz surgiu à porta com o seu “gasparinho”, comecei a entoar a canção com o meu acordeão, logo seguido do coro improvisado. Surpreendido ao som de “E Viva o Queiroz!...” os seus olhos ficaram humedecidos. Tratou-se de um momento memorável, intimista, de fraterno convívio; seguramente, bem diferente dos que ele passava regularmente com os amigos, à noite, para beber os seus whiskeys ou outras bebidas, só ao alcance de alguns. 

Surgem em catadupa outras loucuras, como a de ir ver jogos de futebol no estádio municipal de Bragança, em apoio ao Clube Desportivo de Bragança, ao domingo e em pleno inverno, com temperaturas baixíssimas, algumas vezes negativas e, por vezes, com a crueldade do vento norte, quando a Sanábria se encontrava coberta de neve. Ninguém com luvas consegue ouvir-se a bater palmas, por muito merecidas que sejam, o que faz com que, só por isso, um evento desportivo deixe de fazer sentido. Afinal, a frieza do ambiente externo parecia contagiar e afetar os espetadores. Sobrepondo-se a tudo, ouvia-se com enorme destaque, isso sim, uma assídua e conhecida senhora da cidade, a gritar repetida e entusiasticamente das bancadas para o campo: “Força equiiiiipaaaaa!”. Isto, até chegar a altura em que o discurso, sempre a alta voz, se alterava. Perante um resultado desfavorável, uma simples falta não assinalada ou suposta evidência de dualidade de critérios pela “malandragem” da arbitragem, era vista com o intuito de prejudicar a equipa da casa, e surgia o grito de revolta: “Vocês são todos uns corruuuuuuptoooos!”. Tal, era recorrente e, uma das vezes, um amigo ao meu lado tocou-me no braço, olhei e disse-me: “Ela tem um filho árbitro!”. Esbocei um sorriso, voltei a olhar para o relvado. Mas sempre senti que aquela senhora fazia falta nas bancadas para empolgar os jogadores e a assistência, além de ela própria descarregar a tensão acumulada durante uma semana no seu emprego.

Já em tempos de telemóveis, revejo, num relâmpago, a minha queda nas escadas, cobertas de neve, da Escola Abade de Baçal e o voo do telemóvel a uma distância aparentemente impossível, tal o impulso involuntário. Não, não parti o telemóvel, como aborda a canção vencedora do Festival da Canção 2019, que faz parte da programação anual da RTP! Pode não parecer, mas esta estranha canção – com letra, música e interpretação do jovem Conan Osíris – também refere a “Saudade”, senão vejamos:
Eu parti o telemóvel / a tentar ligar para o céu / pa’ saber se eu mato a saudade / ou quem morre sou eu (…)
E se eu partir o telemóvel / eu só parto aquilo que é meu / tou para ver se a saudade morre / vai na volta, quem morre sou eu (…)
Eu partia telemóveis / mas eu nunca mais parto o meu / eu sei que a saudade tá morta /
quem a mandou a flecha fui eu.
Se um jovem sente necessidade de abordar a “Saudade” (mesmo com um português criticável pelos puristas da língua), por que não ser um sexagenário a fazê-lo, já que tem muitas outras vivências acumuladas?

Assim, no meu caso e numa abordagem pela “rama”, não sei se o que sinto se pode descrever como saudade e muito menos se ela está morta, pois temos tendência a negar evidências. Se saudade descreve sentimentos de perda, sim, tenho saudade dos familiares e amigos que já partiram; dos que deixei na cidade, há sempre a possibilidade de os ir revendo umas duas vezes por ano. É inegável que gosto de saborear as coisas boas, independentemente de quando ocorreram, e esta cidade traz-me boas recordações e um misto de emoções. Inclino-me mais para a canção “Pode Ser Saudade”, criada por Jorge Fernando:  
Venho aqui buscar a asas / dos sonhos de menino / neste chão e nestas casas / foi crescendo o meu destino. Depois, parti p’ra longe, sem saber / que aqui ficava muito do meu ser. Esta emoção de estar aqui / pode ser saudade… pode ser saudade (…).

Afinal, num trabalho mais profundo de introspeção, reconheço estar aqui muito do meu ser, pelo que a emoção que sinto pode ser saudade.

© Jorge Nuno (2019)


* Texto publicado em "Rostos de Terra", coletânea promovida e editada pela Academia de Letras de Trás-os-Montes, e apresentada em 24 de maio de 2019, durante o Festival Literário de Bragança.

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